A nossa causa é um segredo contido num segredo, um segredo bem protegido, um segredo que só serve a um segredo, um segredo velado por um segredo.
— Ja’far al-Sadiq (m. 765), VIo
Imam fatimida
Lendo os historiadores nacionais sobre a época da fundação de Portugal, fica-se com a ideia de que os mouros que então habitavam as regiões entre o Douro e o Algarve existiram principalmente para levar valentes traulitadas dos nossos antepassados. Noções simplórias como esta, se bem que estimulem uma certa auto-estima coletiva, têm o inconveniente de reduzir o passado a uma fantochada literal, quando, pelo contrário, a riqueza e complexidade da História é tal que chega a desafiar a interpretação – como nos permitem constatar, se nos dermos ao trabalho de os analisar mais a fundo, os povos a quem chamamos distraidamente mouros.
Quando falamos em mouros estamos a referir-nos às tribos berberes Macemuda e Zenaga, que em 711 invadiram a Península Ibérica a partir do Norte de África. Estas populações eram de obediência maioritariamente fatimida, um movimento político-religioso originado no Magrebe cujos seguidores se consideravam herdeiros espirituais de Fátima, a filha de Maomé, e enquanto tal legítimos representantes da fé islâmica revelada pelo Profeta.
Basicamente, o fatimismo era uma teologia de índole messiânica que favorecia a religião interior e individual, alegando que a leitura alegórica do Corão “abre as portas à espiritualidade, aos segredos da gnose e só está ao alcance dos iniciados” — um entendimento que se encontra nos antípodas do professado pelo islão ortodoxo (sunismo), que impõe uma leitura literal dos textos sagrados e rejeita todo o misticismo.
Nota: Dado que na era medieval as diversas correntes heréticas islâmicas quase não se distinguiam entre si, neste texto usam-se de forma intermutável com fatimismo os termos ismaelismo, chiismo e sufismo.
A época de maior proeminência fatimida no Oriente foi o Califado Fatimida do Cairo (959-1171), que “marcou o islão pela criatividade intelectual e artística, e pela tolerância religiosa”. Os fatimidas medievais viveram porém em conflito permanente com o islão legalista, por vezes devendo organizar-se em confrarias secretas e guerrilheiras. “Os séculos de luta entre os fatimidas e os ortodoxos sunitas (X-XII) foram a única época de criatividade científica e cultural do islão (…). Passado esse desafio [com a supressão dos fatimidas], instalou-se no islão o obscurantismo e o pasmo, até hoje”.
Ora sucede que entre as técnicas iniciáticas usadas pelos místicos islâmicos medievais contava-se o consumo de haxixe, que “estava muito divulgado entre os fatimidas” devido ao seu efeito de “elevar a imaginação até atingirem uma beatífica tomada de consciência das alegrias do mundo futuro”, e por ser “inspirador das mais selvagens especulações panteístas, as mais desordenadas fantasias metafísicas, as mais incríveis visões e êxtases, as mais variadas alucinações”
Outras técnicas iniciáticas fatimidas referidas na literatura são a recitação ou repetição exaustiva (lihikr), a dança e a sodomia.
O mais certo mesmo é que o haxixe fosse o principal meio usado pelos fatimidas para atingir a Iluminação; considerações sobre o sufísmo medieval
como “os efeitos da iniciação traduzem-se por um caudal de visões” e “o iniciado nesse grau começa a ver coisas” são consistentes com as experiências induzidas fiavelmente pela cannabis psicoativa. Acresce ainda que estes místicos não sentiam pudores quanto aos meios a utilizar para vislumbrar o Oculto, pois “[para os sufis] a experiência visionária pode ser o único critério de perfeição espiritual”. Os seus inimigos, esses, nunca tiveram dúvidas sobre a questão — “Quanto aos seus pretensos êxtases e visões, é o efeito do haxixe ou cânhamo indiano, drogas proibidas pela religião,” lê-se num libelo anti-sufi publicado pelas autoridades iranianas contemporâneas.
A conexão dos fatimidas com o haxixe é tão íntima que os dois termos chegam a ser sinônimos — assim, a mais notória seita fatimida oriental, a Ordem dos Irmãos da Sinceridade (ou da Pureza), cuja existência Marco Polo revelou à Cristandade, era conhecida no islão por hashashin, os consumidores de haxixe. Sob o efeito do haxixe, dizia-se, os iniciados nesta ordem tinham visões do Paraíso, que os inspiravam a obedecer cegamente aos seus chefes, executando com zelo suicida as missões terroristas e de espionagem que lhes eram confiadas. Tão temida era a seita pela sua eficácia na execução de assassinatos políticos que, ao latinizar-se, a palavra hashashin originou o termo “assassino”
Os hashashin estão na origem da conspiração dos Iilurninatí, na versão desta sociedade secreta congeminada pelo romancista e ensaísta Robert Anton Wilson; ver O Livro dos llluminati (Via Optima, Porto, 1999).
E foi como “os Assassinos” que a confraria fatimida-hashashin se tornou lendária, embora as suas atividades ultrapassassem largamente a arte de eliminar líderes sunitas e cristãos. Com basee em Alamut, uma fortaleza inexpugnável situada junto ao Mar Cáspio, no atual Irã, a seita tinha por missão antes de mais combater a ignorância, considerada responsável pela submissão do povo ao literalismo sunita. Neste espírito, os hashashin criaram uma rede de escolas de “estudos gerais” (madrasas), as quais serviram de modelo às universidades europeias, e compilaram a enciclopédia Rossaila, considerada a primeira súmula do saber humano. O maior líder hashashin foi o Imam Hasan i-Sabbah (1090-1124), mitificado nas crônicas cristãs medievais como o Velho da Montanha.
“Entre os seus, a ordem [dos hashashin] também era conhecida por Os que pregam a verdade interior (batinitas), Os que se sacrificam (fidai-yun) e Os que ensinam”. Em Os Templários na Formação de Portugal, Paulo Alexandre l.oução considera: ” [É] evidente o papel destas elites árabes, nomeadamente os mestres sufis e os assassinos, na transmissão do saber clássico perdido. Foram um elo da cadeia hislórica”.
Sabe-se ainda que, no decurso das Cruzadas, a ordem dos Templários estabeleceu contatos com as facções fatimidas do oriente, em particular com os hashashin, os quais “causaram nos cristãos uma forte impressão de simpatia” De fato, os supostos Infiéis revelaram–se irmãos espirituais:
“O ismaelismo podia passar por uma seita cristã gnóstica: a imamologia [culto dos Imams] é conversível numa cristologia de coloração gnóstica, e Fátima a Resplandecente corresponde a Maria; a escatologia e o messianismo são idênticos numa e noutra religião”. Dado o secretismo envolvido, poucas certezas há sobre a extensão das relações entre as duas confrarias; mas chega a falar-se numa “cavalaria ecumênica’ englobando os cavaleiros cristãos e os cavaleiros do islã (que eram os hashashin), uma nova versão dos Cavaleiros do Graal”. Certo é que “conluio com os islâmicos” foi a acusação mais grave lançada contra os templários aquando do seu julgamento pelo rei francês Filipe o Belo, que conduziu à extinção da ordem em 1314.
É de notar que os hashashin e as suas técnicas iniciáticas antedatam de vários séculos a Ordem do Templo, que foi fundada por volta de 1118, em Jerusalém, depois dos cruzados terem conquistado a cidade aos fatimidas. A influência destes na nova confraria pode ter sido seminal; assim, em Portugal Razão e Mistério, o filósofo nacionalista António Quadros refere as “enigmáticas relações dos templários com os ismaelitas da Palestina, em especial com a organização mais ou menos secreta dos Assaci ou Assacine (…) sobre a qual a Milícia Cristã parece ter sido moldada na sua hierarquia e composição” (itálico nosso). Quanto ao papel do haxixe no desocultar do mysterium tremendum, os fatimidas tê-lo-ão revelado aos templários? Esta questão, apesar de óbvia e pertinente, não é abordada pelos historiadores; aparentemente, tal heresia é admissível apenas no âmbito da ficção histórica — e Umberto Eco, em O Pêndulo de Foucault, romance sobre o Segredo dos Templários, refere OS rituais “que os Templários efetuavam sob a influência do primeiro segredo que tinham aprendido no Oriente, o uso do haxixe”. A ser assim, terá a mística templária sido influenciada por experiências visionárias com haxixe vividas pelos cruzados? É o que sugerem certas inspirações obtidas pelos templários na Palestina, as quais tresandam a motes do movimento “paz e amor” dos anos 60, quando o consumo de marijuana se disseminou entre a juventude ocidental: “Instruídos provavelmente pelos fatimidas do Cairo, os templários conceberam a possibilidade de um universalismo religioso pacifista”
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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