O poder da maconha medicinal, os limites do uso do CBD isolado e um pouco de história

por Sergio Vidal, Presidente da Associação Multidisciplinar de Estudos sobre Maconha Medicinal e autor do livro “Cannabis Medicinal introdução ao cultivo indoor”

O que chamamos maconha são as flores das plantas fêmeas da espécie Cannabis sativa, em qualquer uma de suas variedades. Todas as variedades de maconha produzem plantas machos e fêmeas. As fêmeas produzem em suas flores uma grande quantidade de uma resina pegajosa. A maconha sintetiza naturalmente um número acima de 500 compostos, dos quais mais de 90 tipos produzidos exclusivamente por plantas dessa espécie, os chamados cannabinóides. Entre os mais conhecidos estão o THC 9, THC 8, CBN, THCV, CBC e o CBD, também como Cannabidiol, que atualmente é o que tem ganho maior destaque na mídia e foi liberado para uso medicinal e científico no país.

A maconha é usada pelos seres humanos para diversas finalidades medicinais e terapêuticas, dentre outras, há milhares de anos. A farmacopéia mais antiga da humanidade (livro medicinal contendo relação de doenças e respectivos remédios), escrito no ano de 3.750 antes de Cristo, já recomendava a erva para o tratamento de diferentes doenças e sintomas.

Em 1965 o Dr. Rafael Mechoulam, da Universidade Hebraica de Jerusalém, isolou o Delta 9 THC, abrindo possibilidades para novas formas de compreender não apenas a ação da molécula no corpo  humano, mas sua interação com os outros cannabinóides. A partir da década de 1970, diversos pesquisadores em todo mundo começaram a trabalhar com o THC e outros cannabinóides em busca de respostas para as dúvidas existentes sobre a forma de agir os potenciais medicinais e terapêuticos da maconha. Nessa época o laboratório Pfizer chegou a desenvolver um analgésico sintético análogo ao THC, cerca de 100 vezes mais potente, mas desistiram do projeto pois seus efeitos  psicoativos também eram muito fortes.

Devido também aos fortes efeitos psicoativos do THC isolado, os estudos clínicos realizados entre  1970 e 1980 apontaram o uso medicinal da planta in natura como mais eficiente para os casos de  tratamendo de dores crônicas, enjôos e outros síntomas e enfermidades para os quais a cannabis pode ser utilizada. Além do uso do THC isolado proporcionar maior dificuldade para controlar os efeitos psicoativos, que se apresentam intensos demais, a planta in natura apresentava também maior eficácia como medicamento em si. Isso fez com que os investigadores desconfiassem da existência de outros cannabinóides que poderiam atuar auxiliando a ação do THC, de forma isolada ou cooperativa. Atualmente se sabe que uma dosagem mais equilibrada entre THC e CBD é muito mais eficaz no tratamento de dores crônicas e outros sintomas do que o THC isoladamente, por exemplo. Enquanto o THC pode provocar euforia demasiada e outros efeitos indesejavéis como ansiedade, o CBD modula esses efeitos mantendo-os sobre controle e prolongando os efeitos benéficos da planta.

Ainda na primeira metade da década de 1970 começaram a surgir estudos sobre outros compostos particulares à Cannabis sativa, especialmente o CBD. Alguns pesquisadores testaram o CBD como antibiótico em diferentes pacientes e conseguiram niveis variados de redução dos sintomas e maior controle em pessoas portadoras de desordens de movimentos, como epilepsia, esclerose múltipla e doença de Huntington. A partir da descoberta das propriedades antibióticas e antinflamatórias do CBD uma série de novos estudos e aplicações para a Cannabis medicinal começou a ser experimentado. Desde então a ciência reconhece as aplicações medicinais tanto do THC, quanto do CBD e de outros compostos da cannabis.

Até recentemente se imaginava que o CBD e os outros compostos atuavam interagindo com o THC, modulando a maneira como ele era recebido pelo corpo. Sabe-se que o THC utiliza um receptor do cerébro humano para agir. Esse receptor, denominado CB1, tem a função de possibilitar com que a molécula anandamida, produzida naturalmente no cérebro humano, possa agir. A anandamida foi descoberta muito recentemente, em 1992, e mais uma vez surpreendeu os cientistas que tiveram que aceitar o fato de que o cérebro humano produz uma molécula idêntica ao THC, que cumpre funções vitais para garantir a nossa sobrevivência.

No entanto, em 2005 pesquisadores descobriram um novo receptor no cérebro humano, denominado CB2, responsável por possibilitar com que o CBD atue no corpo humano. Hoje sabemos que o CBD tem uma forma de atuação própria e grande eficácia medicinal, sendo responsável pelos conhecidos efeitos da maconha para aumentar o apetite, controlar naúseas e vômitos, provocar relaxamento muscular e sonolência, diminuir a ansiedade, controlar espasmos musculares,  além dos seus efeitos antibióticos. Alguns estudos indicam ainda sua ação no tratamento de alguns tipos de câncer e das chamadas doenças autoimunes, como o Alzheimer e artrite.

O pesquisador Chris Conrad, compara o CBD e o THC a duas enfermeiras, ambas extremamente cuidadosas e profissionais, mas com funções, temperamentos e personalidades diferentes. Cada uma atua em seu campo de cuidado e cura. O THC faz isso enquanto também eleva o humor do paciente.

Já o CBD trabalha nas suas áreas específica, enquanto também atua mantendo a euforia da sua irmã sob controle. De fato, sabemos que ao longo de toda a história da humanidade fizemos uso da cannabis conhecendo mais ou menos a existência dessas duas irmãs. Algumas variedades de maconha deixam o usuário mais eufórico, energético, proporcionando uma viajem mais psicodélica, típico em plantas com origem na Tailândia, Laos e regiões próximas. Enquanto outras, ainda que  mantenham seu poder de nos fazer viajar, têm maior eficácia em proporcionar um relaxamento mental e corporal, aplacar as dores e aumentar o apetite, efeitos típicos de variedades com origem no Afeganistão, Índia e regiões próximas.

Durante milênios os seres humanos selecionaram as variedades de maconha de acordo com essas e muitas outras de suas características naturais. Tamanho, estrutura da planta, resistência a pragas e enfermidades, formato das flores, aroma e sabor da resina e, e é claro, por seus efeitos psicoativos e medicinais. No entanto, desde a descoberta do THC, do CBD e de outros cannabinóides que a proporção de um e de outro cannabinóide passou a ser mais considerado como um fator de seleção na hora de se escolher quais linhagens cultivar e utilizar para fazer cruzamentos.

Durante as últimas décadas os criadores de sementes procuraram selecionar as plantas que possuiam maiores índices de THC para disponibilizar ao mercado plantas ricas na substância mais psicoativa da maconha. No entanto, deixaram de lado o fato de que o THC isoladamente em altas concentrações pode ter efeitos adversos indesejavéis. As linhagens com alto valor de CBD sempre foram ignoradas pelo mercado de sementes, que consideravam os efeitos sedativos menos procurados pelos consumidores. Isso tem mudado nos últimos anos com as novas descobertas a respeito das aplicações medicinais do CBD e da importância medicinal e do seu papel como modulador dos efeitos do THC.

Em 2006 o criador Shantibaba, em parceria com outros breeders iniciou o CBD Project, com o intuito de selecionar plantar com alto teor de CBD e disponibilizar suas sementes no mercado. A primeira strain desse tipo se chamava Cannatonic e possuia indíces de THC e CBD equivalentes. Hoje são dezenas de strains disponíveis no mercado com altos índices de CBD. Atualmente o CBD Project conta com a colaboração de diversos médicos, cientistas, pesquisadores, pacientes que constantemente ajudam com a melhoria do trabalho de escolha de quais características as linhagens de plantas devem ter para serem selecionadas para o projeto.

Ao falar em maconha medicinal, devemos ter em mente, por tanto, que todas essas substâncias contidas na resina das flores fêmeas são responsavéis peloa efeitos que queremos, e também por eventuais efeitos colaterais psicoativos.

THC e CBD são os mais ativos, mas todos os cannabinóides, junto com os terpenos atuam para modular os seus efeitos medicinais. Cada planta possui uma carga genética única que determinará não apenas como será o seu crescimento e de suas flores, mas também a composição da resina em termos de quantidades e proporções de cada um dos cannabinóides e terpenos. Cada planta é, portanto, um medicamento único, que pode ser usado melhor para uma ou outra enfermidade. Não só os efeitos psicoativos variam de acordo com a proporção dos cannabinóides, mas também os efeitos medicinais variam de uma planta para outra.

Desejo que a ANVISA e o governo revejam a decisão de regulamentação exclusivamente do CBD, pois ela afeta milhões de pessoas que necessitam de remédios compostos com cannabinnóides que continuarão proibidos e também aqueles que não têm o dinheiro para arcar com os altos custos da importação dos extratos naturais.

Pesquisas brasileiras e as Aplicações Medicinais para o CBD

Em 2010 o Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas Psicotropias – CEBRID, da Universidade Federal de São Paulo realizou o Simpósio Internacional “Por uma Agência Brasileira da Cannabis Medicinal”, no qual trouxerm pesquisadores de diferentes países e autoridades do meio científico, médico e de órgãos governamentais para discutir a viabilidade da regulamentação dos usos medicinais da planta no Brasil, já previstos na Lei 11.343, em vigor desde 2006, mas que por questões políticas ainda não foi implantado totalmente. Nesse encontro o Dr. Antonio Waldo Zuardi apresentou um histórico das pesquisas brasileiras utilizando CBD, que até hoje são base para muitos estudos sobre o tema, o qual resumirei abaixo.

Segundo ele, ainda na década de 1970 os pesquisadores brasileiros foram pioneiros nos estudos sobre os potenciais medicinais do CBD. Em 1970 os pesquisdores brasileiros, liderados pelo farmacólogo Elisaldo Carlini passaram a afirmar no meio científico que o CBD tinha uma ação farmacológica própria. Os estudos com diferentes amostras de maconha de proporção de THC semelhante, mas variando em quantidades de CBD tinham efeitos muito diferentes nas cobais (ratos).  Isso fez com que os pesquisadores suspeitassem de que o CBD tinha um efeito particular. Então começaram a trabalhar com o CBD isoladamente, buscando compreender melhor sua ação. Em 1973 os primeiros estudos identificaram efeitos sedativos e antiepilépticos, em aplicações experimentais com cobaias (ratos).

Em 1974 num estudo com voluntários humanos, estes receberam doses combinadas de THC e CBD e os que receberam doses de THC e CBD combinados relataram menor ansiedade e maior sensação de prazer, do que aqueles que receberam as combinações que tinham maior concentração de THC, ou eram compostas de THC puro. Esse estudo foi pioneiro ao procurar analisar o tipo de experiência psicoativa proporcionado por diferentes combinações dos mais potentes cannabinóides.

Nesse mesmo estudo foi verificado que doses elevadas de THC sem a presença do CBD podem provocam ansiedade e induzir sintomas semelhantes à psicose, ou desencadear quadros de esquizofrênia. Esses efeitos sumiam quando o THC era aplicado em combinação com o CBD, o que sugere que ele tem o poder de manter sob controle tais efeitos. Esse estudo abriu as portas para a possibilidade do uso do CBD para o tratamento da ansiedade e como um antipsicótico. Esse fato foi confirmado em outro estudo de 1982, no qual ficou claro que o THC isoladamente, em grandes quantidades, atuava como provocador de ansiedade e sintomas psicóticos, enquanto em administração conjunta com o CBD esses efeitos desapareciam. Diversos estudos posteriores, comparando o CBD com antipissicóticos tradicionais bem estabelecidos, como o haloperidol e a clozapina, reveleram que o cannabinóide tem eficácia comparável a ambos, tendo uma atuação semelhante aos chamados antipsicóticos atípicos. O que significa que ele não tem o efeito colateral da catatonia, o que em casos extremos pode levar ao Parkinson medicamentoso em pacientes que necessitam usam antipissicóticos com frequência. Isso sugere que o CBD tem um potencial para usos terapêuticos em efermidades mentais, podendo inclusive substituir drogas atualmente usadas, com menor efeito colateral.

Durante sua apresentação no Simpósio Internacional o prof. Zuardi descreveu 2 estudos clínicos inéditos que foram realizados com um total de 4 pacientes, todos diagnosticados com esquizofrenia há anos, cujos sintomas resistiam ao tratamento com medicação convencional. Em um estudo o CBD comparado ao tratamento com placebo, e com haloperidol, em diferentes períodos. Nem o paciente nem os assistentes que administravam o “medicamento” sabiam qual era o conteúdo ou a dosagem. No outro a mesma metodologia foi aplicada com 3 pacientes, comparando placebo, CBD, clozapina e amissulpride. E ambos os estudos o CBD apresentou resultados comparavéis à medicação tradicional, apresentando menos efeitos colaterais, revelando-se uma opção proveitosa para o tratamento de quadros esquizofrênicos.

Num estudo publicado em 1979 os pesquisadores administraram em voluntários com queixa de insônia, em diferentes momentos, doses de 40, 80 e 160mg de CBD, ou Placebo (medicamento sem efeito, usado para testar a eficácia de algum remédio). Todos recebiam o “medicamento” 30 minutos antes de deitarem. O resultado foi que na amostra de pessoas que tinham tomado 160mg de CBD o número de voluntários que dormiu 7 ou mais horas foi significativamente maior. Num estudo posterior voluntários recebiam durante a manhã doses de placebo, 300 ou 600mg de CBD, após terem dormido ao menos 6 horas durante a noite. Tanto nos voluntários que recebram 300mg quanto os que receberam 600mg, foi verificado um aumento considerável da sonolência após 1 ou 2 horas de ingestão.

Estudos mais recentes, realizados em 1993, comparou os efeitos do CBD com o de ansiolíticos tradicionais como o diazepam e a ipsapirona, em pacientes com Transtorno de Ansiedade Social, que ainda não haviam sido tratados. A amostra partiu de 2313 estudantes universitários voluntários que responderam um questionário de diagnóstico, do qual foram selecionados uma amostra de 2 grupos de 12 estudantes com TAS e 12 saudavéis, com perfil social e econômico similar aos pares do outro grupo. Ambos foram submetidos a testes específicos que reveleram que o CBD tem efeitos de atenuar a ansiedade semelhantes aos das substâncias tradicionalmente usadas para este proposito.

A conclusão é de que todos os estudos realizados até hoje sobre os potenciais medicinais do CBD sugerem que ele tem uma ação sedativa, antieplética, ansiolítica, e antipsicótica. Tudo isso nos leva a crer que ainda há muito para ser revelado não apenas sobre o CBD e seus usos medicinais, mas sobre as muitas outras substâncias cannabinóides ainda desconhecidas. Ainda estamos engatinhando nas descobertas sobre os potencians dessa planta milagrosa e temos muito o que aprender e explorar ainda. O CBD acaba de ser redescoberto pela sociedade moderna e é a última novidade sobre a cannabis medicinal.

Como diz um cientista amigo meu, uma novidade com milhares de anos de existência, mas uma novidade fabulosa! Mas ainda teremos muitas novidades que sequer imaginamos. Não consigo esperar para ver essas revoluções acontecerem cada vez mais rápido! 

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