Rapper, maconheiro ou analista político? Afinal, quem é Marcelo D2?

Fonte: UOL

“Quem é Marcelo De Dois?”, perguntou o então candidato Jair Bolsonaro, às vésperas do segundo turno, no Twitter. “Maconheiro” foi a resposta mais comum, tanto entre quem tentou desqualificá-lo quanto de quem estava ao seu lado. O rapper Marcelo Maldonado Peixoto, o D2, ficou famoso ao defender a legalização da maconha nos três álbuns do Planet Hemp, lançados na década de 90.

A pauta levou todos os integrantes da banda para cinco dias na prisão, em 1997, acusados de apologia às drogas. Em 2011, o episódio foi lembrado com pesar pelo ministro do STF Celso de Mello, que considerou a prisão uma “interferência brutal do processo de produção intelectual e artística”.

Violência policial, corrupção e racismo também pautam as letras do Planet. “Infelizmente, né? Canto as letras do Planet e penso: ‘Não é possível, 25 anos depois ainda é atual pra caralho. Que loucura!”.
Com 51 anos completos na segunda-feira (5), D2 já estrelou campanhas publicitárias de telefonia e cerveja, é pai de quatro filhos e já tem dez álbuns solo de estúdio. O mais recente “Amar É para os Fortes” é uma obra transmídia em forma de longa-metragem, roteirizado e dirigido pelo próprio Marcelo.

A fundação do Planet Hemp também é tema do longa-metragem “Legalize Já”, em cartaz nos cinemas, dirigido por Johnny Araújo e Gustavo Bonafé, que mostra principalmente a relação entre D2 e Skunk, membro do grupo que morreu antes de eles estourarem.

No período eleitoral, Marcelo exerceu, mais uma vez, sua verve ativista em campanha declarada contra Bolsonaro. Ele xingou muito seus fãs que apoiavam o candidato do PSL, reconquistou o coração e a mente de antigos fãs e ganhou admiração e respeito de alguns que o viam apenas como um maconheiro. Em entrevista ao UOL, Marcelo D2 fala sobre carreira, futuro e seu lugar na política.
UOL – Depois dessa onda de tuítes, você acumulou mais haters ou lovers?
Marcelo D2 – A gente tá vivendo um momento que os haters vão esquecer, mas os lovers não, tenho certeza disso. O ódio cresceu, mas os abraços são mais sinceros. Tinha prometido que eu nunca tomaria partido numa eleição, que político nenhum merecia. Mas Bolsonaro merecia, merecia que eu tomasse partido contra. Na minha cabeça, seria um absurdo que o Brasil elegesse ele, como elegeu, com toda a falácia que ele fez, desmerecendo negros, LGBTs, todas as minorias. ‘As minorias vão ter de se adequar ou serão exterminadas’, uma dessas tantas falas dele que as pessoas não acreditam. ‘Ah, isso é da boca pra fora.’ É inacreditável que um país tenha um presidente que fale isso.

Acreditei que o Twitter seria um bom lugar para o embate. Saí exausto, mas quase dobrei o meu número de seguidores [hoje ele tem 816 mil no Twitter] e minha voz foi tão ativa a ponto de o Haddad me ligar, me mandar mensagem, agradecendo. Não apoiei o Haddad, fui contra o Bolsonaro.

Na verdade, o Haddad era o melhor candidato se não fosse do PT. Ele ganharia fácil, um puta de um candidato, mas com toda a rejeição ao PT… Mas eu não sou analista político, fui lá pra xingar e arrumar confusão.

Quando Lula foi eleito, você falou no Faustão que o país finalmente havia colocado ‘um cara do povo’ lá. Alguns anos depois, na época do mensalão, você se disse decepcionado…
O Lula perdeu uma puta de uma oportunidade. Se ele tivesse saído fora depois de oito anos, ao invés de botar a Dilma, ele seria um ídolo agora, um rei. Os primeiros oito anos do PT foram muito bons. O povo nunca havia chegado lá para governar o país. Quando o povo chegou lá, a gente viu que somos uns merdas corruptos iguais a todos.

Foi bom, mas quando apareceu o mensalão… Eu tenho plena noção do meu papel como artista, que é cobrar o Lula, o Bolsonaro, o Fernando Henrique, a Dilma, quem for. Essa é minha missão, não vou mudar. Concordar com umas coisas e discordar de outras, isso é democracia e eu como artista fiz isso. Fiz com o PT e vou fazer com o Bolsonaro. Enquanto tiver democracia, vou fazer isso. Se não tiver, tudo bem: peço asilo para o Uruguai, Canadá, Amsterdã ou para a Califórnia (risos).

Você tem saudades de quando quem brigava contigo era o Caetano? (Os dois trocaram acusações pela imprensa no início deste século)
Tenho. Pra caralho! Tem uns caras tão idiotas brigando agora comigo que me sinto um idiota também. Como que eu estou brigando com esses caras? Porra, eu brigava com o Caetano, com o Fernando Henrique, gente inteligente. Agora brigo com uma cambada de anta no Twitter.

Nesse processo, vi que todo mundo passou do limite, inclusive eu, mandando fã tomar no cu, se fuder, chamando de nazista. A gente sempre acha que a nossa opinião é a que vale, a que tá certa, isso faz parte da democracia, né?

Me incomodou muito nessa eleição, e na da Dilma também, a quantidade de manipulação. Como a Dilma usou dinheiro público para fazer campanha e como o Bolsonaro usou dinheiro de empresas, o que é proibido, para disseminar fake news, disseminar ódio. Talvez essa tenha sido a eleição mais sangrenta que o Brasil já teve, nem na ditadura a gente se dividiu tanto. Foi tenebroso isso.

Diferente de você, muitos rappers se omitiram da discussão eleitoral, ou mesmo apoiaram ao Bolsonaro, como você vê essa atitude?

Thaíde [o pioneiro rapper paulista] me mandou um áudio no dia do nosso aniversário, porque a gente nasceu no mesmo dia, mês e ano. Ele falou umas 18 vezes: ‘Tou decepcionado, depois de 25 anos fazendo rap ver neguinho apoiando um fascista desse, a gente não deveria ter feito rap, a gente deveria ter deixado o rap morrer pra não deixar chegar nesse lugar’. Isso é triste, um cara que apoia isso e faz rap não entendeu nada. Vai fazer sertanejo, vai fazer outra merda, rap não, tá de sacanagem.

Sei que a gente vive numa democracia, mas rap é música de excluído. O cara faz rap e fica do lado de um cara que oprime minorias? Não pode fazer rap e ficar do lado do patrão, lamber coturno desses caras.

Neguinho não entendeu porra nenhuma do que a gente falou em 25 anos! Indo para cadeia, tomando porrada da polícia… Os playboyzinhos que fazem rap e moram no condomínio ficam no ‘zapzap’ lendo fake news e dizendo: ‘PT não!’ Porra, não fode!

A entrada dessa galera ‘playboy’ no rap não tem a ver com a própria ostentação promovida pelo rap?
Não. A ostentação não tem a ver com playboyzada, ostentação tem a ver com auto-afirmação, tá ligado? Quando o cara joga que tem dinheiro, armas, carros e mulheres, isso tem a ver mais com: ‘Você me oprime, mas olha aqui, eu tenho! Tudo que você tem eu tenho também!’ Esse lance da playboyzada tem a ver com essa pá de rapzinho pra pegar mina, de querer tocar rap num violão no sarau da escola ou no lual da Barra. Sorry, não dá! Toca Legião Urbana, Raul Seixas, tá bom.

O governador eleito Wilson Witzel (PSC) defende a “lei do abate”, que permitiria a polícia atacar com ‘snipers’ e drones pessoas portando fuzis. Como você vê essas recorrentes pautas de guerra na segurança pública do Rio?
É tão idiota! Eu vi que a Holanda tá com problema nas prisões, tá faltando gente. Vão fechar duas prisões porque não tem gente pra prender. Comentei isso no Twitter e um cara foi lá e disse: ‘Ah! É porque lá as drogas são legalizadas’. Não é mais fácil legalizar do que parar de prender gente, botando todo mundo na cadeia? Lá tem um dos menores índices de criminalidade do mundo. Todos os lugares onde as drogas são legalizadas ou toleradas os índices caem. Esse tipo de coisa é falácia pra sair no jornal, coisa de justiceiro, de miliciano. É para ganhar voto, não para resolver o problema.

As mais recentes conquistas do ativismo canábico no Brasil foram as autorizações judiciais de cultivo para fins medicinais. Quais suas perspectivas com essa atual guinada ao conservadorismo?

Não só na questão da maconha, como em qualquer questão de avanço de direitos civis e humanitários. Nunca serão direitos conquistados, a gente vai ter que acordar todo dia e lutar por eles, todo dia vai ter alguém querendo roubar nossos direitos, todo dia vai ter alguém questionando. ‘Será que um homem pode ter relação com outro homem?’, como se fosse possível negar uma coisa dessas. Fumar maconha, manter relações sexuais com pessoas do mesmo sexo não é possível proibir isso. Pode até por lei, mas nunca vai deixar de existir. É uma babaquice. A gente pensava que tava ruim, mas sai o vampiro e entra o demônio.

Você se encontrou com o Mujica no Uruguai. Como foi esse encontro?
Foi incrível! Fui lá pra falar de maconha com ele, mas ele é um humanista, né? Como quase todo maconheiro. O Mujica é um humanista, um cara que se preocupa com o ser humano. Fiquei duas horas com ele e é aquele tipo que, quando você encontra, você sai mudado. Ele mora meio afastado de Montevidéu, e eu fiz a viagem de volta em silêncio. Foi uma coisa linda. A gente se preocupa muito com o que está fazendo no mundo, não só em ganhar dinheiro e comer as minas, e ouvir um cara desses é muito importante. Quando eu cheguei lá, ele estava plantando flores, que depois ele colhe e vai dar pras mulheres da periferia, pra levantar a auto-estima e tal.

O que tu quer mais na vida? Chegar aos oitenta anos e plantar flor, cara.

Você falou no show do Planet na Fundição Progresso, no Rio, na semana passada, que se der ruim vai pro Uruguai. É um plano?
Estou velho pra ficar aqui apanhando de polícia. Estamos em 2018, apanhar da polícia porque fuma maconha? É isso que eles querem fazer com o Brasil? Fazer virar um país fascista? Enfia esse fascismo no cu, então. Eu vou lutar com todas minhas forças para que não, mas tem terra pra ir. A gente pode escolher lugares que afine com as nossas ideias, Europa, Estados Unidos, onde a maconha é legalizada em vários Estados, Canadá… Os caras estão com medo que aqui vire uma Venezuela, mas colocam um militar para virar a Venezuela mesmo. Proibir tudo, mandar tiro nos bandidos, sendo que bandido é quem não concorda com eles.

Lógico que eu sairia daqui, mas vou lutar até o fim. Se não der, eu não vou por minha vida em risco, principalmente, minha sanidade mental e meu bem-estar. Vou arrumar um emprego de floricultor, plantar maconha em outro lugar e ser feliz.

Essa gente não quer ser feliz e não quer deixar os outros serem felizes. Esse é o plano de vida deles, ser infeliz e deixar os outros infelizes. Esse é o tipo de Brasil que os caras querem. Ser infeliz e ficar trancado vendo fake news, sendo manipulado, querendo que todo mundo seja que nem eles, sem liberdade pra ninguém.

No decorrer do último ano você gravou, filmou e lançou “Amar É para os Fortes”, ao mesmo tempo o “Legalize Já” ganhou vários prêmios, como você avalia esse período?

No ano que passou, eu tava no meio de um processo criativo super animado. Depois que tu lança, dá aquele hiato, aquele vazio, mas ainda me sinto muito animado com o que vem pela frente. Já estou com vontade de fazer um disco novo. Quero acabar de lançar este, fazer uma turnê e fazer um disco novo. Tou pronto cara, tou pronto pra mais 50.

No dia do meu aniversário [na segunda-feira passada], fiquei em casa agradecendo. A palavra que eu posso usar é abençoado. Não sou nada religioso, mas fui um cara abençoado. Escolhas foram feitas, mas soube aproveitar bem o que a vida me deu.

Eu aproveitei toda a sagacidade, essa malemolência, essa malandragem que o Rio de Janeiro tem e usei ao meu favor. Podia ter sido ao contrário, podia ter usado contra mim, podia ser um cara amargurado, reclamando pra caralho. Eu visto a camisa do suburbano feliz, a minha vida enquanto jovem, adolescente e criança era uma vida feliz. A gente era pobre, mas feliz. Não tinha essa coisa de pobre coitado, era pobre e ponto final.

“Amar é para os Fortes” explora vários ritmos. Mesmo você estando presente em todo o álbum, tem músicas que você não canta. Como o público entendeu esse novo álbum?

É uma loucura. É meu melhor disco dos solos — entre os do Planet, não sei. Ele foi meio engolido pela eleição. Tava falando isso com o Filipe Ret, que também lançou disco agora. A gente não consegue falar do disco, porque se fala da música tal, dizem: ‘Ah, petista filha da puta!’ ou ‘Ah, comunista desgraçado’. Esse disco me enche de orgulho, toda a história dele. É um disco super importante pro momento, porque é um momento pra falar de amor mesmo e espalhar isso.

Aos 50 anos, fazer uma obra tão complexa, tão cheia de nuances é importante pra me sentir vivo como artista. Poucos artistas chegaram aos 25 anos de carreira com esse gás ainda. Não estou regravando música nem sentado em cima da minha obra.

Estou fazendo coisa nova, sendo criativo. Tem um mundo novo abrindo pra mim, comecei a dirigir [filmes] agora, quero estudar cinema, quero estudar roteiro, direção, trabalhar mais com isso.

Já tem ideia de como vai ser esse próximo disco?

Devo ao público um disco popular, sabe? Por mais pop que eu tenha sido, nunca fiz um disco realmente pop. ‘À Procura da Batida Perfeita’ pode ser meu disco mais pop, mas na época era super underground. Ninguém imaginou que rap com samba ia dar certo e eu transformei essa porra em pop, tá ligado? Em 2003, saiu o ‘À Procura…’ e, um ano antes, ‘Nada Como Dia Após o Outro Dia’, do Racionais, foi aí que o rap bombou no país.

Quero fazer um disco popular mesmo, no sentido de música popular brasileira, não MPB. Samba, usar ritmos brasileiros, cantar um pouco mais. Tá começando a ideia na cabeça, da ideia pro papel, pra prática, as coisas mudam, mas eu queria fazer um disco um pouco mais popular. Meus discos são um pouco difíceis de entender, a galera tem que usar um pouco a imaginação, a cabeça, isso foi minha tônica sempre como artista, não dar nada de mão beijada, fazer com que as pessoas pensem.

E como vai ser o show e turnê do “Amar é Para os Fortes”?
Estou pensando ainda, vai ser bem visual, porque é um álbum visual. Vamos relançar o filme com a turnê nova a partir de janeiro, mas ainda estamos vendo isso. No Brasil, a gente não faz planos a longo prazo, né? Daqui a dois meses o Bolsonaro assume e o Brasil pode virar outra coisa, espero que não mude tanto. A mudança tanto esperada vai ser pra pior, né? Tomara que nos quatro anos ele faça tudo que fez nos 27 anos de mandato como deputado: nada.