Experiência com MDMA [Portas da Percepção #404]

por Fernando Beserra

Hoje farei algo bastante incomum aqui nesta coluna: um relato com uso. Neste caso, um uso de MDMA.

No uso em pauta, tudo foi preparado. Desde seu objetivo, até o set e o setting. Preparamos o contexto para a experiência com MDMA. Não seria uma experiência em um setting lúdico, mas a busca de um mergulho em si. Para tal o setting foi bem organizado, em um espaço amplo, com dois guias – pessoas de profunda confiança e que conhecem bem a experiência psicodélica. Refletimos sobre como seria o manejo e os objetivos. Os dois cuidadores estariam em uma mistura de terapeutas e fornecedores de suporte (sitter). A experiência iniciaria no período da tarde e, como a experiência com MDMA não é tão longa, terminaria no início da noite. Mantivemos diversos cuidados, tais como:

 

· Agua e isotônico para hidratação;

· Esfigmomanômetro (aparelho de pressão arterial) a disposição;

· Venda para os olhos;

· As músicas preparadas com antecedência, embora pudesse ocorrer improviso de acordo com a necessidade e intuição;

· Alimentação leve realizada o tempo necessário antes do início da sessão;

· Manutenção, em local próximo, de itens para desenho e pintura;

Antes de tudo, conversamos sobre minhas questões pessoais, visto que tais questões poderiam surgir eventualmente na sessão, embora isso não fosse uma certeza. Embora não se tratasse de uma psicoterapia com psicodélicos, tratava-se de um procedimento experimental e com possíveis implicações terapêuticas. Tal conversa, apenas uma e antes da sessão, não teve o intuito de abarcar os diversos temas que poderiam emergir na experiência. Não teríamos, em tempo tão curto, como realizar os procedimentos ideais de uma terapia com psicodélicos. Apesar disso, cabia tocar ao menos em alguns temas centrais ao psiconauta para facilitar o manejo. Além disso, para que pudéssemos iniciar a experiência foram utilizados recursos para a redução da ansiedade, que naturalmente sinto antes de utilizar qualquer enteógeno/psicodélico. Foram realizados exercícios de relaxamento antes de tomar um comprimido com cerca de 130mg de MDMA. O MD, antes de ser inserido na capsula gelatinosa, foi testado com o reagente Marquis (ácido sulfúrico + formaldeído), com resultados positivos para MDxx.

Após o uso da capsula, resolvi jogar xadrez com um dos cuidadores, o que durou por quase 1 hora. Apenas 75 minutos após o uso do MDMA os efeitos iniciaram. O espaço já estava totalmente organizado para aquela experiência. Eu já sabia onde deitaria e assim o fiz. Quando os efeitos começaram a ocorrer eu estava jogando xadrez e percebi que era melhor me aprofundar em mim. Coloquei a venda nos olhos, enquanto um dos terapeutas/cuidadores ligou o som. Não demorou para que sentisse a experiência com intensidade. Eu me sentia pesado enquanto jogava xadez. Uma mistura de peso e extrema leveza rapidamente tomou forma. Era difícil me movimentar e percebi isso claramente quando fui beber um líquido já ao longo da viagem. Apesar disso, o corpo parecia muito leve, como se quase não fosse sentido. É como se a consciência quase pudesse se elevar do corpo.

Sentia uma conexão profunda com o setting. Me senti amparado e seguro. Desta forma, a minha ansiedade manteve-se baixa e consegui ficar um tempo bem razoável com a venda nos olhos em minha viagem pessoal. Imagino que tenha sido, em certo sentido, um pouco entediante para os cuidadores. Se minha vida pessoal, no contexto do uso, rondava no trabalho excessivo, ali senti o contrário: como se nada fosse excessivo e a viagem não precisasse de nada mais do que ela era. Uma sensação de leveza profunda, ao mesmo tempo que uma certa tensão diante do estado não ordinário, em especial no início, perdurava. O meu próprio trabalho, naquele momento, parecia excessivo apenas em sua justa medida. Como se fosse o momento para trabalhar como trabalho. Para existir como existo. O estado psicodélico foi característico neste sentido, cheio de paradoxos, mas com uma resolução incrível, embora bastante amena. A experiência interna acompanhou a sensação corporal. Senti que eu realizava uma espécie de voo xamânico, ao menos foi esta representação verbal que surgiu a minha mente para falar sobre a experiência que ocorria, quando eu comecei a baixar o voo no final da sessão. Este voo não produziu um enfoque: passei por várias e várias imagens e não me focava em nada. Era como se eu só precisasse voar; só precisasse rondar aqueles cenários sem que me aprofundasse sobre cada um de seus detalhes. Eu sentia o processo, mas não a profundidade do toque. Era um voo sem toques, mas nem por isso menos maravilhoso. Senti que voei como deveria ter voado. Como se a psique fosse integra na manifestação do inconsciente e senti uma profunda gratidão pela viagem. Talvez a única imagem que tenha conseguido fixar foi a que tocou o meu corpo. Senti como se houvesse uma abertura/ferida profunda próxima ao ombro direito, entre a região peitoral e o ombro, para ser um pouco menos impreciso. Não que parecesse jorrar sangue, não era o caso. Parecia apenas que havia uma abertura na região. O significado daquela ferida não se tornou nítido. Não foi revelado. Nada. Simplesmente havia uma necessidade de toque. Então fiquei lá. Fazendo carinho, de forma a amenizar aquela abertura no corpo. Um contato que era prazeroso. E só. Sem significados maiores.

Por fim, senti que a experiência trouxe exatamente o que eu precisava. Como se a compensação do inconsciente fosse extremamente inteligente e inteligível. Isto é, em uma vida acelerada o que era necessário era um momento de aprofundamento nas imagens e no corpo. Uma espécie de paisagem que trouxesse o oposto da vida acelerada, com fins de sentir na pele que a vida não precisa de sentido em todos os momentos. Por vezes, é preciso apenas surfar. Surfar em ondas invulgares.