O recado americano sobre a maconha medicinal que o Brasil precisa entender

Agora em agosto, o DEA (Drug Enforcement Administration), a agência antidrogas americana, negou uma petição que há cinco anos pedia que a maconha deixasse de ser proibida e passasse a ser controlada. Atualmente, a cannabis pertence à lista schedule 1 nos EUA. Essa lista é o mais alto grau de proibição americana e declara a substância como sendo desprovida de qualquer potencial medicinal e com alto grau para abuso. A maconha, assim, continua na mesma lista de substâncias que a heroína e não possui uso medicinal, segundo o governo americano.

Fonte: Terra

A decisão foi uma surpresa porque, além de mais de 25 estados americanos já terem liberado o uso medicinal da erva –com um deles permitindo inclusive o uso recreativo (o Colorado) – até a cocaína não está na lista schedule 1. Isso mesmo. O uso medicinal da cocaína com supervisão de um médico é permitido em todo o território americano. A droga é usada como anestésico e alivia a dor de pacientes terminais. Ela está na lista schedule 2, a mesma em que a maconha estaria caso o DEA abraçasse a demanda da petição.
Importante ressaltar que a schedule 2 ainda é bastante restritiva e imputa à substância o potencial para abuso e dependência. Não seria um salvo-conduto para a maconha, que ainda precisa ter seus efeitos inteiramente mapeados principalmente no que tange ao uso por jovens. Há evidências mostrando que ela pode ser danosa ao cérebro em desenvolvimento.

A diferença fundamental entre as listas, no entanto, é o reconhecimento do uso medicinal – o que não foi feito pelo DEA sob o argumento de que mais estudos são necessários para que o potencial medicinal da erva seja considerado. Isso foi muito estranho até para a imprensa americana. A CNN disse que o DEA perdeu a oportunidade. Já a Forbes foi além: disse que a decisão da agência foi hipócrita e ignorou a evidência. A Vox salientou que a maconha continua na mesma lista que a heroína. 

Desnecessário dizer que o uso medicinal está sendo debatido no mundo inteiro, com inúmeros países considerando pelo menos o uso de um de seus componentes – e o Brasil é um deles. O País, em 2015, reclassificou o canabidiol, um dos compostos da cannabis sativa que, de proibido, passou a ser controlado pelo seu potencial terapêutico em epilepsias. Ainda por aqui, o Conselho Federal de Medicina, pressionado por pacientes, foi a primeira entidade médica do mundo a regulamentar a prescrição de um composto da maconha. 

Também a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), por meio de decisão judicial, teve que considerar o THC para uso medicinal  (embora a agência esteja recorrendo da decisão). Fora o Brasil, países como Áustria, Bélgica, Canadá, Chile, República Tcheca, Colômbia, Finlândia, Israel, Espanha e Reino Unido permitem o uso medicinal do THC.

Então, como o DEA consegue falar que a maconha não tem potencial medicinal e continua a ser tão perigosa como a heroína? Vamos conversar sem cair em extremismos. Questionar o DEA não é assumir que a maconha seja inócua e a solução para todas as doenças do mundo, mas é no mínimo estranha essa posição em meio a todo o debate sobre o assunto. Por que o DEA parece não conseguir mais diferenciar um baseado de uma dose de heroína. 

Política contraditória dos Estados Unidos e patente

Há muito oxigênio para alimentar essa polêmica. Um importante fato a notar é que, enquanto a agência americana apertou o cinto em uma regulamentação mais ampla da cannabis, também expandiu a permissão para que mais pesquisas sejam desenvolvidas com a maconha nos Estados Unidos. Antes da decisão desse ano, apenas a Universidade de Missouri podia pesquisar a maconha.

Fato mais notório ainda é que, enquanto o DEA diz que não há comprovação para o uso medicinal da maconha, o Departamento de Saúde Americano (Department of Health and Human Services) patenteou a maconha. Sim. Os Estados Unidos possuem uma patente (que pode ser lida aqui) sobre o uso de canabinóides em uma ampla gama de disfunções e enfatiza a sua ação antioxidante. Diz a patente:

Esta nova propriedade encontrada [a antioxidante] torna os canabinóides úteis no tratamento e profilaxia de grande variedade de doenças associadas à oxidação, tais como doenças isquêmicas, relacionadas ao envelhecimento, inflamatórias e autoimunes. Os canabinóides têm ação neuroprotetora, por exemplo, e limitam danos neurológicos tais como acidente vascular cerebral e trauma, ou podem ser úteis no tratamento de doenças neurodegenerativas, tais como doença de Alzheimer, doença de Parkinson e demência associada ao HIV. Canabinóides não psicoativos, tais como o canabidiol, são particularmente vantajosos porque evitam toxicidade.

Ok. E daí que os Estados Unidos têm uma patente? O sistema é esse, patentes existem… Neste caso, a patente é o de menos. A questão aqui é negar a reclassificação da maconha por ela não ter potencial medicinal e, ao mesmo tempo, ter uma patente atestando esse mesmo efeito benéfico. Até quem é contrário à legalização da maconha acharia isso… vamos dizer… confuso???

O recado que o Brasil precisa entender

A discussão sobre o uso medicinal no Brasil tem um aspecto pioneiro. A reclassificação do canabidiol (um dos compostos da cannabis sativa) pela Anvisa atendeu a uma demanda popular. O gatilho foi o caso de Anny Fischer, portadora de epilepsia refratária que, em 2014, conseguiu uma liminar da Justiça para importar o canabidiol. O caso abriu a porta para outros pedidos – e o composto foi reclassificado e  deixou de ser proibido pela agência em janeiro de 2015.

Na época, debatia-se se a reclassificação faria alguma diferença para pacientes, já que o canabidiol continuaria a ser usado de forma bastante restritiva e sua importação ainda precisaria de laudo médico, que só seria obtido em último caso em doenças refratárias a tratamentos existentes. O Conselho Federal de Medicina, por exemplo, só autoriza a prescrição para casos de epilepsia refratária.

Alguns setores da Anvisa, pesquisadores e pacientes, no entanto, defendiam a reclassificação do canabidiol porque a atitude mandava um recado à sociedade – de que era possível considerar o uso medicinal da maconha e de que era possível pesquisar melhor o seu uso. Mais ainda, a reclassificação da Anvisa obedecia a um argumento técnico: o canabidiol tinha potencial medicinal e não causava dependência. A reclassificação da agência mudou a vida de pacientes e permitiu que uma lei no Distrito Federal passasse a distribuir o canabidiol na rede pública de saúde. A decisão de uma agência reguladora, assim, faz muita diferença e muda todo o funcionamento da sociedade em relação a um composto.

Diante disso e considerando o peso político dos Estados Unidos no mundo, o paralelo que eu faço em relação à política contraditória dos americanos é: que recado o país quer evitar ao não reclassificar à maconha, deixando-a na mesma lista que a heroína, enquanto até a cocaína tem seu uso medicinal reconhecido?  Por que o governo dos EUA não oficializa o que já está sendo feito por tantos estados americanos ou por que ele possui uma patente sobre a cannabis medicinal?

Poderíamos especular se o Obama pensa em um custo político em relação a essa reclassificação, e se essa questão é interna – e não necessariamente atrelada a uma política internacional. Pode ser? Pode ser… mas, vamos aos fatos. Pesquisa do instituto Pew de 2015 mostrou que a maioria dos americanos (53%) é favorável à legalização da maconha (não estou dizendo nem uso medicinal, estou dizendo legalização, liberou geral, inclusive uso recreativo).  O estudo mostrou que essa percepção tende a crescer – em 1969, apenas 12% dos americanos era favorável. Ainda, se considerada a opinião por geração, o cenário pode ser mais simpatizante à cannabis: 68% dos milleniums apoiam a legalização total.

Resta-nos questionar, então, em face disso e da patente e dessa decisão estranha se, por acaso, os Estados Unidos querem evitar que outros países reclassifiquem a maconha a reboque de sua decisão. Não é novidade para ninguém – muito menos para os americanos – que o que eles fazem ecoa no mundo. 

Não vamos ter essa resposta. E nem precisamos. O recado que os EUA não querem dar é o recado que o Brasil precisa entender. Na verdade, nem precisaríamos especular sobre a política americana para isso. Bastaria o país olhar mais atentamente para as dificuldades que pacientes têm enfrentado para conseguir usar o composto.  Lá, enquanto eles dizem ao mundo que não há efeito medicinal (e expandem a pesquisa na surdina), nossos pacientes continuam a comprar canabidiol a US$ 500 dólares a dose.

Brasil, entenda esse recado e assuma de vez o seu pioneirismo. A Embrapa e a Fiocruz podem levar esse desafio adiante. Não dá para esperar o contexto internacional para assumir que precisamos de mais pesquisas com a erva. O Brasil precisa ter a sua própria política de pesquisa e de cultivo de maconha medicinal. E isso tarefa para ontem!