Herança maldita: o fortalecimento dos manicômios no Brasil

por Fernando Beserra

O ano de 2017 se passou com diversos retrocessos nas políticas públicas brasileiras. Isso não é exceção no campo das drogas e da saúde mental. Enfrentamos pressões e tensões mais intensas do que as dos últimos anos, como o desmonte da política de saúde mental corrente. Outro assombro do final do ano é a busca do sinistro ministro Osmar Terra de promover uma política de drogas fielmente contrário a todos os esforços de legalização, descriminalização e, além disso, orientada a internação de usuários de substâncias. Claro que a internação não seria pelo Sistema Único de Saúde (SUS), mas geraria muita transferência de recursos financeiros do Estado brasileiro para as Comunidades Terapêuticas privadas.

A política brasileira de saúde mental é, atualmente, referência internacional. Buscou nos últimos anos desconstruir a lógica manicomial fomentada anteriormente. Para quem desconhece do assunto, os manicômios já foram no Brasil um de seus principais lobbys econômicos no próprio Congresso e seus articuladores defendiam até o fim as suas instituições de internação. Obviamente que quando se paga por leito (por interno), na lógica privativista, pensa-se que, quanto mais internos melhor. Isto é: mais dinheiro. Além disso, a falácia de que a internação forçada de pessoas é uma conduta terapêutica tem longo lastro histórico no Brasil e no mundo. Machado de Assis escreve brilhantemente sobre o assunto da internação de pessoas que, supostamente, perderam a razão e a capacidade de decisão no seu livro: O Alienista. Sabemos muito bem que os usuários de substâncias, especialmente o das substâncias tornadas ilícitas, já foram perseguidos com esta acusação. Poderiam ser internados por não poderem responder por si mesmos. Basta que vejam o filme: Bicho de Sete Cabeças.

Apesar de existir uma posição ideológica defensora da internação – especialmente da internação forçada [a compulsória e a involuntária] – como uma política de saúde e cuidado a pessoas em sofrimento mental, os resultados alcançados estão longe de demonstrar tal cuidado ou tratamento. Pelo contrário, diversos pesquisadores, historicamente, foram percebendo os efeitos iatrogênicos da internação de médio e longo prazo, isto é: a internação promove mais danos à saúde do que aqueles que pretendia tratar. Entre estes, a primeira observação foi que as pessoas internadas em longo prazo (as vezes uma vida inteira) tem muito mais dificuldade de retornarem ao convívio social, isto é, a vida em liberdade. Os manicômios são espaços de segregação nos quais diversos ritmos da vida são sitiados e controlados: do horário de almoço ao horário de dormir; da vestimenta à orientação sexual. Tudo pode ser objeto de suposta intervenção terapêutica ou dos fluxos institucionais, típicos das instituições totais (prisões e manicômios, p.ex), não sobrando margem a liberdade. O usuário deste serviço acaba por se adaptar a este mundo. Ao lado de pacientes com sofrimentos mentais e patologias diversas, não há incentivo ao retorno a sociedade, mas incentivo a manutenção da vida interna e reclusa. Para a sociedade fora dos manicômios, exceto a familiares e amigos, parece que o manicômio é um instrumento de suposta segurança e, efetivamente, de alienação de uma parte “perigosa” da sociedade, sendo certamente este um dos motivos do seu bom acolhimento por parte de uma parcela significativa da população.

O sociólogo Erwin Goffman [1922-1982], em uma ocasião, resolveu se internar no Hospital Psiquiátrico de St. Elizabeth em Washignton, mesmo sem diagnóstico psicopatológico, de forma a buscar conhecer o mundo social do internado em uma Instituição Total e as modificações que são promovidas no Eu. Goffman (2008, p.11) definiu as Instituições Totais como: “local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada”. O autor (2008) destacou de que forma se promove uma mortificação do eu do interno, em uma espécie de carreira do “doente mental”. Caso se resista a mortificação das suas características singulares não aceites pela instituição, o paciente sofre, comumente, sanções físicas ou psicológicas. Todos os mecanismos propostos afastam o sujeito da vida na sociedade mais ampla e o obrigam, por fim, a se adaptarem a Instituição Total.

Além das rotinas institucionalizadas, a maior parte dos manicômios, chamados de Hospitais Psiquiátricos ou Comunidades Terapêuticas, enquanto políticas públicas, representam o ápice da violação de direitos humanos, de profundo descaso com os usuários (sujeitos sem voz ou direitos). Será que podemos imaginar como seriam estes caros (financeiramente) equipamentos de reclusão no momento da PEC 55 e das políticas de austeridade? Dá para imaginar o quanto sofrerão os pacientes?

A Reforma da Saúde Mental brasileira constituiu um modelo, mais do que visando a redução e desconstrução dos manicômios, orientada pela desinstitucionalização. Desinstitucionalizar não é sinônimo de deshospitalização. Embora a reforma antimanicomial tenha avançado na mudança dos regimes de assistência às pessoas em sofrimento mental, o marco da desinstitucionalização é produção de autonomia, com a realização de uma ruptura com o paradigma da psiquiatria tradicional. Neste sentido, o próprio ato de cuidado deixa de ser orientado de forma reducionista para a cura de uma patologia naturalizada, mas articula-se com projetos singulares de invenção de saúde (ROTELLI; LEONARDIS; MAURI, 2001), garantia de direitos e produção de relações. Como equipamentos da reforma, destacam-se os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), que trabalham no território do usuário, são serviços abertos e com equipes multiprofissionais. Na área do uso prejudicial de álcool e outras drogas, destaca-se o CAPS ad e os consultórios na rua. Entretanto, para que tal modelo tenha êxito é preciso que haja o devido investimento. Durante alguns anos, de fato, vimos a redução do número de leitos em instituições manicomiais, o aumento do número de CAPS e residências terapêuticas (para os egressos de longa permanência do regime manicomial) e o avanço geral do modelo da Reforma; entretanto, atualmente vemos uma grave mudança de lógica. Trata-se da revisão da Política Nacional de Saúde Mental, defendida por instituições como a Federação das Comunidades Terapêuticas e pela Associação Brasileira de Psiquiatria (com a ajuda do Conselho Federal de Medicina). Quanto as CTs não há surpresas. No entanto, alguém poderia perguntar como um Conselho Federal de Medicina pode defender tamanho absurdo, inclusive contrário a ciência e tão grave ética e socialmente… Infelizmente, não é muito difícil a análise. Os Hospitais Psiquiátricos apresentam duas grandes vantagens à medicina, a saber:

· Eram controlados/coordenados por profissionais médicos. Portanto, há médicos e médicos psiquiatras que sentem que a reforma antimanicomial horizontalizou as relações, tirando a centralidade da figura do médico e sua gestão dos serviços. De fato, a equipe dos CAPS busca ser mais heterogênea do que a do Hospital Psiquiátrico;

· Os Hospitais Psiquiátricos, por serem serviços que funcionam 24hs, garantem maiores recursos que os atuais serviços comunitários;

Ao contrário de retroceder, a política de saúde mental deveria sempre buscar avaliar o impacto de novas tecnologias de cuidado no suporte e assistência as pessoas em sofrimento psíquico. Neste sentido, a psicoterapia aliada ao uso de substâncias psicodélicas, por exemplo, tem muito mais a oferecer do que o reforço a metodologias antiquadas, financeiramente caras e não funcionais. O psiquiatra David Nutt conversou com os dois últimos presidentes da American Psychiatric Association (Liberman e Summergrad), o último presidente do European College of Neuropsychopharmacology (Goodwin), além de outros importantes nomes do EUA e Inglaterra das políticas sobre as drogas e regulação sanitária. Todos falaram a mesma coisa: “é tempo de levar os tratamentos com psicodélicos a sério na psiquiatria e na oncologia, como nós fizemos nos anos de 1950 e 1960, o que significa que nós precisamos ir de volta ao futuro” (NUTT, 2016, p. 1163). No periódico Monitor on Psychology, divulgado pela American Psychology Association, Novotney (2014) ressalta o renascimento da pesquisa com psicodélicos no campo da saúde mental e a importância da psicologia nesta área. Outrossim, há de se destacar, os tratamentos com a redução de riscos e danos apresentam um cabedal de técnicas e práticas clínicas úteis a população que realiza uso prejudicial de substâncias, seja devido ao uso abusivo ou devido a dependência de substâncias. Além de oferecerem um modelo eficiente no cuidado da farmacodependência, igualmente permitem a atenção aos cerca de 70% de casos de pessoas com dependência de álcool ou outras drogas que não querem ou não conseguem manter-se abstinentes.

Não devemos nos calar diante de mais estas ações abusivas do atual des-governo!

Referências:

NOVOTNEY, A. Research on psychedelics make a comeback. Monitor on Psychology, nov 2010, v. 41, nº 10. Disponível em: <http://www.apa.org/monitor/2010/11/psychedelics.aspx>.

GOFFMAN, E. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 2008.

MARIZ, R. Governo propõe nova política sobre drogas sem legalização: proposta ignora lei antimanicomial e inclui comunidades terapêuticas. O Globo. 2017. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/sociedade/governo-propoe-nova-politica-sobre-drogas-sem-legalizacao-22211526>.

NUTT, D. Psilocybin for anxiety and depression in cancer care? Lessons from the past and prospects for the future. Journal of Psychopharmacology 2016, Vol. 30(12) p.1163 –1164.