Rock in Rio e cannabis: será que alguém duvida que o futuro é verde?

34 anos se passaram desde a 1ª edição do festival e a maconha continua proibida. Mas aparentemente, a erva é mais tolerada na Cidade do Rock

Por Cadu Oliveira / Ilustração Dada Lo Emer

Em 1985, na primeira edição do Rock in Rio, um então apresentador de TV foi preso enquadrado na Cidade do Rock por causa de meio baseado. Ele foi jogado no banco de trás de um Opala e conduzido até sua residência, depois da delegacia de Entorpecentes e acabou pagando um “resgate” de dois mil dólares para sair impune do flagrante.

Esse causo está narrado no livro “Noites Tropicais”, de Nelson Motta. O susto não fez o jornalista abandonar o hábito de consumir cannabis. Esse mês, em entrevista ao jornal O Globo, Nelson disparou: “Tenho uma memória incrível, não sei por quê. Fumo maconha todos os dias, há 55 anos”, disse.

Depois dessa histórica edição, o festival – que é considerado o maior de música do planeta – já se repetiu no RJ mais sete vezes. A última foi este ano, nos dias 27 a 29 de setembro e 03 a 06 de outubro. 34 anos se passaram desde a primeira edição e a maconha continua proibida. Mas será que hoje em dia a erva é mais tolerada? Pelo que vi… sim.

Tive a honra de cobrir os sete dias de evento e, embora os seguranças regulassem, por vezes, a marola, a única forma de repressão que vi foi pedirem para apagar. A que se deve essa mudança? Talvez a explicação esteja no próprio sentido do festival. Na coletiva de imprensa, realizada na terça-feira, dia 24 de setembro, Roberto Medina e sua filha Roberta, exaltaram o espírito de “diversidade do evento, que abraça todas as classes, cores e gêneros”. Essa aceitação passa pela tolerância ao uso da cannabis? Seria difícil dizer que não se o assunto não permanecesse sobre o manto da ilegalidade e acamado em silêncio.

Mas a verdade é que é impossível suprimir uma cultura que está expressa em tantas letras e referências manifestadas não mais só na plateia, mas também nos palcos. Por exemplo, no primeiro dia, o palco Supernova abriu espaço para revelação do Rap e contou com atrações como Oriente, Cacife Clandestino, Haikaiss e Orgânico. Todos eles têm pelo menos uma música com menções sobre a erva.

No dia 28, o vocalista do Detonautas, antes de chamar mais um hit, brincou: “Quem tem celular, acende o celular. Quem tem lanterna, acende a lanterna. Quem tem o baseado, acende o baseado. Não, baseado não pode, não”, disse Tico Santa Cruz, tirando risadas do público. No mesmo dia teve Raimundos no palco mundo e antes de cantar o “Reggae do Manero”, as luzes ficaram nas corres do gênero popularizado por Bob Marley e Digão avisa: A hora de tacar fogo é agora”, brinca.

A jovem cantora Iza subiu ao palco junto com a diva do samba Alcione, no dia 29. O palco Sunset ficou tão lotado que, quem passeava pela cidade do rock nas redondezas do show, foi obrigado a parar para ouvir a canção chamada “Brisa”, que diz: “To na brisa, nada me incomoda, que delícia”, hit gravado em versão reggae, lançado esse ano e que já ultrapassou 54 milhões de views no YouTube. É marola à beça. Questionada se a música era sobre cannabis, Iza disse que essa não, mas uma outra dela fala diretamente sobre isso, a canábica “Bateu”.

Ainda no terceiro dia de evento, no palco Favela, Dudu de Morro Agudo quebrou o protocolo e fez rimas com refrão de “ei, Bolsonaro, vai tomar no cu”, levando a plateia ao delírio. E no final de semana seguinte foi igual, ou parecido. No dia 03 teve Braza, que embrasa a galera com uma mistura fina de reggae, rock e rap, cheio de pitadas de fumacê. Nem as atrações internacionais se esquivaram e Dave Grohl falou um “it smeels good”, quando chegou perto da grade. E o baixista do Red Hot foi visto com um “cigarro suspeito”, bem na hora que foi apresentado e apareceu no telão.

Tudo bem que não tinha Planet Hemp no line-up. Mas até no dia do metal teve referência psicodélica no cardápio cultural. No palco New Dance Order, os pioneiros do Psy Trance vieram de Israel para tocar na pista eletrônica do Rock in Rio 2019, a dupla Infected Mushroom.

No penúltimo dia, o palco Favela deu espaço ao funk velha guarda, com Cidinho e Doca. O antigo DJ do Planet, Zé Gonzáles, tocou com seu atual projeto, o Tropkillaz. No Sunset teve Funk com orquestra, com participação de Buchecha, Fernanda Abreu (do Veneno da Lata) e Ludmilla e no palco mundo, Anitta. Essas duas últimas citadas lançaram, este ano, um som em parceria com Snoop Dogg, o maior maconheiro vivo da atual cultura pop mundial. O nome do hit é “Onda Diferente” e tem cenas do rapper americano queimando ganja.

Por fim, no dia 06/10, o palco Favela recebeu o rapper carioca Xamã, pela primeira vez tocando com banda instrumental. O jovem MC é uma revelação ascendente do cenário de rimadores do Rio. Ele tem uma canção genial dedicada à cannabis, com versos que diz “Oh, meu senhor, não é apologia não / Meu uso é cultural, tem bula e medicação” e “Santa Maria, ganja, ganja, mão de Deus, musa da minha poesia, quanta magia, livrai-me dos fariseus, libertem santa Maria”, no refrão. O nome da música é “Avareza” e fez parte do setlist no show.

Por essas e outras, eu acredito que se o Nelson Motta fosse dar um dois na multidão, em 2019, a brisa poderia acabar sem complicações. Mas já que o papo é sobre festivais de música e o Rio está recebendo, pela segunda vez, uma edição da OktoberFest, vale lembrar um fato histórico interessante. Em sua primeira edição do evento de cultura germânica, o encontro contou com uma corrida de cavalos e a celebração era do casamento do então príncipe Ludwig, que depois virou Rei Luís I, da Baviera. Só que a festa foi tão boa que virou tradição. Isso aconteceu em Munique, na Alemanha, no ano de 1810. Essas primeiras edições aconteciam sempre em outubro, daí o nome, e tinham uma particularidade pouco lembrada: a cerveja era proibida! Foi só nos idos de 1918 que a bebida se tornou marca oficial do evento.

Como o mundo está mudando rápido, eu não duvidaria que demore tanto tempo para que os empresários do entretenimento percebam o poder, valor e influência da cultura canábica no mundo da arte. Se isso acontecer, e o planeta resistir, quem sabe no século que vem não exista o “Beck in Rio”? É pura viagem, mas é viável. Afinal de contas, está mais fácil o rock virar pontas e parar no cemitério do que as flores saírem do mapa, embora ilegais (ainda). Se pensar, a concorrência é desleal: para se fazer um rock star é preciso indústria fonográfica e muitos anos de carreira. Já a floração da cannabis leva, no máximo, 13 semanas. Mais uma semaninha de secagem e pronto, a flor está pronta para dar um show!

********* Texto publicado no blog do Hempadão na Carta Capital