Debatendo a Alucinação! [Portas da Percepção Ed. 282#]

por Fernando Beserra

Hoje vamos falar aqui no Portas da Percepção das alucinações. Antes de mais nada é necessário desconstruir o estigma criado em torno do alucinar. Nem toda a alucinação é sinônimo de sofrimento e desorganização psíquica. Isso não significa, com efeito, que o alucinar não possa ser um dos fatores psicológicos de maior impacto no sofrimento mental de determinadas pessoas.

Antes que venhamos a pensar esta discussão articulada ao uso de psicodélicos, cabe retomar a origem do termo alucinar, isto é, sua etimologia. De acordo com Oliver Sacks, no livro Hallucinations, a palavra é utilizada, primeiramente, no início do século XVI. Neste contexto, era utilizada no sentido de uma mente divagante. Como autores da psicologia, como James Hillman e da filosofia, como Gaston Bachelard, nos indicam, o devanear e o imaginar são fundamentais.

O professor Henrique Carneiro, em Amores e sonhos da flora, cita o antropólogo Jeremy Narby, que escreve: “hallucinari significa em latim ‘errar com seu espírito, divagar’ […] é recentemente no século XV que a palavra hallucinari adquiriu o sentido pejorativo de ‘equivocar-se’”. O equivocar da alucinação, para a psicopatologia ocidental, não significa um erro do pensamento, por exemplo, uma ideação persecutória, que seria classificada no conjunto dos delírios, mas um equivocar-se da senso-percepção. Assim, define-se a alucinação, no Compêndio de Psiquiatria dos Sadock, como: “percepção sensorial falsa, sem associação a estímulos externos reais; pode ou não haver uma interpretação delirante da experiência alucinatória” dentro dos transtornos da percepção. No mesmo livro, baseado no DSM-IV, de 1994 (em 2013 foi lançada a quinta edição, alvo de muitas críticas), classificam-se 15 tipos de alucinação. Paim cita Mira y Lopes, que assim define o fenômeno alucinatório: “Imagem representativa ou imagem fantástica que adquire os caracteres de sensorialidade necessários para ser aceita pelo juízo de realidade como proveniente de um juízo exterior”.

Pode-se distinguir as alucinações em simples e compostas, as primeiras referentes a alucinações com estímulos simples a nível dos sentidos (escutar algum som isolado que não foi ouvido coletivamente, ver cores que não existem no olhar compartilhado, etc.) e as alucinações complexas, que envolve a escuta de conversas (a. auditiva), ver cenas complexas (a.visual), etc.

A alucinação é, tipicamente, na sociedade contemporânea, relacionada ao transtorno esquizofrênico. Na esquizofrenia, especialmente na esquizofrenia paranoide, são comuns alucinações auditivas, nas quais a pessoa ouve coisas que os demais não escutam (sem um estímulo eliciador). As vozes, relacionadas a psicodinâmica da pessoa são, neste caso, especialmente de cunho negativo (associadas ao desprazer), com diversos tipos de hostilidade à pessoa que alucina e, muitas vezes, com a presença de comandos. Neste caso, o alucinar associa-se a uma conjunção de fatores psíquicos da desorganização mental que criar um cenário que poderia ser mal comparado à uma bad trip constante, paralela à uma ausência de consciência de morbidade e a um enfraquecimento geral do complexo do Eu (ego). A pessoa não percebe que os outros não partilham de suas alucinações, por exemplo, e as toma como reais e impassíveis de modificação por argumentação lógico-racional.

Entretanto, existem distintas formas de alucinar. Oliver Sacks aborda a alucinação como um fenômeno provavelmente tão antigo como o cérebro humano, aproximando-o inclusive da origem de diversas artes e religiões. Pergunta o pesquisador se os personagens fantásticos como elfos, fadas e duendes não seriam fruto de alucinações lilipudianas (alucinação na qual vê-se tudo reduzido, muito pequeno). Um exemplo de alucinações distinta da esquizofrenia é a chamada Síndrome de Charles Bonnet. A síndrome ocorre em pacientes cegos ou que perderam parte de sua visão e é caracterizada pela presença de alucinações, muitas vezes, com complexas visões, imagens vívidas e detalhadas como uma senso-percepção julgada real. Em uma pesquisa realizada na Holanda por Robert Teunisse e outros, 15% de idosos que participaram da pesquisa, relataram alucinações complexas (com animais, pessoas ou cenas) e 80% tiveram alucinações simples, como mudanças de cor, formas, padrões. As imagens podem ser aterradoras, mas também neutras ou agradáveis, como um filme mental passando para a pessoa que alucina, que pode manter plena lucidez mental ao mesmo tempo.

A fenomenologia do uso de psicodélicos, já tão explorada aqui no Portas, nos leva a crer em outro tipo de experiência pelos psiconautas. Isso não infere, pelo contrário, na completa ausência de fenômenos classificados como alucinatórios. Por exemplo, encontram-se, muitas vezes, mudanças de formas, cores e padrões do campo da consciência do psiconauta. A experiência com psicodélicos pode levar a uma psicoscopia, a possibilidade de ampliar o campo da consciência como um microscópio da psique, permitindo a integração de conteúdos e afetos até então inconscientes. Embora alucinações complexas não sejam correntes no uso dos psicodélicos, isso não quer dizer que nunca ocorram.

Me recordo de um uso de Salvia divinorum, antes de sua proibição, no qual vi as vozes de meus amigos atravessarem meu campo de consciência. Cada palavra se deslocava no espaço, concomitante ao seu som. Uma espécie de alucinação textual. Este tipo de alucinação não levou a um sofrimento mental, mas ao riso e a diversão, bem como não reduziu meu grau de consciência sobre o estado não ordinário de consciência, sobre sua presença como efeito do uso de um psicoativo. As características alucinatórias do uso de psicodélicos são, tipicamente, muito diferentes da confusão mental presente na experiência esquizofrênica. De forma geral, as alucinações típicas são mais comuns no uso de alucinógenos atropínicos, que envolvem sérios riscos de vida. Não é o mesmo caso do uso de psicodélicos que, mais corretamente, são reveladores da alma (psyché + delein). E, se são associados tantas vezes à psicopatologia, tal associação só é corrente quando ligada ao sentido tradicional da psicopatologia, como o estudo das paixões da alma (psyché + pathos + logos). Como bem colocado por Antonio Escohotado, os psicodélicos levam a excursões mentais e são substâncias de escolha de muitas pessoas querem ir além ao posto/definido como limite do real e da verdade, para navegar por outras possibilidades de experiência de si e do mundo.

Em suma, a experiência alucinatória deve ser observada com cuidado, sem uma patologização prévia. Isso não significa um descuido com o sofrimento alheio, que é principal sinal de necessidade de ajuda. No caso dos psicodélicos, esta ajuda requer um bom manejo, com menos ansiedade e mais acolhimento. Como bem observado na psicologia complexa do suíço Carl Gustav Jung, a presença dos fenômenos alucinatórios é uma tentativa de autogestão da psique, uma tentativa de cura por meio da compensação inconsciente.

Alucinação e Esquizofrenia

Síndrome de Charles Bronson

Alucinação textual

Experiência com salvia

Transtorno de alucinação persistente

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