Nas mãos do senador Cristovam Buarque

Está nas mãos do senador Cristovam Buarque (PDT-DF) a possibilidade de acendermos o debate da legalização da maconha no Brasil nos próximos anos. Para isso, ele precisa transformar a Sugestão 8 em projeto de lei sobre que regule o mercado de maconha.

Entretanto, Cristovam só está convicto da importância de legalizar imediatamente o uso medicinal, com a possibilidade de permitir o cultivo caseiro para este fim. Mais o maior entrave para o avanço da legalização será um parlamento ainda mais conservador que teremos nos próximos quatro anos.

Em entrevista para Folha de São Paulo o senador Cristovam fez um balanço das audiências da SUG8, dando dicas de um parecer favorável uma mudança progressista na lei de drogas.

Folha – Aos poucos, vários Estados dos EUA regulamentam o uso recreativo da cânabis. Como está o entendimento dessa questão no Brasil?

Cristovam Buarque – A partir das audiências no Senado, entendi que o proibicionismo fracassou. Estamos perdendo a guerra contra as drogas porque o consumo está aumentando e porque há dois novos problemas: a violência do tráfico e a repressão a jovens usuários, presos como traficantes, que ficam com as vidas marcadas para sempre.

Nesse entendimento, estamos parecidos com os EUA. Mas estamos longe da clareza deles sobre como regulamentar o uso da cânabis.

Não consegui respostas para perguntas como: a regulamentação aumentará o consumo da maconha? Diminuirá o tráfico de drogas? Maconha é porta de entrada para drogas mais pesadas?

Como avalia a tese de que maconha é porta de entrada?

Muita gente diz que a porta de entrada para o crack, por exemplo, é o fato de o sujeito comprar maconha irregularmente de um traficante que, para criar dependência, mistura a maconha com o crack. A regulação evitaria isso.

Mas há quem diga que, quando alguém experimenta uma droga, como maconha, quer logo experimentar outra. Se for assim mesmo, a porta de entrada para drogas pesadas é o álcool. Mas ninguém concebe proibir o álcool porque isso já foi feito [nos EUA] e não deu certo.

Eu abro o meu relatório dizendo que, de sexta a domingo, o Brasil é um imenso botequim. Estima-se que 96 milhões de brasileiros usem álcool a cada fim de semana. Isso é um desastre.

Há certa hipocrisia em dar tratamentos tão diferentes para o álcool e a maconha?

A droga passou a ser uma característica da sociedade. E há certa hipocrisia, sim, pois o álcool traz problemas de uma gravidade brutal, e nós toleramos e incentivamos seu consumo com publicidade.

Um estudo britânico criou um ranking de drogas a partir dos danos provocados por elas. Nele, álcool e tabaco estavam no topo, e a maconha, na base.

Esse estudo foi apresentado no Senado. Mas, a cada estudo, sempre havia alguém que dissesse que ele não era sério. Nenhum estudo foi unânime. Houve um debate com dois cientistas da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) que tinham posições totalmente opostas.

E como fica um leigo nesse tiroteio científico?

Como eu: dizendo que não dá ainda para ter uma posição clara. O debate ainda não é conclusivo. Se eu fosse escolher uma frase de tudo o que eu ouvi, a melhor delas foi de um coronel da PM do Rio, que disse: nós temos que escolher entre afastar as drogas do jovem por meio da polícia, ou afastar o jovem da droga por meio da educação.

Quais são as conclusões e recomendações do relatório?

[No documento] digo que parece haver uma tendência no mundo à descriminalização e à tolerância do uso da maconha, mas não me senti em condições de fazer um relatório afirmativo, definindo formas de regulamentar o consumo. Defendo que a Sugestão 8 não seja arquivada e que o debate continue.

E no caso do uso medicinal?

Defendo a regulamentação imediata dos remédios derivados da cânabis fabricados por laboratórios. Para isso, tem de ser feito um projeto de lei imediato. Defendo também facilitar o uso da cânabis “in natura” para fins medicinais. Só que a maneira de organizar isso exige estudos.

Pelo que eu vi até aqui, é desumano impedir uma pessoa em fase terminal de uma doença de ter um mínimo de qualidade de vida porque ela teria de usar um produto considerado ilícito.

Estudos indicam benefícios do uso da cânabis para esclerose múltipla e durante o tratamento com quimioterapia.

Creio que há evidências de que esse uso seja positivo. Ouvi depoimentos de pessoas em quimioterapia sobre o ganho de qualidade de vida com o uso da maconha “in natura”, fumada mesmo. Isso não foi contestado, o que demonstra que temos de levar a sério esse papel da cânabis.

Mas precisamos debater um pouco mais sobre como seria a organização da distribuição da cânabis para fins medicinais. Vamos permitir plantação em casa ou não? O Estado vai produzir? Eu não simpatizo com essa ideia.

O senhor realizou seis audiências públicas sobre o tema no Senado. Muitas delas se tornaram campos de batalha.

Estou sendo processado por uma pessoa [um pastor] que, por razões religiosas, deu voz de prisão a um rapaz que ofereceu canabidiol [derivado da maconha usado em remédios] para a mãe de uma criança com epilepsia em plena audiência. Eu disse que não permitiria isso, e ele acionou o Ministério Público dizendo que fui conivente com apologia ao crime.

Em que medida a religião é um entrave a esse debate?

Religiosos acham que usar maconha é pecado. Mas o Estado não diz o que é pecado. E igreja não diz o que é crime.

Teremos de levar em conta a questão moral da sociedade brasileira. Como é que a sociedade entende uma droga ilícita, de repente, se tornar lícita? Como “maconheiro” passa a ser um adjetivo comum? Mas, há 50 anos, chamar uma mulher de divorciada era pior do que chamar um jovem de “maconheiro” hoje. E isso não existe mais.

Um Congresso mais conservador dificulta esse debate?

Dificulta. Acho que o mundo caminha para a regulamentação do uso da maconha. E, mesmo não me considerando um conservador, eu não sei como deve ser essa regulamentação.

A que tipo de pressão o senhor esteve exposto na relatoria?

Poucas porque não aceitei receber no meu gabinete quem quisesse fazer lobby. Teve laboratório que pediu encontro. Alguns donos de clínicas também. Eu evitei.

Eles são parte interessada: laboratórios vão lucrar se o comércio de remédios à base de cânabis for autorizado e clínicas podem perder dinheiro, porque, se deixar de ser crime consumir maconha, as internações podem diminuir.