Transferência no atendimento de emergências psicodélicas

É inegável o avanço internacional nos cuidados aos usuários de psicodélicos nas denominadas Experiências Psicodélicas Difíceis (EPD) em um diminuto, mas significativo, número de festas e eventos, notadamente em festivais de psy trance. Trata-se do uso de novas e antigas tecnologias de cuidado, no campo da redução de danos, para fornecer o acolhimento e o cuidado aos psiconautas. Estes cuidados envolvem a atenção aos usuários que entraram nas EPDs, também conhecidas como bad trips. Existem alguns desafios que pretendo discutir neste texto, em particular o relacionamento que pode se estabelecer, do ponto de vista psicodinâmico, entre o usuário do serviço de redução de danos e o redutor de danos. Podemos citar alguns pontos iniciais:

por Fernando Beserra

a) Não há uma cultura de redução de danos em festas;

Como a redução de danos em festas é relativamente nova, historicamente, e nem sempre os empresários ou promotores de festas e eventos estão preocupados com esta dimensão do cuidado com seu público, ela não alcança tantos espaços. Em distinção da equipe médica ou de socorrista, prevista no Brasil por Lei, a redução de danos hoje depende do interesse dos produtores da festa e de um pequeno investimento, que nem todos estão dispostos a realizar. Portanto, os participantes dos eventos e festas não esperam que exista um espaço no qual poderão testar a sua droga; receber informação qualificada; e serem acolhidos em caso de uma EPD. Acrescente-se a este fato o seguinte fator: os redutores de danos não possuem uma vestimenta típica que os caracterize. Isso leva aos usuários, muitas vezes, a terem dificuldades para identificar os redutores de danos ou entender qual seu real papel no espaço da festa. É verdade que, quanto a vestimenta que os caracterize, alguns grupos procuram utilizar camisas mais ou menos chamativas e que os identifique.

Todos estes fatores, ao serem potencializados por uma experiência psicodélica difícil, dificultam uma imediata sensação de conforto e confiança. Não é incomum observar, enquanto redutor de danos do Projeto Brisa, da Associação Psicodélica do Brasil, por exemplo, quando circulamos a festa distribuindo água, que as pessoas perguntem: que água é esta? Ela está batizada? O que tem nesta água? Tais perguntam expressam, ao menos parcialmente, o relacionamento que se estabelece. Uma pre-ocupação imaginária. Antes de conhecer os redutores ou o trabalho de redução de danos, nem todos sentem confiança nos mesmos. Em nossa cultura, por exemplo, as bebidas podem ser utilizadas de forma maliciosa. Tal experiência de encontro (em receber um copo de água no meio da pista) pode ser sentida, durante uma experiência psicodélica, tanto como um graça, uma sensação que reestabelece a crença na humanidade, como de produção de um medo, alterando a própria experiência com a substância. Mesmo quando há a boa relação transferencial entre o participante do evento e o redutor de danos, não é raro que as pessoas sintam que a experiência delas foi potencializada ou modificada simplesmente por terem recebido água: H²O. Água batismal, água fonte de purificação, água como fonte da vida, ou água intoxicante.

Vós, as águas, que reconfortais, trazei-nos a força, a grandeza, a alegria, a visão! … Soberanas das maravilhas, regentes dos povos, as águas! … Vós, as águas, dai sua plenitude ao remédio, afim de que ele seja uma couraça para o meu corpo, e que assim eu veja por muito tempo o sol! …Vós, as águas, levai daqui esta coisa, este pecado, qualquer seja, que cometi, este malfeito que fiz, a quem quer que seja, essa jura mentirosa que jurei. (RIG VEDA apud CHEVALIER; CHEERBRANT, 2007, p. 15).

Todos estes fatores chamam muito a atenção e nos colocam algumas questões. Para os que já conhecem o debate realizado no campo das psicodinâmicas (psicanálise e psicologia analítica, por exemplo) sobre o campo da transferência e da contratransferência, embora tal debate não seja novidade, já chama a atenção a intensidade das transferências durante o uso de psicodélicos.

b) Transferência psicodélica

A experiência psicodélica possui diversas especificidades, dentre as quais a abertura para o inconsciente, semelhante a que ocorre nos sonhos, nos ritos e, no campo patológico, na experiência psicótica. Carl Gustav Jung [1875-1961] valeu-se do conceito de rebaixamento da consciência (abaissement du niveau mental), do psiquiatra francês Pierre Janet [1859-1947] para abordar o tema. Trata-se de um estreitamento da consciência, acompanhamento do fortalecimento do inconsciente. Como efeito, a consciência passa a operar com automatismos sob a influência de impulsos e conteúdos pulsionais, com a devida redução do desencadeamento lógico da consciência (JUNG, 1928/2013). Em tal estado, portanto, independente do motivo que o catalisou, ocorre uma falha da vontade (faiblesse de la volonté) que, embora possa relacionar-se a casos mórbidos, também o pode a uma abertura transformadora do sujeito e à criatividade.

Os psicodélicos nos conduzem a um nível psíquico do inconsciente que pode ser denominado como mais profundo. Jung (2002), em uma conversa com Ida Herz, escreveu sobre as experiências de Aldous Huxley com a mescalina. Jung chegou a abordar a experiência com mescalina que Huxley descreveu comparando-a ao contato com a esfera na qual é “elaborada a tinta que dá colorido ao mundo, a luz que faz brilhar o esplendor da aurora, as linhas e contornos de todas as formas, o som que preenche a órbita, o pensamento que ilumina as trevas do vazio” (JUNG, 2002). Trata-se de uma aproximação ao inconsciente coletivo e a intensidade afetiva (numinosa) que caracteriza as imagens arquetípicas. A relação com as realidades (esse in anima) ganha novas tonalidades e o complexo do Eu é encharcado de imagens que fogem ao seu controle e compreensão.

O encontro entre o redutor de danos e o participante da festa em uma EPD é perpassado, notadamente no segundo, por imagens arquetípicas que podem ser projetadas e vivenciadas no relacionamento que denominamos de transferencial. Ao escrever sobre transferência, também abordamos o que, nas psicodinâmicas, se convencionou denominar projeção. A projeção se caracteriza pelo deslocamento de um conteúdo intrapsíquico para o objeto ou sujeito, ocorrendo de forma involuntária. No caso da transferência, primeiramente descrita pelo neurologista Sigmund Freud [1856-1939], foi posteriormente discutida em diferentes abordagens psicodinâmicas. De acordo com Jung (1935/2011, pár. 312): o processo psicológico da transferência: “é uma forma específica do desenvolvimento mais generalizado da projeção”. Nesta relação o usuário permanece distante do outro, porquanto ligado a seus próprios conteúdos e afetos e isolado da experiência de contato. Seu contato, por outro lado, é psiquicamente pujante.

A transferência: […] já era designada de rapport na fase antiga pré-analítica da psicoterapia e mesmo antes, pelos médicos românticos. (JUNG, 1946/2011, pár. 366). Em distinção a transferência habitual, que é analisada nos consultórios psicológicos ou psiquiátricos, para o redutor de danos há dificuldades adicionais. Em primeiro lugar, o redutor de danos não possui uma relação temporal e afetiva com o usuário. Desconhece, em geral, a sua história de vida e as suas fantasias. Não se trata de um encontro no contexto da psicoterapia. Tal fato torna quase inviável, por diversas razões, qualquer interpretação da transferência. Em segundo lugar, nem todos os redutores de danos possuem uma formação psi. Em terceiro lugar, a experiência de transferência é vivida em um estado alternativo de consciência, por vezes com uma intensidade afetiva considerável.

Acerca da transferência, no contexto da psicoterapia aliada ao uso do LSD, o psiquiatra Ronald Sandison [1916-2010] escreveu que o fenômeno ocorria tal como na psicoterapia convencional, no entanto, a mesma era mais complicada a intensa, o que não é difícil de compreender se analisarmos os psicodélicos como instrumentos de elevação dos arquétipos à consciência (SANDISON, 1959). De acordo com o psicólogo junguiano Scott Hill (2013), o que Sandison observou foi que sentimentos paranoicos e ilusões, acerca das drogas administradas, eram complicadores da relação transferencial. Por outro lado, e no mesmo fenômeno, alguns pacientes acreditavam que seriam curados meramente por tomar LSD, o que reduzia o engajamento na sessão e sua efetividade (HILL, 2013). As projeções no terapeuta podem ser violentas durante a experiência psicodélica. Exatamente por isso que é perspicaz a alternativa de Stanislav Grof [1931-], tipicamente aceita, da presença de dois terapeutas durante a psicoterapia aliada ao uso de psicodélicos. Além deste cuidado, os terapeutas são divididos por sexo, isto é, um homem e uma mulher, de forma que se houver uma transferência muito negativa com um dos terapeutas, o outro possa conduzir a sessão. Outrossim, há de se considerar este procedimento como resposta histórica a situações de abuso. Talvez seja possível ampliar este debate, inclusive, em torno do gênero e não exclusivamente em torno do sexo.

Alguns cuidados tomados na psicoterapia com psicodélicos também o são entre os grupos de redução de danos, isto é, manter redutores de danos homens e mulheres, facilitando que os participantes do evento sintam-se confortáveis em serem acolhidos. Tal fato torna-se ainda mais importante na redução de danos, pois na relação psicoterapêutica pode haver margem para que o terapeuta trabalhe o trauma ou cena que ensejou a relação transferencial negativa, inclusive por meio da interpretação da fantasia. No campo da redução de danos, este manejo torna-se inviável e, em geral, a busca é evitar a relação transferencial negativa. Me recordo de um atendimento que faria a uma mulher, que buscou nosso serviço, e no momento que me aproximei dela, ela rechaçou o contato, pois não gostaria de ser atendida por um homem. Falou com palavras mais agressivas e estava visivelmente alterada e em sofrimento. Aquele não era o momento para aprofundar no sentido de sua raiva ou coloca-la em questão. Era o momento de fornecer o melhor acolhimento possível. Por esta razão, busquei imediatamente uma redutora de danos da equipe e a expliquei a situação, de forma que a mulher que demandou o atendimento foi atendida.

O contato prévio, no próprio evento, com os possíveis usuários do serviço de acolhimento às EPD torna-se um facilitador importante para a relação, pois contribui para a confiança no atendimento. Por este motivo, temos identificado que a importância da testagem das substâncias sintéticas e semissintéticas (drug checking) é fundamental, para além da identificação das substâncias presentes na amostra. Embora dificilmente os usuários façam a leitura de flyers e outros materiais informativo durante uma festa, em especial as de curta duração, por outro lado muitos se interessam francamente (e logicamente) pelo serviço de testagem. Os resultados, fornecidos em curto prazo de tempo, e que contribuem para a saúde e qualidade da experiência, são igualmente sedutores no que tange aproximar os usuários aos espaços de redução de danos. Neste momento, é possível conversar e trocar informações sobre drogas, de forma não moralista e direta. Além da importância da criação de uma cultura de conhecimento das substâncias, seus riscos e virtudes, isso contribui para a criação de um vinculo entre os profissionais da RD e os participantes do evento. É a oportunidade perfeita, em especial quando não separamos estas ações (testagem e suporte às EPD), para contribuir para a construção de uma cultura de cuidado mútuo, redução de danos e parceria nas festas por este Brasil.

Referências:

HILL, S. Confrontation with the unconscious: jungian depth psycology and psychedelic experience. New York-London: Maswell Hill Press, 2013.

JUNG, C. G. A psicogênese da esquizofrenia In: Psicogênese das doenças mentais. Obras Completas, v. III. Petrópolis: Vozes, 1928/2013. p. 259-278.

JUNG, C. G. Fundamentos da psicologia analítica In: A vida simbólica v.1. Obras Completas, v. XVIII/1. Petrópolis: Vozes, 1935/2011. p. 13-200.

JUNG, C. G. A psicologia da transferência In: Ab-reação, análise dos sonhos e transferência. Obras Completas, v. XVI/2. Petrópolis: Vozes, 1946/2011. p. 46-209.

JUNG, C. G. Cartas de C. G. Jung. Volume 2. Petrópolis: Vozes, 2002.

SANDISON, R. A. The role of psychotropic drugs in individual therapy. Bull Wld Hlth Org. v. 21, 1959. p. 495-503.