Psicodália, o festival em SC que segue tendência mundial de comportamento

Fonte: Diário Catarinense

O dia amanhece na Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho, região Norte de Santa Catarina. Algumas caras inchadas de sono surgem para fora das barracas. Pessoas se espreguiçam com os pés em contato direto com a grama ainda úmida do sereno que cai sobre a Serra Dona Francisca. Saúdam o sol ou umas às outras. 

Umas se encaminham aos banheiros de alguma das cinco áreas de camping, outras seguem até a área central do 19º festival multicultural Psicodália, cuja maior edição ocorreu no último feriado de Carnaval, com cerca de 5 mil passaportes vendidos. As atrações abrangem oficinas, apresentações de teatro, mostra de cinema e shows musicais, que parecem até ficar em segundo plano frente à vida em comunidade possível ao longo de cinco dias de evento. Festivais como o Psicodália, e também como Coachella, Tomorrowland, Glastonbury e Burning Man, buscam no precursor do final da década de 1960 Woodstock uma experiência de imersão em música, arte e alternatividade. 

 

Psicodália reúne 5 mil pessoas no feriado de Carnaval em Rio Negrinho

Há quem pegue o violão e comece a tocar no puxadinho da barraca. Arnaldo Soares, 54, é um desses músicos que faz do mato do Psicodália seu palco. O técnico da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Curitiba conta que gosta de trocar o escritório pela fazenda por cinco dias há três anos. 

– O que eu mais gosto é da convivência. Fazer amizade com as pessoas, trocar ideia com o vizinho, cozinhar junto. Ontem toquei a tarde toda para o pessoal que estava na lagoa. Às vezes nem vejo os shows, só os que eu gosto muito, para me inspirar – revela à pequena plateia ao redor de seu acampamento, que inclui a reportagem do Diário Catarinense, hospedada por três noites próxima ao músico. 

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Cristina Silvana Basso, 34, acredita que seja possível levar esse comportamento para além do festival: 

– No ano passado ficamos com as barracas bem isoladas dos palcos. Para curtir a relação de vizinhança mesmo. Acho que as pessoas são assim também fora daqui – arrisca a estudante. 

O formato do Psicodália, cujos pacotes incluem as diárias no camping, permite a integração. Outros espaços que formam vila na fazenda – como a cozinha comunitária, o bazar e a área de recreação infantil e adulto – propiciam isso. Mas é a postura dos participantes que permite a vivência em harmonia. A colaboradora da mercearia do festival, Ariele Vaz, 21, comprova isso. 

– Esse [música independente principalmente voltada para o rock e vertentes] nem é muito meu estilo. Eu prefiro festivais de música eletrônica. Mas gosto de trabalhar aqui, o clima das pessoas é muito bom, muito positivo – diz, com um sorriso a cidadã de Rio Negrinho que trabalha no Psicodália pela segunda vez. 

O festival independente é realizado desde 2001. Começou como um projeto experimental em Angra dos Reis (RJ) para bandas autorais se apresentarem para 150 pessoas. De lá para cá, passou por Morretes, Antonina e Lapa, todas no Paraná. O Movimento Psicodália foi criado em 2003 por Klauss Pereira, Manuela Santana, Alexandre Osiecki e Julianna Henriques. Em 2006, passou a ser realizado no feriado de Carnaval em Santa Catarina, em São Martinho. A Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho, abriga o Psicodália desde 2009. 

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Contato com a natureza é inevitável

Não há sinal de celular na Fazenda Evaristo. Apenas uma operadora oferece rede aos participantes, inclusive com venda de chips, mas a adesão é baixa. Poucas pessoas transitam pelo espaço com smartphone em mãos. O contato com a natureza é consequência. Ainda pela manhã, é comum observar homens e mulheres nadando – alguns nus, sem constrangimentos – no lago próximo a um dos campings. No caminho, um grupo pratica yoga na direção do sol ao lado de uma roda de capoeira. Já à tarde, há convites em cartazes feitos a mão para passeios a trilhas que levam à cachoeira. Em qualquer hora do dia é possível cruzar a fazenda em uma tirolesapor R$ 30 – foram em média 100 saltos por dia no evento. 

A temática natural também esteve presente em 11 das 30 oficinas oferecidas no Psicodália. Na de Técnicas Primitivas, por exemplo, o estudante de Arquitetura e Urbanismo que vive em apartamento, mas que acampa desde criança, Diogo Feltrin, 29, repassou a 20 participantes ensinamentos de como manter-se na selva. No primeiro dia, ensinou a construir uma armadilha para peixes e, no segundo, a fazer fogo sem combustível. 

– Eu não trago materiais prontos, porque o que interessa para mim é vocês saberem o que fazer com o que encontrarem na natureza – alertou, enquanto os alunos lascavam os pedaços de bambu. 

A natureza é igualmente contemplada nos cardápios pagos em Dálias, a moeda do evento. O estoque de hambúrguer vegano, por exemplo, acabou ainda no domingo, comprovando a demanda por uma alimentação sem carne e menos poluente. Já no restaurante que cobrava R$ 35 o quilo, havia mais opções verdes que animais. 

 

Lições de sustentabilidade para levar adiante

Essa foi a quarta edição do evento em que se pensou a sustentabilidade. Banheiros secos são distribuídos pela fazenda e garantem a economia de água. Áreas de coleta e triagem de resíduos recicláveis também foram montadas e permaneciam cheias na maior parte do tempo. Ainda que seja ¿proibido proibir¿, os espaços para fumantes foram delimitados em conformidade com a lei brasileira. A estudante de Letras Helena Stürmer, 25, fumava em um espaço autorizado, mas preocupou-se em depositar as cinzas no lugar certo. 

– Aqui a gente se inspira ainda mais a buscar o equilíbrio – confessa, enquanto guarda os resíduos em um potinho de plástico para, posteriormente, jogar no lixo. 

Para os organizadores do festival, todas as ações são feitas para priorizar o bom senso: cuidar da terra, dos animais e dos seres humanos, tratando todos com respeito. 

 

Palcos para estrelas e amadores

A atração principal dessa edição do Psicodália ficou a cargo da banda de Los AngelesJohn Kay & Steppenwolf, deixando clara a vocação rock¿n¿roll do festival. Elza Soares, Nação Zumbi e Naná Vasconceloscompletaram o line-up e, finalmente, valorizaram a produção musical brasileira. Foram 56 shows que começavam às 13h e só terminavam quando o dia seguinte amanhecia. 

Júlio César, 34, veio do interior de São Paulo para assistir à banda nem tão mainstream Violeta de Outono– que se apresentou pela primeira vez no festival em Santa Catarina. Ele e a companheira vêm ao Psicodália há seis anos: 

– Estou muito emocionado em poder assisti-los aqui, porque conheço a banda faz tempo e acho que eles são uma das melhores coisas que a música brasileira já produziu. Mas se apresentar aqui, com essa energia, é diferente. 

No intervalo das apresentações no palco, outro espaço é frequentado pelo público: o lounge da radiokombi (98,7 FM na Fazenda Evaristo). A estação de rádio interna do Psicodália tem programação 24h composta por notícias do festival, recados emitidos entre participantes e, principalmente, música de qualidade. A seleção é eclética: desde cumbia até clássicos do Leste Europeu, que fazem todas as tribos dançarem. O programa Me toca, radiokombiainda dá espaço aos novos artistas que participam do festival. 

 

Tentativa de diminuir consumo de drogas

Há algumas expressões que se repetem a cada Psicodália. A mais famosa versa sobre a história de Wagner, cujo nome é repetido (gritado) aleatoriamente por boa parte dos participantes a qualquer momento do dia ou da noite. 

Reza a lenda, confirmada pela organização, que ele participou de uma edição ainda em São Martinho e se perdeu, provavelmente sob efeito de ácido. Foi quando um amigo decidiu procurá-lo: “Wagneeeeeeeer”. E o nome ecoava no vale do Psicodália. Ele não foi encontrado naquele festival. Só depois do feriado, e passava bem. 

A versão dos participantes é de que Wagner vendia aquilo que talvez tenha causado seu sumiço. Por esse motivo, todos o procuram até hoje em tom de gozação. 

A história retrata o consumo de drogas no local, principalmente LSD e maconha, apesar de haver rondas da Polícia Militare da própria segurança do Psicodália desde a penúltima edição. A organização reconhece e diz que tenta combater a prática. 

– A gente sabe que há consumo de drogas, como em qualquer outro festival. Mas não apoiamos esse comportamento e, inclusive, chamamos a segurança para intervir sempre que possível. Infelizmente, não há como ter controle absoluto, porque são quase 6 mil pessoas em uma área enorme. A única droga permitida é o álcool – relativiza a coordenadora de comunicação do Psicodália, Eloísa Misturini

Bebidas alcoólicas de todos os tipos também são consumidas, mas em menor escala. Por consequência, brigas, discussões ou comportamentos agressivos não são vistos no festival. Nem mesmo quando o bloco de Carnaval Cachaçadália, organizado desde 2013 por uma excursão de participantes de Florianópolis, sai pelas ruas do acampamento convidando as pessoas a se juntarem com cachaça em mãos. 

– Percorremos toda a fazenda e conhecemos muita gente. Essa é a graça. Nunca aconteceu nenhum problema, exceto quando uma menina resolveu descer o morro rolando e acabou quebrando a perna. Acho que o pai dela não gostou muito de vir buscá-la – conta Emílio Monteiro, 28, que é um dos organizadores do rito quase carnavalesco.

 

O Psicodália em números

19ª Edição do evento 

56 Bandas e músicos 

5 Palcos – Palco do Sol (apresentações começam à tarde); Palco Lunar (apresentações começam à noite); Palco dos Guerreiros (apresentações começam na madrugada); Palco do Teatro; e Palco Livre. 

Demais estruturas – Praça de alimentação; quatro bares; cozinha comunitária; cinco campings com cerca de 300 banheiros; estacionamento; bazar; segurança. 

Funcionários – Em torno de 600 entre contratados e participantes que trocaram mão de obra por Dálias (moeda do evento). 

Área e atrações da Fazenda Evaristo, em Rio Negrinho – 500 mil metros quadrados de área verde, sendo 2 mil metros quadrados correspondente ao galpão principal. A fazenda tem lago, trilhas e cachoeira. 

30 tipos de oficinas ministradas 

5 mil ingressos vendidos – Maioria do público é dos Estados da região Sul.