Partiu o último hippie: adeus, Serguei

O rockeiro mais antigo do país partiu na última sexta-feira, 7 de junho. Aos 85 anos de idade, abandonou o seu “Templo” para florescer por outras galáxias. Sérgio Augusto morreu mas eternizou um personagem inesquecível do rock e psicodelia nacional: Serguei!

texto produzido para a RockPress

Viveu em nome da liberdade, respirava a contracultura, falava a língua do sexo e psicodelia. Era uma entidade viva do rock nacional. Após onze dias de internação no Hospital Zilda Arns, em Volta Redonda, o alucinado e eterno “Divino do Rock”, Serguei fez o dropout dessa existência.

Para escrever sobre ele, ou mesmo para ler sobre o tal Sérgio Augusto Bustamante, ou ainda para se mergulhar em busca da compreensão da essência dessa figura, é mesmo imprescindível um pouco de LSD. Porque não? Faz parte da imersão na sequela, na certa letargia, nos tiques e talvez alguma dislexia presente no ídolo, marcas de batalhas severas de noites e dias de tesão e delírio a fio. Sem falar nos cachorros, no museu e na dívida da padaria, em Saquarema.

“A vida é um álbum do Pink Floyd. Você não entende nada mas acaba embarcando na onda. Aí faz sentido”, disse Serguei no Twitter. Por lá, nos últimos anos, conseguiu destilar sua irreverência e deboche quanto ao atual governo e sua caretice. Também pudera, é experiente nisso. Em 1967, durante a ditadura, apareceu na Avenida Rio Branco com um cartaz escrito: “Abaixo o convencionalismo! Viva a alegria, viva a vida!!! Proclamo a autenticidade e o direito de ser jovem e feliz! Chega de guerra, chega de tristeza, chega de medo. A era nova chegou! Viva o Rio! Viva os ‘Beatles’! Lanço meu grito de vida e meu protesto jovem”, carregou, vestido de Mao Tse Tung.

Taxado como louco, visto como excêntrico e bissexual assumido. Morreu na última sexta-feira, dia 7 de junho, um ser que viveu a sei lá quantos anos a luz de seu tempo. Nascido em 1933, nem mesmo os mais experientes ciganos de Woodstock poderiam prever que, pelo ritmo da carruagem, ela duraria tanto tempo. Com 75 anos de idade esteve frente a frente com Jô Soares, junto com a banda Pandemonium, em entrevista que começa com Serguei dizendo: “continuo com minha epiderme transbordando erotismo”, no que Jô pergunta se isso é doença e ele rebate “não, não é doença. É uma festa na vida, né”.

Filho único nascido no Rio de Janeiro, ganhou o apelido pois tinha um amigo da Rússia que lhe chamava de “Serguei”, o correspondente a “Sérgio” em russo. O nome virou. Com 12 anos foi retirado do terceiro mundo e levado a Nova Iorque, onde viu de perto a efervescência dos movimentos estudantis e contracultura. Cerca de dez anos depois, voltou ao Brasil e teve breves carreiras profissionais. Primeiro no Banco Boavista, onde foi demitido. E depois ganhou os ares, conhecendo boa parte do mundo, como comissário de bordo nas empresas Loyd Aéreo, Cruzeiro do Sul, Panair e Varig, por onde colecionou outras demissões além de muitas histórias.

“Fale tudo que você tem contra o Rock ‘n Roll?”, provocou Antônio Abujamra certa vez, no que ele respondeu, risonho: “Nada. Ele nasceu em berço de ouro, de puro ouro e brilhantes”, e se infelizmente parte desse tesouro não iluminou o baú de Serguei, ele ainda assim soube viver e morrer de cabeça erguida, feito um soldado de sua cultura, batalhando pela manutenção de seu próprio museu: o do rock, o da vida livre, o do sonho hippie. O museu de nós mesmos, se pudéssemos ser um terço do que foi Serguei.

Sua casa em Saquarema era considerada um “Templo do Rock”. E o que deve acontecer com esse espaço é uma metáfora do que deve estar acontecendo agora com o Rock. Uma de suas mais famosas histórias é que teve um romance com Janis Joplin. Não importa. O lábio carnudo que lembrava Mick Jagger dizia mesmo o que dava na telha. Não à toa, em seu primeiro compacto ele canta “As alucinações de Serguei”. Gritando e debochando da Jovem Guarda, quebrava tabus em 1966.

Pulando de gravadora em gravadora, viveu de compacto simples até 1984. No single “Eu Sou Psicodélico” (de 1968, com play acima) canta sem vergonha seu estilo de vida: “A vida para um hippie, é mais vida… o mundo é uma flor”. Em toda sua carreira, apenas um long play desabrochou. Foi o “Coleção de Vícios”, lançado pela RCA BMG Ariola em 1991.

Ao longo desse quase um século de história, o cantor que também estudou teatro chegou a atuar no filme “Toda Vida em Quinze Minutos”. Fora isso, subiu duas vezes no palco de um dos maiores eventos de Rock do mundo, o Rock in Rio. Ele foi convidado na segunda edição do festival, que aconteceu no mesmo ano de lançamento do seu álbum. E depois, em 2015, dividiu o palco com Rodrigo Santos, do Barão Vermelho.

É claro que uma personalidade única como Serguei virou livro e filme. As cenas de um dos documentários seguem inéditas, mas a obra literária foi publicada em 1997, com o título de “Serguei, o Anjo Maldito”, assinado por João Henrique Schiller, publicado pela CZA Editora. Já o filme “Serguei, o Anjo Maldito do Rock Brasileiro” foi lançado em DVD duplo, mas pode ser assistido AQUI.

Ele se aventurou a cantar algo como samba ou salsa em algum de seus compactos. Também chegou a se candidatar a deputado ou vereador em sua cidade do coração. Mas o que fez de mais legítimo e apaixonado foi vestir a faceta do rock, sem titubear, transformando-se em um exímio representante da porralouquice.

Serguei morreu. Vai para dentro do caixão, o mais antigo representante do rock nacional. Eu duvido muito que o presidente da república conceda honras em seu nome, como fez atualmente a respeito da morte do Mc Reaça. Mas tudo bem. Sua morte não deve ter tanta cobertura e comoção quanto se fosse o “rei”. No entanto, eu consigo imaginar perfeitamente que país viveríamos se, ao invés de Roberto, tivesse Serguei no especial de natal.

Pelo menos a prefeitura de Saquarema decretou luto de três dias. Seu “Museu do Rock”, que era administrado por ele, tem acervo composto por roupas, centenas de discos, premiações, livros, revistas, filmes em VHS e cartazes sobre o cantor e outros ídolos do gênero. O local é tido como ponto turístico da cidade. Ali deve descansar a alma empertigada de Serguei.

Certa vez, no programa Provocações, foi questionado: “O que você pretende encontrar ao morrer, além do imenso e silencioso nada?”. Respondeu: “Espero encontrar o rei do rock n roll do Brasil, Sérgio Murilo e Celly Campelo, que juntos dominaram toda geração dos anos 50 e são, até hoje, incomparáveis”, disse. Quer dizer, não bateu saudade do Jimmy nem da Janis… primeira gig no além vai ser nacional, provavelmente ao som de Broto Legal, dando boas-vindas a Serguei no céu, ou onde quer que esteja. Certamente, no limbo eterno entre símbolo da loucura e simulacro da psicodelia. Morreu o último hippie. E talvez tenha se extinguido a espécie, pelo menos no mainstrem.

A morte não é necessariamente ruim. Diferente de tantos ícones do Rock, Serguei viveu em abundância – se não financeira, sim de saúde e experimentações. Seu sucesso pessoal era intrínseco à postura de rockstar. Já muito velho e muito louco, devia dar trabalho na UTI, de onde fechou os olhos para sair da vida e entrar na história. Eternizado não só na obra musical, mas pelo estilo incompreendido. Não só nas canções, mas também em entrevistas memoráveis, cheias de humor e relatos de sexo. Pelos próximos meses e anos, num processo de decomposição em fractais, a terra há de comer uma refeição rara, repleta de inconformismo e iconoclastia. Dessa fertilização alucinógena, há de brotar flores analgésicas por cada canto onde um careta assobiar o hino nacional. Indo pelos lençóis freáticos, gotas de seu sangue lisérgico, hão de alcançar o centro da Terra. Lá, borbulhar por séculos, até numa erupção mágica de um solo de guitarra ou gozo na árvore, outra vez nascer Serguei.