Introdução à Ayahuasca (PARTE III): Religiões Ayahuasqueiras

por Fernando Beserra

PARTE I

PARTE II

Assim como ocorreu nos EUA em relação ao uso religioso do peiote, também no Brasil houve a regulamentação para um uso religioso de uma potente substância psicoativa. Estamos falando mais uma semana sobre a ayahuasca, seu consumo em contextos religiosos e rituais. Toda esta história, embora pudéssemos retroceder milênios se falássemos sobre os usos religiosos da ayahuasca nos povos indígenas da região, começa no Estado brasileiro do Acre, mais especificamente em Rio Branco. Foi um seringueiro tão real quanto mítico, nomeado de Raimundo Irineu Serra, conhecido como Mestre Irineu, que fundou no início dos anos de 30 do século passado o famoso Santo Daime.santodaime_01

 

Mestre Irineu, como era conhecido, conhecera antes de fundar o Santo Daime o chá da ayahuasca, no interior da selva amazônica junto a grupos indígenas e populações caboclas. Acredita-se que isto ocorreu em torno de 1914 ou 1915 (GOULART, 2008). Mestre Irineu, um negro de quase 2 metros da altura, chegou a organizar um centro de trabalhos espirituais com o consumo do que viria a denominar-se Daime. O próprio nome Daime, acredita-se, está relacionado ao pedido do aspirante a tomar o chá, que deve solicitá-lo: “Dai-me saúde, dai-me amor, dai-me luz”, etc. (GOULART, 2008, p.252). O nome Daime foi revelado a Irineu em suas primeiras experiências com o chá na fronteira entre Brasil, Peru e Bolívia, sustenta Monteiro da Silva (apud GOULART, 2008) e a revelação ocorreu por uma divindade feminina, posteriormente identificada como a Virgem cristã.

Mestre Irineu, ao fundar o Santo Daime, já era um típico padrinho, uma autoridade em questões espirituais que as pessoas buscavam para sanar diversos problemas. Não apenas, mas Irineu estimulou práticas de solidariedade econômica, como o mutirão. Não demorou para que chamasse também atenção das autoridades, tido como agitador. Haviam relatos que Irineu enfeitiçava as pessoas, separava casais e praticava macumba. Obviamente que naquele contexto histórico-cultural, um negro do tamanho dele, um líder comunitário, que além disso utilizava um chá que causava visões e prometia a cura ou identificação de diversos males, seria acusado rapidamente dos piores rótulos pelos que pretendiam a manutenção dos status quo e o controle social das populações marginalizadas.

Lembremo-nos que o Código Penal brasileiro de 1890 proibia o exercício ilegal da medicina, bem como o espiritismo, a magia e o charlatanismo. As religiões ayahuasqueiras, que são tipicamente religiões brasileiras, foram perseguidas notoriamente junto a religiões afro-brasileiras por charlatanismo, com repressões oficiais.

Em 1945 surge uma nova religião ayahuasqueira, também em Rio Branco, no Acre. Inicialmente conhecida a partir da Capelinha de São Francisco, estabelecimento onde eram realizados os trabalhos, foi posteriormente denominada Barquinha, seu nome até hoje. Seu fundador foi Daniel Pereira de Mattos, o Mestre Daniel. O fundador da Barquinha foi conduzido por visões que teve a cumprir outra missão, o que incluía a criação deste novo culto religioso. Segundo Goulart (2008, p.253):

Conta-se que, incialmente, o Mestre Daniel era conhecido na região como um “rezador”, procurado para tirar “quebranto” de crianças, “panema” de caçadores, enfim, para ajudar a resolver alguns tipos de infortúnios de viajantes, de seringueiros, etc. que passavam por aquela região de mata onde ele construiu sua capelinha.

Como os trabalhos do Santo Daime, a Barquinha também passou a envolver canto de hinos, muitos revelados em mirações. De forma muito mais clara que no Santo Daime, a Barquinha conta com grande aproximação de crenças e práticas de religiões afro-descendentes como a Umbanda. Na Barquinha ocorre também o chamado bailado, que permanece bastante presente mesmo em práticas de religiões ayahuasqueiras menos conhecidas.

No bailado (dança, brincadeira) realizado na Barquinha existe uma aproximação com a gira dos cultos Afro. A dança inicia em movimentos lentos em um circulo e gradualmente os participantes podem entrar em transe e entrar no centro do circulo (SHANON, 2002). Os participantes do bailado podem ser possuídos por seres espirituais, o que difere do Santo Daime, onde isto não ocorre. No Daime o bailado ocorre com fixação da posição dos participantes do início ao fim da sessão, permitindo pequenos movimentos, dois passos a direita, dois passos a esquerda. A atenção concentrada nos passos, a disciplina, é também uma disciplina do espírito.

Em 1961 é formada a terceira importante vertente das religiões ayahuasqueiras, a União do Vegetal. Seu fundador foi José Gabriel da Costa, o Mestre Gabriel. A UVD, como é chamada, foi formada em Porto Velho, no Estado de Rondônia. A UDV apresenta algumas diferenças em relação as duas religiões anteriormente denominadas, a começar pelo nome atribuído à ayahuasca. Diferente da denominação como Daime, na UDV o mesmo recebe o nome de Vegetal.

· Não ocorrem os bailados na UDV. Os participantes tomam o chá e permanecem sentados ao longo das sessões, que duram cerca de 4 horas em média;

· A palavra ganha maior relevância na UDV, com a presença de discursos, sejam oficiais (da própria UDV), sejam de guias que falam através de médiuns;

· Presença de chamadas (canções moduladas) entoadas por participantes (um único que canta);

Por fim outro grupo importante, este que rapidamente se difundirá, é o chamado CEFLURIS, o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra, fundado em 1975 por Sebastião da Mota de Melo, o Padrinho Sebastião. E foi justamente na década de 70 que as religiões ayahuasqueiras passam a ser mais conhecidas por intelectuais, hippies, artistas e vão enfrentar um novo estigma, não mais o de curandeirismo, mas o do uso de drogas. E no próximo post desta série vamos começar a abordar como este novo estigma se constitui e um pouco mais desta história das religiões brasileiras ayahuasqueiras.

Tudo isso é importante para pensarmos, inclusive, na atual situação brasileira, onde religiosos que utilizam substâncias com finalidade ritual, como Ras Geraldinho, permanecem atrás das grades. A história brasileira ainda amarga sombras inglórias e traumas que marcam e marcarão gerações. Como primeiro país que proibiu efetivamente a maconha, no Estado do Rio de Janeiro, há mais do que um chamado, há uma necessidade refletirmos sobre nossas políticas de drogas e alterarmos o quadro que vivemos.