Redução de Danos com Psicodélicos em Grandes Festivais

Hoje vamos contar com uma tradução livre de um Boletim da Multidisciplinary Association for Psychedelics Studies (MAPS). O texto, de autoria da pesquisadora Katherine Maclean, aborda sua experiência em redução de danos com psicodélicos em grandes festivais.

Confie, deixe ir, esteja aberto: redução de danos de psicodélicos no deserto e além

Eu tinha acabado de terminar o turno da noite e estava descansando na parte de trás da tenda do exército estilo MASH, saindo e entrando de um sono com sonhos quando a clara manhã começou a diminuir. O incessante batido da música eletrônica finalmente deu lugar aos sons familiares, felizes da nossa comunidade no deserto acordando: tagarelice, luz e risos, colheres em tigelas de cereais e chá fervendo, uma porta porta-potty balançando abrindo e fechando. Então, subitamente, um grito rasgou o leve ar matinal.

Eu vi uma pequena massa ondulante de corpos aparecendo na abertura da tenda e demorou um tempo para que perceber que a jovem mulher no centro da massa era a que estava gritando. Ela estava arranhando o ar enquanto seus olhos corriam para as coisas que ninguém mais podia ver. Ela claramente não tinha interesse em entrar naquele lugar estranho, com aquelas pessoas estranhas que estavam tão interessadas nela. Sua amiga explicou que elas tomaram o que acharam ser Ecstasy perto de meia-noite, mas a noite rapidamente tinha ido água abaixo.

Vagorosamente, conseguimos chegar a jovem mulher e deitá-la no mesmo colchão de ar onde eu estava cochilando. Eu sentei no chão próximo a ela, uma mão apoiando em seu ombro e a outra segurando sua mão. Sua amiga sentou-se aos seus pés e colocou seus braços sobre a parte inferior das pernas. Pela próxima hora ou mais, nós permanecemos neste abraço desejeitado, tentando permanecer o mais calmo possível, enquanto a jovem mulher se contorcia e gritava. “Tudo bem. Você está segura. Deixe isso passar através de você”. Eventualmente, ela começava a relaxar e o aperto em minha mão afrouxava. Sua respiração lentificou-se e seus olhos começaram a fechar. “Você está segura, nós estávamos aqui com você”.

Este tipo de cenário não era exatamente o que eu tinha em mente quando eu comecei minha carreira na ciência psicodélica. Depois de completar meu Ph.D. no final de 2009, eu me juntei a uma equipe de pesquisa com psilocibina na Universidade Johns Hopkins, uma das melhores (a única) instituição de pesquisa acadêmica no mundo fazendo ensaios clínicos com medicamentos psicodélicos. Em um curso de quatro anos, eu treinei com dois dos mais experientes terapeutas psicodélicos o mundo: Bill Richards e Mary Cosimano.

Eu vi compartilhada minha parte de experiências místicas impactantes (full-blown) e clássicas “bad trips”. Eu dei suporte a pessoas enquanto elas revistavam memórias traumáticas e dividiam suas alegrias, como elas ficavam entusiasmadas com aquelas belas músicas e padrões fascinantes das telhas do teto. Eu segurei as mãos das pessoas enquanto elas choravam, gritavam e mesmo riam da sua forma por meio de algumas das mais intensas experiências de suas vidas. Eu fiz tudo isso em um ambiente confortável, familiar, com pessoas que estavam bem preparadas e confiavam em mim para cuidar delas. Redução de danos, por outro lado, é sobre sentar em ambientes desconfortáveis e imprevisíveis com estranhos que, normalmente, tomaram grandes quantidades de substâncias desconhecidas. Mesmo com todo meu treino profissional, eu tinha muito o que aprender lá fora no deserto.

Minha primeira oportunidade como voluntária do programa de redução de danos sobre psicodélicos do MAPS veio no verão de 2012. Eu já tinha feito planos para retornar ao Burning Man depois de cinco anos de hiato quando Rick Doblin (fundador e diretor executivo do MAPS) estendeu a mão para perguntar se eu estaria disposta a treinar cuidadores no projeto que o MAPS estavam lançando. O Projeto Zendo providenciaria um espaço seguro e cuidadores treinados para ajudar indivíduos que tivessem tempos difíceis como resultado da ingestão de drogas psicodélicas. Embora nós concordássemos que haviam diferenças nos métodos utilizados entre estudos de investigação controlados e aqueles no chão em festivais, Rick achou que seria bom incluir minha perspectiva enquanto cientista e terapeuta. Eu estava inspirada de ter a oportunidade de fazer um bom trabalho enquanto estava no Burning Man, enquanto a abordagem puramente hedonista do evento perdeu um pouco seu apelo para mim. Eu estava excitada em aprender de outros terapeutas, clínicos, psiconautas e bons samaritanos que adorariam se voluntariar.

Embora eu estivesse preparada para uma experiência intensa, meu tempo no Zendo terminou sendo bem calma e sem incidentes naquele ano. Eu tinha assinado para o turno da manhã, então muita da minha energia de voluntariado era gasta dando água, barras de granola e abraços de despedida a pessoas que estavam, finalmente, prontas para voltar para seus acampamentos depois de uma longa e angustiante. Mas eu sempre lembrava uma interação especial que tive com um jovem homem que chegou no Zendo logo após o sol nascer.

O jovem era basicamente não-verbal e a atenciosa “estranha” que deixou-o lá disse que o encontrou confuso e vagando. Eu sentei próximo a ele por um bom tempo, sem saber que droga ele tinha tomado, que ajuda eu poderia providenciar ou mesmo se ele estava consciente de mim. Então, eu apenas sentei ali. Eu meditei um pouco. Eu respire. Ele respirou. Eu esperei pacientemente. Nós não dissemos nada. (Nota ao leitor: algumas vezes, sentar com pessoas sobre o efeito de drogas é bem chato!). Quando eu ofereci a ele um copo de água, ele pegou o copo em suas mãos e olhou para ele por algum tempo até gentilmente perguntar: “O que você vê?”. “Tudo. Está tudo aqui”. Ele replicou. “Nós todos estamos aqui!”.

As próximas seis ou mais horas de seu passei movido a LSD não foram tão positivas ou iluminadoras quanto seu encontro com o copo de água. Entretanto, quando o jovem partiu do Zendo próximo a meio-dia, ele admitiu que, apesar de ser meio envergonhado e irritado, ele estava realmente agradecido que nós tomamos conta dele. Eu estava agradecida também.

“Tudo. Tudo está aqui”. Este núcleo de sabedoria cósmica inspirada-psicodelicamente resume porque eu acho que o trabalho de redução de danos tão importante. Nós estamos nisto juntos e nós temos muito o que aprender um do outro. Providenciar espaços seguros em festivais é uma das formas mais fáceis para tornar as experiências intensas, de auto-absorção, potencialmente perigosas em oportunidades para um insight partilhado e o crescimento pessoal.

Um rápido pulo para a primavera de 2014: eu estava dirigindo de Cape Town para Tankwa Karoo com Linnae Ponté (O Diretor de Redução de Danos do MAPS) para ajudar a coordenar: “The Sanctuary” no AfrikaBurn. Este foi o segundo ano no qual o Projeto Zendo esteve envolvido no trabalho diretamente com os organizadores do evento, vigias e staff médico para providenciar redução de danos para o uso de psicodélicos e suporte em saúde mental no maior evento regional do Burning Man do mundo. Por semanas nos providenciamos treinamento nos princípios e técnicas de redução de danos para mais de 30 voluntários, incluindo staff médico e nossos voluntários cuidaram de 50 clientes (51 se contarmos a criança deixada no nosso cuidado por 10 minutos uma manhã, enquanto a mãe dela tentava localizar seus campmates).

O Santuário na AfrikaBurn é um modelo para redução de danos em seu melhor. Nós éramos capazes de comunicar e trabalhar diretamente com o staff médico e vigias para compreensivamente acessa e encontrar as necessidades de cuidado físico e mental de nossos convidados. Nós as vezes recebemos e cuidamos de indivíduos que foram tratadas pela equipe médica, mas continuavam precisando de cuidado, lugar quente para passar o resto da noite. Algumas vezes, nós redirecionamos indivíduos para a tenda médica para receber monitoramento próximo e cuidado físico.

A droga de escolha mais popular no AfrikaBurn foi o álcool (reportado por 40% dos convidados do Santuário), que muitas vezes leva a consequências fatais, especialmente quando combinado com outras drogas. Os clientes do Santuário também reportaram uso de MDMA ou Ecstasy, LSD, cogumelos com psilocibina, cocaína, cannabis, GHB e meta-anfetamina. Próximo de 70% dos clientes reportaram tomar múltiplas drogas. A realidade do uso de múltiplas drogas, muitas vezes combinado com excessivo consumo de álcool, aumenta a importância de coordenar os esforços de redução de danos de psicodélicos com o cuidado médico emergencial em um evento de festival.

No curso da semana, nós sentamos com muitas pessoas que tinham excedido suas cabeças e estavam procurando rever o senso de segurança e sanidade. Uma noite, Linnae Ponté e eu fizemos turnos sentando com uma jovem mulher assustada e confusa que tomou o que ela pensou ser uma típica dose de LSD, mas que continuou a ser atormentada por imagens mentais intrusivas e perturbadoras mais do que 24 horas depois. Também haviam momentos lúdicos, como um que uma jovem sob efeito do Ecstasy que ficou maravilhada nas “belas decorações” e “objetos mágicos” no altar de meditação que nós montamos e, finalmente, foi por si mesma visitar outros hospedes e oferecer palavras de encorajamento: “Não se preocupe. Você está em boas mãos. Duas horas atrás, eu estava onde você está. Mas olhe para mim agora! Estou ótima! Estas pessoas realmente sabem o que estão fazendo!”. Ela me lembrou que está OK se divertir e rir e não tomar as coisas de forma tão séria. Há espaço para tudo isso. Confie, deixe ir, esteja aberto – TLO (em inglês: trust, let go, be open).

TLO era o “mantra” que eu aprendi enquanto treinava para ser uma terapeuta psicodélica na Johns Hopkins. A coisa maravilhosa sobre o TLO é que ele se aplica a pessoa cuidadora bem como a pessoa “viajando”. Eu silenciosamente repeti esse mantra inúmeras vezes enquanto cuidava de pessoas. Eu tenho proferido esta frase alto quando pessoas ficam perdidas em suas experiências ou parecem estar presas. Confie em sua própria sabedoria inata, que você tem aptidões e habilidades naturais para passar através da experiência. Confie no espaço seguro que foi providenciado por pessoas em volta de você para ajuda-lo se você precisar disso. Deixar ir as expectativas sobre o que deveria ou não estar acontecendo. Deixe ir as preocupações e julgamentos, bem como os inevitáveis sentimentos de querer controle da experiência de uma forma particular. Abra a si mesmo para os eventos incríveis que estão ocorrendo, mesmo (especialmente) as partes difíceis e assustadoras. Fique aberto para a verdade fundamental de que tudo que está acontecendo está completamente e totalmente OK.

Todo estas anedotas e núcleos de sabedoria, entretanto, eu continuamente relembro que o mais importante (e muitas vezes tedioso) dimensão da terapia psicodélica é a integração e cuidado continuo. Uma experiência pode ser selvagem e terrificante e profunda e hilária e bonita, mas o que você faz com ela uma vez que você retorna a vida ordinária? Ou, como o professor budista Jack Kornfield colocou, “Depois do ecstasy, a roupa para lavar”, eu atualmente adoro lavar roupas (doing laundry), então provavelmente não é surpresa que muitas das mais memoráveis e gratificantes experiências no AfrikaBurn ocorreram enquanto trabalhava com alguém que estava completamente sóbrio.

No domingo de manhã na AfrikaBurn, em direção ao fim do turno de uma noite, eu fui apresentada a um jovem que gastou a última noite na tenda médica. Embora a história inteira ainda não estivesse sido reunida, um dos paramédicos explicou que o jovem aparentemente teve uma overdose de um número de diferentes substâncias e passou perigosamente por experiências de quase morte em vários pontos da noite. O fato que ele estava na frente de nós, lúcido e fisicamente saudável era um milagre médico. Mas o jovem não viu desta forma. Ele estava confuso e desconfiado e sentiu que ninguém tinha entendido o que ele tinha passado. Ele tinha a forte convicção de ter morrido e experienciado um mundo livre do sofrimento. Ele não lembrava de ter sido transportado a tenda médica em primeiro lugar e sentia que ele, injustamente, tinha sido “trago de volta a vida” pela equipe médica, sem o seu consentimento. Eu sabia da minha pesquisa com psilocibina que uma experiência de morte-renascimento como essa poderia ser um importante e saudável passo no caminho espiritual de uma pessoa. E um número de voluntários que trabalhei no Johns Hopkins reportaram uma profunda experiência de sua própria morte. Mas eu nunca tinha trabalhado com alguém que não tinha trilhado a parte do “renascimento”.

Durante a manhã, nós fizemos turnos sentando com o jovem, ouvindo suas histórias e dando suporte a ele na medida em que ele lutava para tecer uma narrativa cheia de sentido de sua experiência. Ele fez algum progresso, mas ele permanecia no desconcertante sentimento de que ele “não era para estar vivo”. Observando que nossas palavras estavam oferecendo conforto limitado, eu eventualmente me ofereci para andar com ele ao templo, onde oferendas eram feitas durante a semana e seriam queimadas na cerimônia mais tarde, naquela noite. Nós caminhamos especialmente em silêncio e, quando chegamos, eu pedi a ele para sentar em frente de mim no altar. Ele sentiu lá por talvez 30 minutos, absorvendo a inteira realidade daquele espaço. Entre vários objetos e desenhos e frases inspiracionais que pessoas acrescentaram ao templo ao longo da semana, o que mais se destacava eram as fotografias de pessoas que tinham morrido. Faces novas, velhas, bonitas, engraçadas, junto com apelos de seus entes queridos, pedindo pelo fogo para trazer paz e ajudar a liberar a tristeza e raiva em torno de suas mortes. O templo, é claro, é muito mais do que morte, mas era essa a mensagem para mim e para o jovem naquele domingo de manhã. Algo “clicou” enquanto ele virava-se para mim e dizia: “Eu entendi. Eu tenho sorte de estar aqui. Estou pronto para ir encontrar meus amigos”.

Eu não tenho ideia do que aconteceu com aquele jovem depois que conseguiu encontrar seus amigos (outro milagre, como qualquer um que esteve em um evento do Burning Man pode atestar). Diferente de outros voluntários de pesquisa, eu não tenho formas de contactá-lo ou seguir (following up) para ver quão significativo (ou não) sua experiência tornou-se para ele. Mas eu continuo vendo sua face claramente em minha mente. Eu estou feliz que ele sobreviveu de sua noite sombria e que eu tive o privilégio de gastar as primeiras horas do resto de sua vida com ele. Eu sou muito grata por aquele momento de simples iluminação – “eu tenho sorte de estar aqui” – e todos os momentos que eu compartilhei com estranhos enquanto voluntariava no Projeto Zendo. Estas experiências me lembram, de novo e de novo, que a vida é preciosa e sem predicados.

Original em inglês: http://maps.org/bulletin-items/383-bulletin-winter-2014/5429-trust,-let-go,-be-open-psychedelic-harm-reduction-in-the-desert-and-beyond