O que o mundo corporativo pensa sobre a maconha medicinal no Brasil?

O que um evento na Vila Olímpia, com jazz e executivos de trajes sociais, significa para o futuro desse debate

O evento aconteceu semana passada na Vila Olímpia, o coração da São Paulo corporativa, numa casa de estilo inspirado na Toscana, acostumada a receber casamentos e festas de debutantes das famílias endinheiradas da cidade. Quem entrava recebia um crachá de recepcionistas sorridentes vestidas de jalecos brancos, como se fossem enfermeiras. Sobre o balcão, tubos de vidro graduados cheios de líquidos coloridos, para fazer lembrar um laboratório científico. Nada ali remetia à planta que estaria no centro daquela noite: nenhum desenho da famosa folha de sete pontas, nenhuma inspiração psicodélica, nenhuma menção à palavra “maconha”, nenhum acorde de reggae.

por Denis Russo Burgieman
na Época

A música que tocava lá dentro, na verdade, limitava-se a comportados standards de jazz, executados por um quarteto de músicos bem penteados, vestidos de preto. Depois de uma execução instrumental de “Garota de Ipanema”, o público, quase todo vestido em traje corporativo, sentou-se na plateia. Sobre o palco, projetou-se uma linha de texto que não deixava dúvidas sobre as razões por trás da escolha do tema da noite: “Cannabusiness: um mercado bilionário”.

Assim começou, na noite de 13 de agosto, a última edição do “Like the Future”, um evento trimestral focado em “networking”, que costuma escolher temas como “o futuro da contabilidade”, “ética na gestão” e “marketing multinível”. O evento é organizado pela Lide Futuro, uma empresa que nasceu dentro do Lide, o Grupo de Líderes Empresariais, criado pelo governador conservador de São Paulo, João Doria Júnior, para reunir empresários e influenciar políticos. (O Lide Futuro separou-se da marca-mãe em 2017, e é gerido de maneira independente por jovens empresários, alguns deles herdeiros de membros do Lide.)

O evento tinha patrocínio de empresas farmacêuticas canábicas estabelecidas no Brasil — uma britânica, uma canadense e uma legitimamente brasileira. Seus executivos estavam no palco, junto com Alessandra Soares, diretora da agência que regula os registros de medicamentos no país, a Anvisa. Foi dela a manchete da noite. Quando perguntaram a ela como seria se a Anvisa regulasse a produção de cannabis no Brasil, ela interrompeu dizendo “não é ‘se’, é ‘quando’”. E garantiu que, até outubro, a agência divulgaria as regras para que empresas, como as patrocinadoras do evento, pudessem finalmente plantar maconha no país para fazer medicamentos. (Hoje, no Brasil, é permitido importar remédios à base de cannabis, mas, com exceção de 37 indivíduos e uma organização de pacientes que ganharam na Justiça o direito de plantar seu próprio remédio, todo pé de maconha que cresce está fora da lei.)

O clima era de otimismo. Quem sintetizou-o foi a médica canábica Carolina Nocetti, fundadora e diretora da Intercan, um centro médico especializado em tratamentos com cannabis: “em julho de 2019 a indústria da cannabis medicinal começou no Brasil”, ela disse, notando que se sentiu em Los Angeles naquela noite na Vila Olímpia, pela quantidade de investidores e também de jornalistas especializados (como este que vos fala). Conversei com a jovem CEO do Lide Futuro, Laís Macedo, e ela disse que a repercussão positiva do evento foi surpreendente: “estamos ainda avaliando a pesquisa, mas me parece que foi a melhor edição do Like the Future que já fizemos”, ela disse.

Edição do evento 'Like The Future' sobre o tema 'Cannabusiness: um mercado bilionário' Foto: Denis R. Burgierman / Agência O Globo

Edição do evento ‘Like The Future’ sobre o tema ‘Cannabusiness: um mercado bilionário’ Foto: Denis R. Burgierman / Agência O Globo

Nunca antes o Lide Futuro tinha escolhido um tema polêmico. Geralmente trata-se lá de assuntos corporativos neutros, ou de mercados que não sofrem oposição feroz por princípio, tipo “educação”. Em março deste ano, quatro dos sócios da Lide Futuro foram ao Texas acompanhar um dos grandes eventos de inovação do mundo, o SXSW, onde cannabis foi o tema que mais atraiu público. Voltaram com a ideia de discutir o tema no Brasil também. Nem todo mundo no Lide Futuro gosta de maconha, “mas todo mundo é pró-mercado. Ninguém tem restrições à maconha medicinal.”

Tanto otimismo contrasta com o debate político sobre o tema, em especial com os sinais enviados pelo governo federal. Um ministro, o proibicionista ultra-radical Osmar Terra, ameaçou recentemente fechar a Anvisa (que é uma agência federal, mas com independência garantida por lei) caso ela fizesse aquilo que Alessandra garantiu que faria – regulasse o cultivo. Ele tem sido apoiado por outros membros do primeiro escalão, como Onyx Lorenzoni, que disse na sexta passada que o mercado poderia ser explorado apenas por empresas estrangeiras – os remédios seriam permitidos, mas teriam que ser importados, para prejuízo tanto dos pacientes quanto da economia brasileira.

Ao final do encontro da semana passada, fui apurar informações nas rodinhas que costumeiramente se formam do lado de fora de eventos sobre esse tema. Havia quem torcesse o nariz para o clima corporativo. “A maior parte do público parecia gostar menos de cannabis do que de cocaína”, dizia alguém. “Eles querem regular de um jeito que vai apenas dar dinheiro para grandes corporações, mas não vai fazer nem cócegas na guerra às drogas”, comentava outro. Independente disso, parece mesmo que uma nova era está começando. Queira o governo ou não.