Os efeitos psicóticos e antipsicóticos da maconha

por Fernando Beserra

THC-model- -budHoje começa aqui na coluna Portas da Percepção um assunto que pretendo estender em outros posts. Maconha e esquizofrenia é um tópico com vasta referência bibliográfica e com discussões (e supostas conclusões) que, no mínimo, se contradizem. Vamos começar a nos esmerar nesta complexa teia e, quem sabe, produzir algumas respostas.

Uma das discussões bastante atuais e citadas por nomes de peso nas pesquisas sobre cannabis é a relação entre os cannabinoides Delta-9-THC e CBD. Para terem uma ideia, é de 1982 o primeiro estudo da relação entre o canabidiol (CBD) e as suas propriedade antipsicóticas. O CBD, quando administrado junto ao principal princípio ativo da cannabis sativa, o THC, reduz a ansiedade e propriedades denominadas como psicotomiméticas (que imitam a psicose). O termo psicotomimético não deve surpreender muitos psiconautas, atentos à discussão quantos a aproximação forçada entre consumo de psicodélicos e efeitos alucinógenos, que imitariam uma psicose ou, dizendo de forma mais específica, um transtorno esquizofrênico ou esquizofreineforme.

Já comentamos, há bastante tempo atrás, aqui no Hempadão, que o termo psicotomimético é um termo extremamente inadequado que foi utilizado para designação de um conjunto de plantas e substâncias que provocam um efeito visionário, revelador de mente (psicodélico) ou do que alguns consideram uma espécie de divindade interior (enteogênico ou enteodélico).

Em um estudo clássico foi oferecido THC à voluntários saudáveis e observou-se que os sintomas tipo-psicóticos (psychotic-like) induzidos pelo THC após 30 minutos de administração foram significativamente reduzidos após administração de CBD comparado aos efeitos de substâncias placebo administrados a um segundo grupo de voluntários (grupo controle).

A primeira paciente, em pesquisa clínica, a usar o CBD foi uma jovem de 19 anos com transtorno esquizofrênico e apresentou uma melhora significativa no Brief Psychiatric Rating Scales (BPRS), uma escala diagnóstica de transtornos mentais. Após este período foi dado medicamento placebo, o que levou ao aumento do escore. Posteriormente foi utilizada um antipsicótico típico, o haloperidol (famoso Haldol), que levou a nova redução do escore, no entanto, não aos níveis que haviam sido alcançados com o CBD. Na verdade o CBD tem sido considerado como um antipsicótico atípico (ou de segunda geração). A diferença é a seguinte: enquanto os antipsicóticos típicos tratariam apenas os chamados sintomas positivos da esquizofrenia, como delírios (transtorno do pensamento), alucinações (transtornos da senso-percepção) e agitação psicomotora, os antipsicóticos atípicos prometem melhoria na sintomatologia dos chamados sintomas negativos tais como embotamento afetivo (paciente não expressa afetos ou os expressa de forma quantitativamente atípica), perda da motivação e pobreza discursiva. Igualmente o CBD, pode-se conjecturar, poderia atingir os sintomas cognitivos da esquizofrenia como déficits na atenção e memória. Ainda não encontrei estudos, no entanto, que foquem explicitamente nesta relação.

O primeiro estudo clínico com metodologia duplo cego com CBD com pacientes psicóticos foi uma comparação entre 42 pacientes, divididos em dois grupos, tratados durante quatro semanas, um grupo com o medicamento CBD e o outro com amisulpride; os pacientes haviam sido diagnosticados com esquizofrenia paranóide ou transtorno esquizofreineforme. Os escores dos pacientes no BPRS e na Escala de Síndromes Negativa ou Positiva (PANSS), apresentaram diminuição significativa em ambos os tratamentos, sem diferença entre eles. Os efeitos colaterais como sintomas extra piramidais, que ocorrem com antipsicóticos típicos, aumento da prolactina e ganho de peso foram significativamente menos observados com CBD do que com amisulpride. Estas diferenças são fundamentais, pois os efeitos colaterais das drogas antipsicóticas, muito intensos, são uma importante razão para abandonos de tratamentos; importante destacar também que a esquizofrenia paranoide é o tipo mais corrente de esquizofrenia e, tipicamente, ocorre junto a presença de pensamentos delirantes com características paranoicas.

cannabinoids-CBDEmbora haja ainda ausência de clareza quanto aos mecanismos do CBD, estudos de ressonância magnética (fMRI) demonstraram que os efeitos do CBD são opostos aos do THC.

O THC é um agonista (semelhante, que simula ou faz as mesmas ligações neurais) do endógeno CB1R e pode induzir, segundo alguns estudos apresentados na pesquisa de revisão, sintomas psicóticos em voluntários saudáveis e a piora de sintomas em pacientes com esquizofrenia. Poder-se-ia supor, a partir daí, que o efeito antipsicótico do CBD seria proveniente de seu antagonismo ao receptor CB1R (do qual o THC é um agonista parcial exógeno, isto é, que provém de fora do organismo e exerce funções semelhantes). Contra esta hipótese há um estudo duplo cego, com grandes números de pacientes com esquizofrenia tratados com SR 141716, um antagonista do CB1R, onde não houveram resultados positivos. Isso sugere que o efeito do CBD pode estar em outro lugar. Outra hipótese é que o efeito antipsicótico do CBD se dê em função dele evitar a receptação da anandamida e seu metabolismo, aumentando a disponibilidade deste cannabinoide para novas sinapses (ligações entre células nervosas). O aumento de anandamida parece ocorrer tanto em pacientes com esquizofrenia, quanto em pacientes pré-esquizofrenicos que apresentam os chamados sintomas prodrômicos, isto é, que precedem o aparecimento do transtorno. Este aumento do cannabinoide endógeno, gerado pelo próprio organismo, parece operar de forma contraria a presença dos sintomas tipo-psicóticos.

Outro estudo observou que o CBD aumenta a neurogênese em ratos, com um efeito dependente dos receptores de CB1. Na esquizofrenia ocorre o exato contrário do efeito do CBD, alguns estudos observaram uma redução da neurogênese na região do hipocampo.

Os dados já parecem demonstrar com certa clareza que o CBD tem propriedades antipsicóticas, além de proporcionar uma redução da perda de memória. CBD aparece, neste cenário, junto aos antipsicóticos de segunda geração, chamados antipsicóticos atípicos. Isso é significativo para o avanço da maconha medicinal e para quebrar alguns mitos. Há a necessidade de se observar se as lojas de maconha medicinal e não medicinal em países como Estados Unidos, Uruguai e Holanda, controlam a qualidade de cannabis e regulam os níveis de CBD e THC, apresentando-os com clareza aos consumidores.

Após estas observações pode-se conjecturar quanto a catalização de efeitos psicóticos e antipsicóticos no uso da maconha. Este texto tem como base o artigo “A critical review of the antipsychotic effects of canabidiol: 30 years of a translational investigation” de Zuardi e outros. O artigo foi publicado na Current Pharmaceutical Design no ano de 2012.

E vamos continuar esta discussão, portanto, se vocês tem relatos sobre a relação entre maconha e esquizofrenia, para o mal ou para o bem, para a terapêutica ou para piora de quadros ou geração de sintomas, envie para gente: hempadao@gmail.com