O Brasil não está preparado para proibir a maconha

por João Henriques, publicado na Carta

Provavelmente você já ouviu a frase que é o título deste artigo com o sentido contrário, afirmando que nosso país não está preparado para legalizar a maconha. Trata-se de um argumento simplista e deslocado da realidade. Na prática, a manutenção da proibição é uma insanidade que só faz aumentar as estatísticas de mortos e feridos, em uma guerra que fracassou em todos os locais onde foi adotada.

No Brasil, governantes de esquerda, centro e direita levaram ao extremo a aplicação da lei que proíbe a maconha e outras drogas, sem economizar balas e vagas na cadeia. Nas últimas décadas a polícia substitui a Joaninha (apelido do Fusca utilizado como viatura) pelo Caveirão, o revólver .38 pelo fuzil, utilizamos agentes do exército na segurança pública e o Congresso Nacional aprovou o aumento de penas para o tráfico. Nada disso funcionou. As bocas de fumo continuam funcionando no lugar de sempre.

Existindo à margem da lei, o varejo de drogas funciona sem nenhuma regra ou controle de agência fiscalizadora. A venda é permitida para pessoas de todas as idades, inclusive crianças. As drogas são produzidas e armazenadas sem nenhum controle sanitário. A adulteração destas substâncias, sem preocupação com a saúde dos usuários, pode torná-las mais nocivas do que deveriam ser.

Além de fracassar na tentativa de coibir o comércio ilícito, o proibicionismo também é desastroso para as pessoas que desenvolvem um uso problemático de drogas. O medo repressão ocorrer até nos espaços destinados ao tratamento de dependentes afasta muitos usuários do serviço de saúde. Neste contexto, a proibição apenas reforça uma cultura de intolerância que só atrapalha a vida de quem precisa de ajuda.

A proibição é tão insana que prejudica até a formação de médicos para tratar os casos de dependência. Nas universidades este assunto ainda é tratado como tabu, permitindo que preconceito que existe dentro da sala de aula continue existindo no consultório médico e no hospital. Métodos pouco eficientes, baseado na abstinência imediata ou internação fazem parte da ideologia dominante neste segmento.

Tudo errado

A maconha é proibida no Brasil desde 1937. Desde então o uso da cannabis se popularizou entre diferentes grupos sociais e encheu o caixa de organizações criminosas. Passamos quase 80 anos negando os benefícios terapêutico da planta que ganhou o pejorativo apelido de “erva do diabo”. Muitos brasileiros que sofreram com câncer, epilepsia, Parkinson e outras enfermidades ao longo deste período morreram sem saber que a maconha pode oferecer uma vida com menos sofrimento para os enfermos. Felizmente esta realidade está mudando e legalização do uso medicinal da maconha surge como um sonho possível de ser realizado em breve.

Por tudo isso perde valor outro argumento usado pelos proibicionistas, que defendem e lei vigente para “proteger as famílias dos malefícios das drogas”. A manutenção da proibição deixa tudo funcionando sem controle, prejudica o tratamento de quem desenvolve uso abusivo e trata de forma negligente benefícios terapêuticos da cannabis, que já são conhecidos desde os primórdios da medicina. O uso medicinal da maconha é mencionado na farmacopeia mais antiga do mundo (o Shen Nung Pen Ts’ao ching, de 2.700 a.C). A publicação chinesa lista diversos tratamentos com o uso da erva: amenização das dores de reumatismo; tratamento da malária; agente anestésico; entre outros.

A mudança é urgente

Hoje, com ajuda de alguns casos de grande repercussão, parte da sociedade já reconhece que maconha também é remédio. Mas se voltarmos 10 anos na nossa história, certamente encontraremos um cenário bem diferente. Quem ousasse falar, no anos 90, que a cannabis pode salvar vidas, tinha grande chance ser alvo questionamentos debochados. Neste tempo de trabalho no Hempadão já ouvi a seguinte pérola: “O cachaceiro não diz que a bebida é remédio, mas os maconheiros ficam inventando essa desculpa para fumar”.

O custo econômico e social da proibição da maconha é altíssimo. O combate ao narcotráfico tornou-se a ação de segurança pública prioritária na maioria dos Estados do Brasil e segue funcionando apenas como enxuga-gelo. O tratamento de dependentes não recebe a devida atenção e o uso medicinal da maconha ainda não é amplamente reconhecido pela classe médica. A manutenção desta política é uma insanidade. Não estamos preparados para isso.