Maconha e política de drogas

por Fernando Beserra

Uma amiga, psiquiatra, me enviou um texto que critica a regulação do uso social da maconha, para que pudéssemos discuti-lo. O texto, do psiquiatra Sérgio de Paula Ramos, foi denominado: “Maconha: um grande negócio” (AQUI) e foi publicado na conservadora Gazeta do Povo, no dia 30 de setembro de 2017. Trata-se de um material profundamente proibicionista e para evitar uma resposta superficial, resolvi preparar este texto.

O autor do texto de opinião é o proprietário de uma Comunidade Terapêutica e, portanto, já se apresenta como um empresário e sujeito sem neutralidade neste debate. Nenhum de nós, com efeito, possui plena neutralidade neste e em outros campos. A ideia de neutralidade parte de uma noção metafísica na qual o sujeito, com sua subjetividade, entraria, no momento do trabalho experimental, em uma “passagem de um universo a outro por um hiperespaço” (MORIN, 2007, p.42). Nesse quadro da ciência positivista o sujeito é ruído, perturbação, deformação, erro, o qual deve ser eliminado em nome da pretensão de um conhecimento que seja, fantasticamente, um reflexo do universo objetivo (MORIN, 2007). Como não é possível abandonar a subjetividade e as características humanas no ato de conhecimento, não há possibilidade de neutralidade ou de uma objetividade plena.

Apesar de minha concordância parcial com o autor do texto no quesito ausência de neutralidade, o mesmo utiliza desta retórica para afirmar que sua ausência de neutralidade, como empresário, se deve ao aumento de lucro que deviria com a regulação da maconha para o uso social. Ele afirma, em ato especulativo, que a regulação aumentaria o número de dependentes internados em sua clínica. Para ser sincero, em primeiro lugar, o autor deveria iniciar relatando que é contrário a Reforma da Saúde Mental brasileira, proibicionista (consultor e ex-presidente da ABEAD!), e defensor do modelo manicomial[1].

O autor nos remete ao World Drug Report 2017, a partir do qual afirma que:

Nele, fica-se sabendo que os Estados Unidos foi o país onde o consumo de maconha mais cresceu no mundo, seguido nesta tendência pelo Uruguai, no período estudado e desde que as políticas liberalizantes sobre maconha foram implementadas nos referidos países. O dado não surpreende, pois, caindo a percepção de risco no consumo de uma determinada droga, é sabido que seu uso se eleva. Então, nos lugares onde se implementou a liberação da maconha o consumo aumentou. Em alguns, dobrou.

Antes de qualquer análise é preciso que esclareçamos que nenhum país no mundo “liberou” a maconha. Trata-se de um conceito utilizado de forma equivocada pelo autor. A liberação se refere a retirada de toda o aparato legal em relação a uma determinada substância. Em distinção, Uruguai e alguns estados estadunidenses tem regulado a maconha, estabelecendo regras para produção, comércio e consumo da maconha.

Os dados sobre a regulação da maconha começarão, paulatinamente, a serem analisados, mas devem ser observados com cuidado. Em primeiro lugar é preciso reconhecer que a “proibição da cannabis falhou em alcançar sua meta de reduzir o uso e causa danos substanciais a saúde pública e a sociedade” (SPITHOFF, 2015). A descriminalização de todas as drogas (Portugal), de algumas drogas tornadas ilícitas (como apenas a maconha) e a legalização plena da maconha [mais recente] são modelos atualmente implantados como forma de buscar uma política mais eficiente e que respeite as liberdades individuais.

Mas o que o World Drug Report 2017 da UNODC nos revela acerca da maconha?

O relatório indica que agora 8 estados e o distrito de Columbia regularizaram o uso social da maconha nos EUA. O documento afirma que nestes estados o uso aumentou, no entanto, o próprio World Drug Report 2017 também é claro ao afirmar que essa tendência precedeu a mudança da legislação nestas jurisdições e que é difícil quantificar o impacto da nova legislação sobre a Cannabis. O consumo de maconha já se encontrava crescente nos EUA no auge do modelo proibicionsita e continua aumentando. Não foi possível estabelecer nexo entre a mudança de legislação e consumo de maconha, embora haja análises/especulação que os índices aumentaram após o avanço da regulação do uso medicinal da maconha. Há, entretanto, indicações que as leis que permitiram o uso medicinal da maconha não aumentaram o uso da cannabis entre jovens e este uso, em alguns estados, caiu (LYNNE-LANDSMAN; LIVINGSTONE; WAGENAAR., 2013).

Não informar que o Report não estabelece nexo entre mudança legislativa e o aumento do consumo de maconha, informação de conhecimento do autor, é esconder de seu leitor um dado muito importante para a avaliação desta política. Além disso, o texto informa, acerca do Uruguai, que os impactos da política de regulação do uso social da Cannabis só serão evidentes após sua plena implantação (2017) e monitoramento ao longo do tempo.

De acordo com o Secretário Nacional de Drogas do Uruguai, Julio Heriberto Calzada após o início da política de regulação da maconha o país conseguiu zerar as mortes ligadas ao uso e ao comércio da maconha. A fala se deu na Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa no Senado brasileiro.

Além disso, ao avaliar a prevalência do uso de substâncias não se deve avaliar apenas o aumento e a redução do consumo, mas os modos como estes consumos se dão e seu impacto. Na proibicionista Suécia, p.ex, 52% dos consumidores de maconha se expõe a outras drogas, enquanto na Holanda isso ocorre apenas com 14% dos usuários (GRUND; BREEKSEMA, 2013). Outrossim, a proibição das drogas pode impactar diretamente na resposta dos participantes das pesquisas, que podem temer retaliações ao assumirem um crime [uso de substância ilícita]. Quanto mais severa a pena, maior a probabilidade de esquiva da pergunta e mentir nas respostas, produzindo dados inverídicos.

Após pouco mais de um século das primeiras convenções internacionais que avançaram globalmente a estratégia proibicionista, organismos internacionais, dos quais o Brasil faz parte, começam a ouvir o grito de socorro proveniente do fracasso retumbante da War on Drugs. A Organização de Estados Americanos (OEA) publicou um importante relatório em 2013[2] no qual sugere explicitamente alternativas como a redução de danos e a descriminalização (despenalización) do consumo das substâncias psicoativas tornadas ilícitas, como possíveis caminhos a serem tomados.

O Uruguai, por meio da Lei 19.172, de 20 de dezembro de 2013, resolveu regular a produção, comércio e consumo da cannabis. No entanto, tal regulação ocorreu ao longo dos anos e não de uma única vez. A última fase desta regulação, que constitui na autorização do comércio de cannabis nas farmácias ocorreu apenas em julho de 2017. Há alguns indicativos iniciais de aprovação da nova Lei pela população (KREHER, 2016). O teor de THC das duas variedades de maconha uruguaia é baixo (cerca de 2% apenas) e é possível que muitos uruguaios optem pelo auto-cultivo [igualmente regulado pela Lei].

O autor, Sérgio de Paula Ramos, continua:

· Com isso, aumentarão as consequências clínicas e sociais decorrentes do consumo de THC: evasão escolar, depressão, esquizofrenia, aumento no consumo das demais drogas, acidentes de trânsito e emergências médicas envolvendo crianças.

Lamentavelmente aqui a falácia dá frio na espinha. O autor trabalha com noções absolutamente fora da comprovação científica, como a ideia da maconha como porta de entrada para outras drogas. A maconha é uma planta usada tipicamente após o uso de outras drogas como tabaco e álcool e não há evidências que seja uma substância “porta de entrada”. Se de fato a maconha fosse a porta de entrada para outras drogas teríamos uma prevalência muito superior no consumo de outras substâncias [a nível populacional].

Sobre o tema Cannabis e esquizofrenia há muito material de debate. O artigo: A critical review of the antipsychotic effects of canabidiol: 30 years of a translational investigation” de Zuardi e outros (2012) foi publicado na Current Pharmaceutical Design realizou uma revisão sobre o tema. Em 1982 ocorre o primeiro estudo da relação entre o canabidiol (CBD) e as suas propriedades antipsicóticas. O CBD, quando administrado junto ao principal princípio ativo da Cannabis sativa, o THC, reduz a ansiedade e propriedades denominadas como psicotomiméticas (que imitam a psicose).

O primeiro estudo clínico com metodologia duplo cego com CBD com pacientes psicóticos foi uma comparação entre 42 pacientes, divididos em dois grupos, tratados durante quatro semanas, um grupo com o medicamento CBD e o outro com amissulprida; os pacientes haviam sido diagnosticados com esquizofrenia paranoide ou transtorno esquizofreineforme. Os escores dos pacientes no BPRS e na Escala de Síndromes Negativa ou Positiva (PANSS), apresentaram diminuição significativa em ambos os tratamentos, sem diferença entre eles. Os efeitos colaterais como sintomas extra piramidais, que ocorrem com antipsicóticos típicos, aumento da prolactina e ganho de peso foram significativamente menos observados com CBD do que com amissulprida. Estas diferenças são fundamentais, pois os efeitos colaterais das drogas antipsicóticas, muito intensos, são uma importante razão para abandonos de tratamentos; importante destacar também que a esquizofrenia paranoide é o tipo mais corrente de esquizofrenia e, tipicamente, ocorre junto a presença de pensamentos delirantes com características paranoicas.

É claro que CBD é um dos cannabinóides da maconha, mas não a maconha e, igualmente, é verdadeiro que no caso da Cannabis falamos da interação entre diversos cannabinóides. No mercado ilícito, de forma geral, desconhecemos a quantidade de CBD ou THC, p.ex, na maconha que se pretende utilizar.

Para tornar este debate mais complexo, embora existam diversos estudos que apresentem uma associação entre maconha e esquizofrenia, o assunto está longe de ter esgotado. Nas últimas décadas, em especial nos últimos 30 a 40 anos, houve um substancial aumento no consumo de maconha e se a relação entre maconha e esquizofrenia fosse causal, por consequência, observaríamos o aumento na incidência de esquizofrenia. No entanto, estudos populacionais (MACLEOD apud SILVEIRA, 2006) tem sugerido a estabilidade ou mesmo discreta redução dos casos de esquizofrenia no período.

O autor do texto, Sérgio Ramos, se refere ao mercado da maconha em comparação ao mercado do tabaco, na busca de uma evidência que a regulação da maconha produziria um aumento exponencial no uso da planta. No entanto, é preciso sinalizar que há diversas formas possíveis de regulação do tabaco, tal como da maconha. No caso do cigarro mantivemos, enquanto sociedade, uma grande leniência com a indústria tabagista que custou caro a nossa sociedade. Tal custo refere-se as mortes e doenças oriundas do uso do cigarro. Apesar disso, nenhum estudioso sério deste tema indicará a proibição do cigarro como alternativa segura na contemporaneidade. Em especial, porque a política brasileira de controle do tabagismo é um grande sucesso a nível internacional. Conseguimos reduzir de 1989 à 2013 a prevalência do uso do tabaco entre a população acima de 18 anos de quase 35% ano de 1989 para 14,7% no ano de 2013. Já a partir da pesquisa da VIGITEL/2016 o número de tabagistas é ainda menor, com 10,2% e importante queda desde o período avaliado (2006) (INCA, 2017). Trata-se de um sucesso a nível de saúde pública. Ao analisar estes dados, torna-se claro que uma regulação responsável da maconha poderia produzir bons resultados a nível de controle do consumo. Deve-se acrescentar, outrossim, que para avaliação de políticas públicas sobre drogas não se pode aferir apenas e exclusivamente os dados estatísticos ou epidemiológicos concernentes ao consumo de drogas lícitas ou ilícitas. Deve-se avaliar, além disso, a forma como este consumo se dá. Portanto, o aumento do consumo não é um indicador isolado sobre o sucesso ou fracasso de uma política de saúde no campo das drogas. A estratégia da redução de danos já nos apresentou dados sólidos de que, por vezes, sem que se reduza o consumo, há a possibilidade de reduzir uma série de danos associados ao consumo determinadas substâncias. Um exemplo é a redução da contaminação por Hepatite C e pelo Vírus da Imunodeficiência Humana (VIH/HIV) devido ao compartilhamento de seringas no caso do uso de drogas injetáveis.

Cabe lembrar – argumentos que precisam ser aprofundados, mas que nos levariam muito longe, que:

1. A maconha apresenta menores riscos à saúde do que o álcool e o tabaco;

2. Que seu potencial de dependência é menor que de ambas as substâncias lícitas;

3. Que já acumulamos conhecimentos de saúde pública, em especial no caso do uso de cigarros, que podem e devem contribuir para as regulações do uso social da maconha;

4. Que o proibicionismo é um fracasso não apenas para a saúde pública, mas igualmente para a segurança pública. Os resultados da política de proibição das drogas são funestos e a história nos dá inúmeras evidências de que seus objetivos latentes nunca foram orientados para a melhoria da saúde pública, mas para perseguição e controle de grupos populacionais [negros; mexicanos; chineses, p.ex], em geral, da população pobre; relação de poder na política internacional; dentre outros;

5. Por fim, que é preciso buscar políticas sensatas no campo das drogas. As políticas de descriminalização como a de Portugal apresentaram bons resultados. Mas não há política com maior regulação da qualidade e do mercado, que a legalização. No caso da maconha é fundamental que esta regulação caminhe em conjunto com uma política de auto cultivo de cannabis, como já construída por grupos de cultivadores.

Referências:

GRUND, J-P.; BREEKSEMA, J. Coffee shops and compromise: separated illicit drug markets in the Netherland. Open Society Foundation, 2013. Disponível em: <https://www.opensocietyfoundations.org/sites/default/files/coffee-shops-and-compromise-20130713.pdf>.

INCA. Prevalência de tabagismo. 2017. Disponível em: <http://www2.inca.gov.br/wps/wcm/connect/observatorio_controle_tabaco/site/home/dados_numeros/prevalencia-de-tabagismo>.

KREHER, D. et al. Uruguay a dos años de la aprobatión de la ley que regula el cannabis. Informe de la investigación independiente acerca de “el proceso de regulación del cannabis en Uruguay, a dos años de la aprobación de la Ley nº 19.172”. Montevideu, 2016.

LYNNE-LANDSMAN; LIVINGSTONE; WAGENAAR. Effects of State Medical Marijuana Laws on Adolescent Marijuana Use. Am J Public Health. 2013 August; 103(8): p. 1500–1506. Disponível em: <https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC4007871/>.

MORIN, E. Introdução ao Pensamento Complexo. 3ª edição. Porto Alegre: Sulina 2007.

RAMOS, S. de P. Maconha: um grande negócio. Gazeta do Povo. Disponível em: <http://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/maconha-um-grande-negocio-905nyfwgg6zk3t6z1uquz3x55>.

SILVEIRA, D. X. da. Cannabis pode realmente causar esquizofrenia? In: SILVEIRA, D. X. da; MOREIRA, F. (Orgs). Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu. 2006. p. 96-97.

UNODC. World Drug Report. United Nations publication, 2017.

ZUARDI, A. et al. A critical review of the antipsychotic effects of canabidiol: 30 years of a translational investigation. Current Pharmaceutical Design, 2012.


[1] – O autor poderia argumentar, p.ex, acerca da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas (2011) do Conselho Federal de Psicologia que apresenta dados com diversas violações de direitos humanos nestas Instituições Totais. É de notório conhecia a relação entre sofrimento de situações de violência e vexatórias e emergência de transtornos mentais e do comportamento.

Afirma a Inspeção:

Há claros indícios de violação de direitos humanos em todos os relatos. De forma acintosa ou sutil, esta prática social tem como pilar a banalização dos direitos dos internos. Exemplificando a afirmativa, registramos: interceptação e violação de correspondências, violência física, castigos, torturas, exposição a situações de humilhação, imposição de credo, exigência de exames clínicos, como o teste de HIV − exigência esta inconstitucional −, intimidações, desrespeito à orientação sexual, revista vexatória de familiares, violação de privacidade, entre outras, são ocorrências registradas em todos os lugares. Percebe-se que a adoção dessas estratégias, no conjunto ou em parte, compõe o leque das opções terapêuticas adotadas por tais práticas sociais. O modo de tratar ou a proposta de cuidado visa forjar − como efeito ou cura da dependência − a construção de uma identidade culpada e inferior. Isto é, substitui-se a dependência química pela submissão a um ideal, mantendo submissos e inferiorizados os sujeitos tratados. Esta é a cura almejada.

https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/03/2a_Edixo_relatorio_inspecao_VERSxO_FINAL.pdf

[2]http://vivario.org.br/wp-content/uploads/2013/05/escenarios_drogas2013-2025_ESP.pdf