Saúde mental, política de drogas e psicodelia

por Fernando Beserra

O cenário sombrio se configurou na política brasileira. Já era esperado, é verdade, com o congresso mais conservador das últimas décadas eleito, as perspectivas não poderiam ser das melhores. O governo do Partido dos Trabalhadores, por sua vez, abandou uma perspectiva de esquerda, avançando cada vez mais para uma quase indiferenciação com o PMDB e, neste contexto, lançou uma série de ataques aos trabalhadores. No campo da política de drogas, não seria necessária uma visão de águia para notar que as políticas governamentais adotaram um viés conservador e com o Plano “Crack é possível vencer”, houve campo de financiamento de armas “não letais” para combater as populações já marginalizadas e estigmatizadas: os usuários de crack pobres. Neste mesmo viés, há cada vez mais incentivo a políticas manicomiais e que vão na contramão da Reforma da Saúde Mental brasileira, conquistada a duras penas no Brasil. Dando nome aos bois: há um grande incentivo às Comunidades Terapêuticas, instituições privadas que utilizam, tipicamente, a religião e a internação como forma de “tratar” a dependência de substâncias. E o governo, ao invés de investir no Sistema Único de Saude, envia mundos e fundos para instituições privadas religiosas, financiando, no Estado “laico”, formas de pregação religiosa específicas.

 

O Brasil, como muitos outros países, tinha uma política de tratamento da população com transtornos mentais focada nos manicômios, em espaços de segregação, que podiam ser “carinhosamente” chamados de hospitais psiquiátricos. Nestes locais, o que se via (e o que se vê) era o cúmulo do sofrimento e da dessasistência. A privação de liberdade potencializa os sintomas e o transtorno mental. Os internos (pacientes) se adaptavam ao afastamento do convívio social e cada vez mais se tornava difícil trazê-los de volta ao convívio social e produzir ressocialização. Além disso, neste locais, como em outras Instituições Totais, há gravíssimas violações dos direitos humanos. Neste interim tornou-se comum o uso, por exemplo, do eletrochoque, hoje chamado de eletroconvulsoterapia, para punir e controlar os ditos loucos. Nem sequer eu precisaria falar de intervenções neurocirurgicas como as lobotomias, que serviam para retirar toda vitalidade dos pacientes. Nestes contextos doentios, a loucura se apresenta como uma defesa radical contra a alienação, uma espécie de alienação no qual o sujeito deixa de ser para si e passa a ser para o outro. O convivio manicomial, o convivio da Instituição Total, leva a perda de si por meio da destruição da autonomia, petrificando a singularidade e buscando controlá-la. Nada pessoal: é a palavra de ordem. Não há espaço, no manicomio, para liberdade. Felizmente, os trabalhadores da saúde mental brasileira lutaram muito para que fosse descontruido este contexto de produção de adoecimento. Julgaram, radicalmente, que seria preciso invenstir em equipamentos de saúde mental na comunidade, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e criar equipamentos de saúde que pudessem conduzir à desinstitucionalização as pessoas que viveram décadas dentro destes espaços de segregação (hospitais psiquiátricos e outros manicômios).

Hoje, o Ministério da Saúde flerta com a Associação Brasileira de Psiquiatria, uma associação que defende(u) com unhas e dentes as instituições manicomiais. A nova configuração do Ministério da Saúde é assustadora para aqueles que lutam por um Brasil na vanguarda internacional das políticas de saúde mental. No campo da política de drogas, a situação é a mesma. Proliferam espaços de segregação e não é demais lembrar de filmes como Bixo de Sete Cabeças, que deveria ser apenas um pesadelo distante para nos envergonhar.

Diante de um contexto tão dificil, uma esperança nos defensores da liberdade e de políticas progressistas, no campo da política de drogas, é o julgamento do Recurso Extraordinário 635659 no Supremo Tribunal Federal. O julgamento, que pode descriminalizar o porte de drogas no Brasil, foi iniciado em 2015, mas o ministro Fachim pediu vistas ao processo. O mesmo voltou a ser debatido no STF e, no segundo tempo do debate, foi o ministro Teori Zavascki. A situação poderia parecer positiva até o momento, com 3 votos a favor da descriminalização e nenhum contrário. Caso os ministros votem pela descriminalização, o artigo 28 da Lei 11.343/06 será julgado inconstitucional. Um dos argumentos é de que não há a possibilidade de estabelecer, no direito democrático, um crime sem vitimas, como seria o crime de usar uma substância que produz danos, no máximo, ao seu próprio usuário.

Sabemos que um dos mais graves problemas na argumentação dos ministros no julgamento de RE 635659 foi o deliberado foco sobre a cannabis sativa, em especial de dois ministros: Edson Fachim e Luis Roberto Barroso. O argumento mais progressista, neste caso, veio de Gilmar Mendes, que defendeu a insconstitucionalidade do artigo 28, o que é valido para todas as drogas. A descriminalização apenas da cannabis sativa seria um balde de água fria para milhões de usuários das outras substâncias e, além disso, poderia fortalecer a desarticulação de parte dos esforços antiproibicionistas por uma sociedade livre, mais justa e com políticas mais eficientes.
> Luciana Boiteux – Profª da Faculdade Nacional de Direito UFRJ
> Fernando Beserra – Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos RJ e Associação Psicodélica Brasileira
> Jefferson Lee de Souza Ruiz – Prof° da Faculdade de Serviço Social da UERJInfelizmente o debate antiproibicionista ainda não é consensual. Exatamente por isso é importane que se paute um debate para além do óbvio: é preciso legalizar a produção, o comércio e o consumo da maconha. Os usuários de substâncias ilícitas devem estar unidos. O apoio é fundamental, mesmo que as lutas sejam distintas e guardem suas especificidades. Do ponto de vista da saúde pública, não há dúvidas de que a descriminalização é uma política saudável e promotora de saúde, como muito bem nos atesta o exemplo de Portugal. E ela deve ser feita para todas as drogas. Afinal, são os usuários de drogas mais perigosas, como o crack, a população que mais deve se beneficiar da política de descriminalização. A redução do estigma e da criminalização deve favorecer o acesso destes usuários ao Sistema Único de Saúde, as políticas de tratamento e prevenção do uso indevido. Há de se convir, além disso, que se o argumento fosse o risco à saúde das diferentes drogas, que os ministros não tem competência técnica para esta avaliação, pois não são profissionais da área da saúde. Deveriam lembrar, caso este fosse o caso, que há outras substâncias hoje ilícitas tão pouco produtoras de danos como a maconha, a exemplo do LSD, da psilocibina, da mescalina, do MDMA, da Salvia divinorum e da salvinorina a, dentre outras.

E, após este texto, finalmente, convido a todas e todos para o evento: Direitos humanos e drogas: legalizar para não criminalizar, organizado pela Frente Estadual Drogas e Direitos Humanos do Rio de Janeiro (FEDDH-RJ). O evento ocorrerá amanhã, dia 04 de dezembro às 18:30 horas, na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, na Rua Moncovo Filho nº 8, Centro – Rio de Janeiro. O evento será gratuito e todos são bem-vindos. No debate, organizado em um momento em que o conservadorismo brasileiro dá as caras como nunca, estarei palestrando ao lado da profa. Luciana Boiteaux (UFRJ) e do prof. Jefferson Ruiz (UERJ). E estarei neste debate de forma a trazer uma fala que inclua a questão dos psicodélicos e suas especificidades. Em 2015, como já explicitei algumas vezes aqui no Portas da Percepção, surgiu a Associação Psicodélica do Brasil (APB), que cada vez mais se organiza para ampliar o debate e ações construtivas na questão dos psicodélicos. Convido a todos a ler, nas referências, a nota da Associação Psicodélica sobre o debate em pauta no STF. E façamos pressão para que o tema volta a pauta em 2016.

REFERÊNCIAS:

ASSOCIAÇÃO PSICODÉLICA DO BRASIL. Nota: “STF descriminalize de verdade”. Disponível em: <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/pt/infumacao/portas-da-percepcao/3461-supremo-tribunal-federal-descriminalize-de-verdade.html>.

Fernando Beserra. Introdução à antipsiquiatria. Disponível em: <http://www.muitaluz.blogspot.com.br/2009/06/introducao-anti-psiquiatria.html>.

Fernando Beserra. Introdução à antipsiquiatria – parte 2. Disponível em: <http://www.muitaluz.blogspot.com.br/2009/06/introducao-anti-psiquiatria.html>.

Vídeos:

Thiago Tomazine. Descriminaliza STF/ SUG8. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=cVsDCwn9wHs>.

Fernando Beserra. Descriminaliza STF. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7M70Q3MHB1I>;

Site da Associação Psicodélica do Brasil: