MDMA no tratamento da esquizofrenia?

Não cansamos de debater os usos terapêuticos do MDMA, afinal, parece que os psicodélicos chegaram mesmo para revolucionar as terapias na saúde mental. Embora a mídia de massa insista a identificar, de forma unilateral e exacerbada, os riscos do uso lúdico dos psicodélicos, há muitos usos terapêuticos cada vez mais estudados e próximos à regulamentação. Além de usos bem pesquisados, como o da psicoterapia com MDMA para tratamento de Transtorno de Estresse Pós-Traumático (TEPT), existem cada vez mais hipóteses científicas que merecem nossa atenção e estudos cuidadosos.

por Fernando Beserra

Talvez um dos grandes tabus envolvendo uso de psicodélicos e transtornos mentais e do comportamento relacione-se ao potencial dos psicodélicos de desencadearem transtornos psicóticos, mais exatamente algum dos subtipos da esquizofrenia. Na segunda metade da década de 1950, no entanto, os estudos dos psicodélicos para tratamento da esquizofrenia eram estudados com bastante seriedade. As informações colhidas, de fato, indicam que é preciso precaução no que se refere ao uso de psicodélicos como LSD por pacientes que já tiveram um quadro esquizofrênico desencadeado. Por outro lado, no mesmo momento histórico mais de mil artigos científicos foram produzidos indicando os potenciais terapêuticos destas substâncias. Possivelmente tais entendimentos paradoxais relativos aos psicodélicos referem-se aos seguintes motivos:

1. Ao paradigma que entende os psicodélicos como psicotomiméticos, isto é, substâncias que produziriam uma espécie de psicose transitória e artificial e permitiriam estudar a esquizofrenia de uma nova forma. Embora tal visão tenha caída em desuso, ainda assim os psicodélicos são estudados pela produção do comportamento chamado de “tipo-psicótico” e pela catalisação de estados de ansiedade. Embora tal ocorrência não seja inverídica, é possível compreender a situação de uma outra forma com um olhar panorâmico. Um estudo controlado com voluntários sadios com alta dose de psilocibina, coordenado por Roland Griffiths e outros (2008), foi produzido extremo medo em 30% dos voluntários; paralelamente 80% reportaram bem-estar após a experiência com nenhum relato de piora do bem-estar posterior. Após 14 meses, 65% ainda relatavam melhora no bem-estar (CARHART-HARRIS e outros, 2016);

2. Logo, embora exista na experiência psicodélica a recorrência de estados de ansiedade, angustia e fobia, há igualmente um enorme potencial terapêutico nestas substâncias. As evidências não dão suporte a ideia de que os psicodélicos produzam danos à saúde mental (CARHART-HARRIS e outros, 2016);

Apesar da cautela necessária, o MDMA merece ser estudado no campo da terapêutica do grave transtorno mental que é a esquizofrenia.

A pesquisadora e psiquiatra Julie Holland (2001), organizadora do livro MDMA: a complete guide, explica alguma das razões para ser otimista em relação aos estudos da psicoterapia com MDMA para esquizofrenia. Hoje sabe-se que a esquizofrenia pode ser separada em seus sintomas positivos e negativos. São alguns dos sintomas positivos:

· Alucinações (em especial auditiva);

· Delírios;

· Fala e comportamento desorganizados;

Paralelo aos sintomas positivos ocorre o desenvolvimento de sintomas negativos, tais como:

· Embotamento afetivo;

· Anedonia (perda de prazer e interesse na interação social);

· Abulia (ausência de vontade);

· Pobreza na fala e conteúdo do pensamento.

Trata-se de um transtorno mental grave que afeta cerca de 1% da população. Nos estudos neurofisiológicos da esquizofrenia há uma variedade de hipóteses, todas com dificuldade de determinar uma causalidade simples. De maneira geral, entende-se que a esquizofrenia é multifatorial e complexa. Algumas hipóteses, no entanto, possuem hoje uma grande força. Dentre estas, há a hipótese dopaminérgica, cada vez mais desenvolvida. Sabe-se desde a descoberta dos antipsicóticos, e de toda a fama da Clorpromazina (torazine; amplictil), sintetizada em 1950, que substâncias que reduzem o neurotransmissor dopamina, mais especificamente o receptor D2, tem a capacidade, em um razoável número de casos, de reduzir os sintomas positivos, em especial as alucinações. Tratam-se dos antagonistas da dopamina. No entanto, tais medicações típicas ou clássicas, como o próprio haloperidol, não são efetivas no tratamento dos sintomas negativos da esquizofrenia e apresentam, além disso, muitos efeitos colaterais. Como a redução da dopamina resultaria na diminuição dos sintomas esquizofrênicos, sugeriu-se que a esquizofrenia seria um transtorno gerado pelo excesso de dopamina no sistema nervoso central. O avanço desta hipótese permitiu observar que, paralelo ao excesso de dopamina em regiões do cérebro, as regiões subcorticais (particularmente o sistema límbico), há na esquizofrenia uma redução do nível médio de dopamina no córtex pré-frontal, região responsável pelo planejamento, execução de tarefas complexas e outras finas funções executivas. Não é despropositado que o uso de antipsicóticos típicos possam produzir sintomas parkinsonianos, na medida em que o Parkinson se caracteriza, neurofisiologicamente, pela falta ou redução brusca de dopamina em determinadas regiões do cérebro, particularmente nos núcleos de base. Após o tratamento com antipsicóticos típicos, portanto, mesmo com a melhora dos sintomas positivos poder-se-ia observar o afastamento dos vínculos, isolamento social, pobreza de discurso e no conteúdo do pensamento. Para Holland (2001), se forem observadas as características do MDMA pode-se dizer que o mesmo produz o oposto: aumento das relações sociais, aumento da motivação e da expressão afetiva, euforia, abertura, confiança e desejo de falar com os outros. O MDMA aumenta a liberação de 5HT e de dopamina (MALBERG e BONSON, 2001).

Além deste importante fator, há de se observar que na esquizofrenia ocorre uma redução do fluxo sanguíneo no córtex pré-frontal. No uso oral do MDMA, 1.7mg/kg, há um aumento do fluxo sanguíneo bilateralmente em várias regiões do córtex, inclusive em regiões do córtex pré-frontal (HOLLAND, 2001).

Para buscar resolver o problema dos sintomas negativos são tentados novos fármacos como a olanzapina e a risperidona, os chamados antipsicóticos atípicos. Além disso, já foi tentado o uso de anfetamina, que produziu uma melhora parcial nos sintomas negativos. No entanto, alguns psicoestimulantes como anfetamina e o metilfenidato (ritalina) podem provocar, mesmo em pessoas sem sintomas psicóticos, a ocorrência de sintomas paranoicos (ANGRIST apud HOLLAND, 2001), o que os torna não aconselháveis no caso da esquizofrenia. No entanto, uma forma de evitar a eclosão dos sintomas positivos da esquizofrenia quando administrados psicoestimulantes é o uso de um precursor da serotonina. Alguns estudos demonstram bons resultados no uso de antidepressivos inibidores seletivos de recaptação da serotonina (ISRS) para melhoria dos sintomas negativos na esquizofrenia, embora tais resultados ainda sejam objeto de controvérsias e estudos contraditórios (HOLLAND, 2001). O MDMA imediatamente aumenta o 5HT no cérebro, agindo de forma preventiva para evitar os sintomas positivos da esquizofrenia. Muito provavelmente, como sintomas em profunda interação, a balanceamento da serotonina e da dopamina são cruciais no transtorno esquizofrênico.

Por fim, há um último motivo para que o MDMA seja importante na esquizofrenia. Neste transtorno é conhecida uma redução da inibição do pré-pulso (IPP). Quando recebemos um estimulo fraco, como um som bem baixo, nosso organismo já se prepara e quando escutamos, em seguida, um estimulo mais intenso (como um som maior), já reagimos com menor impacto, devido a esta preparação. Na esquizofrenia esta preparação não ocorre. Embora várias substâncias piorem o IPP, é conhecido que o tabaco produza uma melhora nesta resposta, o que inclusive ajuda a compreensão sobre o excesso de uso de tabaco por pacientes com esquizofrenia. O MDMA também produz esta melhora.

Um dos relatos que Holland (2001) comenta é o de James, com uma história de diagnóstico de esquizofrenia que se inicia aos 14 ou 15 anos, com alucinações auditivas, paranoia, ideias de referência e uma tentativa de suicídio. James relata que, ao tomar MDMA, ele sentiu que seus problemas mentais: “tinham sido lavados. Toda a paranoia e reserva sobre as pessoas, toda a raiva e frustração reprimida, a amargura em relação a minha família, tudo isso tinha sido lavado com uma simples dose. Eu me senti como uma pessoa real”. Em contato telefônico com James, o mesmo posteriormente retornou aos pensamentos paranoicos, mas relatou que durante algumas horas, ao menos, ele conseguiu sentir-se curado e que tal substância deveria ser estudada e o porquê de aquilo ter acontecido.

Holland concordou profundamente com James. Eu também.

Referências:

CARHART-HARRIS, L. R.; KAELEN M.; BOLSTRIDGE, M.; WILLIAMS, T. M.; WILLIAMS, R.; UNDERWOOD, A.; FIELDING, A.; NUTT, D. J. The paradoxical psychological effects of lysergic acid diethylamide (LSD). Psychological Medicine. Cambridge University Press, 2016.

MALBERG, Jessica E,; BONSON, Katharine. How MDMA Works in the brain In: MDMA: a complete guide. Rochester/Vermont: Park Street Press, 2001.

HOLLAND, Julie. Using the MDMA in the treatment of schizophrenia In: MDMA: a complete guide. Rochester/Vermont: Park Street Press, 2001.