Redutores de danos em espaços de festa: Quais as competências necessárias?

por Fernando Beserra

Com o avanço das equipes de redução de danos (RD) que atuam em eventos/festas, torna-se relativamente comum ouvirmos pessoas perguntando acerca dos conhecimentos ou da formação necessária para atuar como redutor de danos. De fato, já cheguei a ouvir que apenas psicólogos(as) poderiam realizar a atividade de acolhimento para pessoas em crises psicodélicas. Por este motivo, resolvi escrever este texto para debater acerca das competências necessárias para o trabalho de redutor de danos em festas.image

De acordo com Andrade e Friedman (2006, p. 395) a RD é uma política de saúde que se propõe a reduzir os prejuízos de natureza “biológica, psicossocial e econômica dos usuários de drogas sem condicionar isto ao abandono de suas drogas de consumo”. No campo da redução de danos, são antigas as ações que ocorrem no ambiente de eventos, mais particularmente de festas e algumas até mesmo antecedem a constituição da RD holandesa. O início destas ações é demarcado ainda na década de 1960 nos esforços de equipes como o Farmers Hog, o Rock Medicine, o White Bird e voluntários da Família Rainbow (RODRIGUES et al., 2017). Já a Haight Ashbury Free Medical Clinic oferecia, por exemplo, o serviço de: Rock medicine. Historicamente, as ações médicas em Woodstock relacionam-se ao início dos EMS (Emergency Medical Services) em grandes eventos. Em Woodstock a organização dos serviços médicos esperava, inicialmente, 50.000 pessoas e foi surpreendida por completo com avenidas paradas e um público que beirava o meio milhão. Em decorrência da necessidade de cuidado das bad trips, por exemplo, foram adotados métodos revolucionários, com o suporte e acolhimento do sofrimento, ao invés da prescrição de clorpromazina para retirada dos sintomas (com possíveis intoxicações). Os produtores de Woodstock contrataram 85 integrantes da Hog Farm, um grupo de hippies bastante organizado, e se basearam na experiência do Hog Farm com as “trip tents” de outros festivais. Este grupo de psiconautas adotava o método do “talking down”, isto é, ao invés de optarem por medicações, falavam calmamente com os usuários, assegurando aos mesmos que eles não haviam enlouquecido e que os efeitos da droga em breve passariam (KELLY, 2010). Eles buscavam conectar os viajantes a realidade, a eles mesmos e a relaxar. Os resultados foram muito bons.

No campo das festas ou festivais de música eletrônica, é importante destacar o movimento ocorrido em Ibiza em 1987 e que reuniu milhares de pessoas em torno da música eletrônica. No verão de 1987, o segundo Verão do Amor, muitos experimentaram o “ecstasy”. Empreendedores ingleses levaram a atmosfera existente na Inglaterra em festas nas quais era frequente o consumo de LSD e ecstasy. Com o avanço e passagem das festas para fora do perímetro urbano as festas passaram a ser denominadas raves (ALMEIDA; SILVA, 2006) e adotam uma filosofia denominada PLUR – Peace, Love, Unity and Respect. Surgem grupos de RD que realizam o acolhimento de experiências intensas com Substâncias Psicoativas (SPA), com especial atenção aos psicodélicos, bem como partilha de informações e outros cuidados. Dentre estes grupos pode-se destacar o KosmiCare realizado no Boom Festival em Portugal e o Zendo Project do Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS) realizado no Burning Man. Os eventos de música eletrônica em espaço aberto têm início no Brasil em meados da década de 1990, de forma espaçada entre os eventos, e na primeira década do século XXI passam a ocorrer com grande frequência, em todos os finais de semana (REIS, 2016). A primeira ação de RD no Brasil festival ocorre em 2006, oriundo do trabalho do Coletivo Balance (VARGENS; COSTA; OLIVEIRA, s/d). A ação foi realizada em um festival de grande porte de música eletrônica, o Universo Paralello, que ocorre na Bahia. Posteriormente, surgiram diversos coletivos de RD em festas a exemplo do Coletivo ResPire (2010), o Coletivo BalanCeará (2011), o Coletivo Flor de Lótus (2013) e o núcleo de RD da Associação Psicodélica do Brasil, o projeto Brisa (2015), dentre outros, em anos diversos. O coletivo Se Plante (BA) construiu um mapa dos coletivos de RD que atuam em festas e eventos, que foi depois atualizado em mais de uma ocasião pelo Pré-Party.

Uma discussão que surge, vez ou outra, é qual a necessária formação do redutor de danos para atuar em contexto de festas/eventos. Legalmente não há essa previsão desta formação e um problema a mais é que muitos veem estas ações apenas ou simplesmente como uma ação voluntaria de ativistas. A militância é parte intrínseca destas atuações, pois as mesmas têm um componente político bastante presente. Aqui no Rio de Janeiro sempre buscamos imprimir esta marca de forma bastante clara e vejo que vários coletivos no Brasil também o fazem ou estão ampliando esta dimensão. Porém, isso não altera o fato de que o trabalho do redutor de danos em uma festa é um trabalho. Pelo histórico da redução de danos e pela importância dos próprios usuários de substâncias, independente de educação formal prevista, participarem e serem muito importantes para o funcionamento da RD, há receio de alguns pesquisadores e profissionais por uma regulação restritiva. Isso é compreensível e bastante importante. Por outro lado, não há dúvidas de que há um conjunto de conhecimentos, habilidades e atitudes que favorecem um trabalho de qualidade efetuado por este profissional. E, mais do que uma questão que se resolve de forma individual, é algo que responde coletivamente, com a possível futura participação dos grupos de RD neste debate. Além disso, no que compete aos conhecimentos, habilidades e atitudes necessárias a um trabalho de qualidade, trata-se tampouco de uma questão somente individual. Este debate diz respeito, igualmente, de uma questão meso-organizacional, isto é, a interação de competências de um grupo/equipe, na medida em que se esperam distintos papéis e competências sinérgicos dentro de uma equipe de RD que atua em eventos.

Mesmo que sigamos os poucos editais de concursos para contratação de redutores de danos já realizados, que seguem a exigência de educação formal de nível médio, isso não isenta a necessidade de capacitação e treinamento, além de um cabedal de conhecimentos que serão necessários para um trabalho de qualidade. Outrossim, tais concursos foram endereçados a área de RD vinculada as políticas públicas no campo da saúde mental, em especial o trabalho em torno da dependência de substâncias psicoativas, a promoção e educação em saúde, inclusive no campo da educação sexual, da prevenção das infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) e da articulação das ações com os equipamentos de saúde mental, a exemplo dos Centros de Atenção Psicossocial para o uso indevido de álcool e outras drogas (CAPS ad) e, enfim, a quase toda a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). No caso das ações de RD em contexto de festa, é importante lembrar que, embora nos valhamos da legislação e da política de atenção integral ao uso de álcool e outras drogas do Ministério da Saúde, não há políticas públicas claras em torno destas atuações.

Um avanço considerável no campo das ações de RD em festas e eventos, é demarcar qual o trabalho dos profissionais da área e qual as competências necessárias para realiza-lo. A competência pode ser definida como “habilidades, conhecimentos e atitudes requeridas para desempenhar um papel de forma efetiva” (BROPHY; KIELY apud LIMA; BORGES-ANDRADE, 2006, p.201). Com o conhecimento do CHA (conhecimentos, habilidade e atitudes) necessário a este trabalho e as competências futuras que precisarão ser desenvolvidas, seria mais fácil de definir quais os treinamentos e a formação formal necessárias para o melhor desempenho dos redutores, sem que isso produza um afastamento ou exclusão de usuários, sem formação específica, que pela sua história pessoal, CHA e motivação, são extremamente valiosos. Notadamente, deve-se observar o princípio geral do “nada sobre nós, sem a nossa participação”.

Porém, antes de avançarmos para estas reflexões preliminares acerca das competências necessárias aos redutores de danos, em seus distintos estilos de trabalho, precisamos pensar sobre qual o é desenho do cargo de redutor de danos em festas, isto é, quais as atividades que devem ser realizadas por estes profissionais. A análise dos cargos é um procedimento antigo. Em 1923, Freyd descrevia a análise de cargos entre os procedimentos de seleção de pessoal (LIMA; BORGES-ANDRADE, 2006). Hoje já temos alguns desenhos nos poucos concursos para o cargo de redutor de danos ou agente em redução de danos, com exigência de nível médio. Neste sentido, e com tais influências, arrisca-se a descrição abaixo. Não se deve esquecer, todavia, que a análise do cargo deveria passar por procedimentos previstos e mais criteriosos que os adotados neste pequeno e sucinto texto. Além disso, ainda há a discussão, realizada mais a frente, quanto a possibilidade de redutores de danos com necessária formação de nível superior, que teriam um desenho de cargo distinto do apresentado abaixo.

Desenho do cargo de redutor de danos em contexto de festa

Trabalhar em equipe multiprofissional em saúde, minimizando os riscos e os danos resultantes do consumo de substâncias psicoativas, por meio de orientações, educação em saúde, acolhimento e ações em prol do bem-estar do usuário. Manejar crises psicodélicas. Realizar testagens de substâncias psicoativas. Conhecer e trabalhar com a rede de atenção psicossocial e realizar encaminhamento em casos de emergência ou urgência médica ou psicológica. Fomentar o debate de políticas sobre drogas, de forma a contribuir com a redução de estigma relacionado ao consumo de substâncias psicoativas e a redução de riscos e danos a nível social.

O CHA das competências possuí, de acordo com Durand (apud GUIMARÃES; BRUNO-FARIA; BRANDÃO, 2006) os seguintes significados:

Conhecimento: informações assimiladas e estruturadas pelo sujeito em um esquema pré-existente que exercem influência em seu julgamento ou comportamento;

Habilidade: capacidade de fazer uso produtivo do conhecimento. Uso do conhecimento em ação (saber fazer);

Atitude: aspectos sociais e afetivos relacionados ao trabalho. Predisposição do indivíduo em relação ao trabalho.

Por fim, por meio das minhas incursões no campo, iniciei o seguinte desenho do CHA dos redutores de danos em festas.

CHA – redutor de danos em festas

Competência

Conhecimentos

Habilidades

Atitudes

Manejo de crises psicodélicas

Conhecer SPAs utilizadas em determinado contexto

Conhecer formas de manejo psicológico de experiências psicodélicas difíceis;

Avaliar, sistematizar e decidir as condutas adequadas, baseadas em evidência científica e na ética profissional;

Cuidar e acolher os usuários que demandem suporte, inclusive os que não se encontrem em franco sofrimento psicológico;

Fomentar relações interpessoais de mútua confiança e estimulo a autonomia dos usuários;

Escuta empática;

Abertura e acolhimento à diversidade;

Respeitar os usuários de diferentes substâncias;

Capacidade de estabelecer relações interpessoais de confiança e suporte;

Trabalho em equipe;

Realizar testagens de substâncias psicoativas

Conhecer SPAs utilizadas em determinado contexto

Conhecer as formas de testagem de SPA;

Fomentar relações interpessoais de mútua confiança e estimulo a autonomia dos usuários;

Respeitar os usuários de diferentes substâncias;

Capacidade de estabelecer relações interpessoais de confiança e suporte;

Trabalho em equipe;

Orientações e educação em saúde

Conhecer SPAs utilizadas em determinado contexto

Conhecer os insumos e formas de RD de SPA ligadas à cena de uso;

Conhecer a legislação sobre drogas e redução de danos

Avaliar, sistematizar e decidir as condutas adequadas, baseadas em evidência científica e na ética profissional;

Comunicar informações técnico-científicas sobre substâncias de forma clara e compreensível;

Fomentar relações interpessoais de mútua confiança e estimulo a autonomia dos usuários;

Abertura e acolhimento à diversidade;

Respeitar os usuários de diferentes substâncias;

Capacidade de estabelecer relações interpessoais de confiança e suporte;

Trabalho em equipe;

Conhecer e trabalhar com a rede de atenção psicossocial

Conhecer a luta-antimanicomial e da reforma da saúde mental brasileira;

Conhecer a RAPS;

Conhecer a história e conceitos da RD;

Formar redes de cuidado e apoio;

Capacidade de estabelecer relações interpessoais de confiança e suporte;

Trabalho em equipe;

Fomentar o debate de políticas sobre drogas

Conhecer a legislação sobre drogas e RD

 

Respeitar os usuários de diferentes substâncias;

Abertura e acolhimento à diversidade;

Dentro de uma equipe de redutores de danos precisaremos em algumas pessoas que detenham conhecimentos mais específicos e que possam auxiliar algumas tarefas, a exemplo de:

Infraestrutura: avaliação do que será necessário para a montagem do espaço de redução de danos na festa, inclusive para mediação com a equipe de produção e funcionários (eletricista, p.ex). Avaliação e planejamento de todos os itens que serão necessários, inclusive de forma a prever e orçar com propriedade os custos da ação;

Psicologia: é imprescindível que a equipe de redutores de danos que atue em uma festa possua, no mínimo, um profissional formado em psicologia. O mesmo poderá dar suporte aos redutores de danos que realizam o acolhimento a emergências psicológicas devido ao uso de substâncias. Embora o treinamento do acolhimento de experiências difíceis deva ser parte da formação de tais redutores de danos, não há forma de realizar uma capacitação na mesma extensão dos profissionais de psicologia;

Biomédica: é importante que a equipe de RD possua algum profissional com conhecimento da área biomédica com a capacidade de identificar urgências ou emergências médicas, de forma a realizar o encaminhamento ao serviço adequado, entendendo que não é atribuição da equipe de redução de danos realizar atividades do serviço de socorristas ou de emergência médica. No caso de inexistência deste profissional, os usuários atendidos pelo setor devem ser primeiramente avaliados pela área médica do evento. A existência de algum profissional da área biomédica não exclui a importância de formação básica de suporte a vida por redutores de danos que atuam em festa, ao menos no que concerne futuras formações mais elaboradas.

Neste sentido, a médio prazo, para o desenvolvimento da área de RD em festas, o ideal é que tenhamos redutores de danos com formação de nível superior, como psicólogo/redutor de danos; enfermeiro/redutor de danos; etc., assim como redutores de danos sem necessidade de educação formal específica, mas que se orientem, pela experiência prática, para um conjunto de atividades de redução de danos. Desta forma, seria possível um trabalho multiprofissional e interdisciplinar. Por fim, o desenvolvimento destas ações deveria influenciar a própria organização do trabalho das equipes de socorristas e médicos. Pode-se notar em muitas ocasiões que tais equipes desconhecem o trabalho de redução de danos e se portam de forma distanciada e pouco eficiente no manejo clínico, pois encontramos profissionais despreparados tecnicamente e preconceituosos em relação ao uso de substâncias. As próprias equipes médicas deveriam fazer parte das equipes de redução de danos ou atuar a partir desta lógica.

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Referências:

ALMEIDA, S. P. de; SILVA, M. T. A. Sintéticas, recreativas e ilegais: drogas de uma “geração química” In: SILVEIRA, D. X. da; MOREIRA, F. (ORGs). Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu, 2006. p. 179-186.

ANDRADE, T. M de.; FRIEDMAN, S. R. Princípios e práticas de redução de danos: interfaces e extensão a outros campos da intervenção e do saber. In: SILVEIRA, D. X. da, MOREIRA, F. G., (ORGs). Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu; 2006. p. 395-400.

GUIMARÃES, T. de A; BRUNO-FARIA, M. de F.; BRANDÃO, H. P. Aspectos metodológicos do diagnóstico de competências em organizações In: BORGES-ANDRADE; ABBAD; MOURÃO, L. Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas. Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 216-230.

KELLY, J. EMS at Woodstock. JEMS, 2010. Disponível em: <https://www.jems.com/articles/print/volume-35/issue-5/major-incidents/ems-woodstock.html> Acesso em 20 ago. 2018.

LIMA, S. M. V.; BORGES-ANDRADE, J. E. Bases conceituais e teóricas de avaliação de necessidades em TD&E In: BORGES-ANDRADE; ABBAD; MOURÃO, L. Treinamento, desenvolvimento e educação em organizações e trabalho: fundamentos para a gestão de pessoas. Porto Alegre: Artmed, 2006, p. 199-215.

REIS, A. A redução de danos em contexto de festa: uma compreensão fenomenológica. 2016. 104f. Trabalho de conclusão de curso (Graduação em Psicologia). Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2016.

RODRIGUES, S. E et al. Redução de danos e substâncias psicodélicas: construindo ações e debates. Platô: drogas e política, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 39-69, set. 2017.

VARGENS, M. C. L.; COSTA, L. O.; OLIVEIRA, E. G. Ecstasy e LSD: guia prático na unidade de emergência. Neip, [s. d.]. Disponível em: <http://neip.info/novo/wp-content/ uploads/2015/04/guia_medico_xts_lsd.pdf>. Acesso em: 1 abr. 2017.

Mais no Portas da Percepção sobre o assunto:

BESERRA, F. R. Testando as balas e os MDs. Hempadão, 2017. https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/testando-as-balas-e-os-mds-portas-da-percepo/

BESERRA, F. R. MDMA e redução de danos. Hempadão. 2016. Disponível em: <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/mdma-e-reducao-de-danos/>.

BESERRA, F. R. Redução de danos em contexto de festas. Hempadão. 2016. Disponível em: <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/reduo-de-danos-em-contexto-de-festas/>.