Da Capadócia ao Boogie Naipe: Jorge Ben e Mano Brown na Fundição Progresso (26/10)

Quando um palco tradicional como da Fundição Progresso recebe ícones da música popular brasileira do calibre de Jorge Ben e Mano Brown, é certeza de uma noite especial. Apesar do clima de melancolia diante de uma das mais dramáticas eleições da história do Brasil, a casa recebeu um público bom, animado e de idades variadas. Quem estava lá viu no palco um desfile de boa música que desafia estilos, passando por soul, funk, gospel, rock, MPB e dance – fora o baile, claro.

Texto: Cadu Oliveira / Fotografia: Lissandro Garrido

Antes do show começar, fiz uma rápida pesquisa de opinião para saber se a galera tinha vindo mais para assistir a velha ou a nova geração do soul brasileiro. Acreditem se quiser, mas dentre dez pessoas a votação ficou empatada no 5 a 5. Ou seja, ambas as estrelas mantem seu prestígio, mesmo após longos anos de caminhada. Quem preferiu o Ben, queria vê-lo ao vivo, vivíssimo, tocando sua infinidade de hits. E quem optava pelo Brown, dizia estar feliz por ver a banda Boogie Naipe em parceria com o rapper eternizado pelo vocal do Racionais.

A uma da manhã em ponto a Banda do Zé Pretinho entrou no palco. Para começar, a introdução veio chamando Jorge, aos seus 73 anos de idade, que entra em cena empunhando a inseparável guitarra. A primeira, pra abençoar a noite, não podia ser outra: Jorge da Capadócia.

Aplauso geral e palmas pra banda e pra Jorge Ben, que já chega alternando entre cordas e percussão. Enlouquece a galera com firula de batuques e ganha confiança do público com uma execução empolgada de 6 minutos.

No palco a formação é, da esquerda para direita, composta por baixo, piano, uma dupla de sopros que pilotam sax, flauta e trompete, e uma bateria – cheia de força e suingue. A segunda pedrada foi A Banda do Zé Pretinho. Sem ter tempo de respirar e emendando um som no outro, a banda puxou a sugestiva “Santa Clara Clareou”, do álbum Bem-Vinda Amizade, de 1981. No meio dessa, Jorge Ben Jor encaixa Zazueira, sugerindo mais ainda algo que, bons entendedores entenderão: “ela vem chegando, e feliz vou esperando, a espera é difícil, mas eu espero sonhando”, enfim… e ainda, dentro do mesmo Medley, um trecho de “A minha Menina”, dos Mutantes. Detalhe, três sons num só com direito a jam session.

Quem tem pouco hit faz média com a galera. Quem tem muito, faz medley. O quinto som é mais um combinado delicioso que começa com “Que Maravilha”, passa por um pedaço de “Magnólia” pra ir terminar com o quase pagode de “não sei não, assim você acaba me conquistando”, o clássico “Ive Brussel”.

Já era uma e meia da manhã quando os casais ficaram todos coladinhos para ouvir a romântica “Quero toda Noite”, cantada de forma animada após longa introdução. Só não estava dançando juntinho nessa hora quem tava solteiro… ou trabalhando, claro.

Luzes verdes ganharam o palco e Jorge Bem puxa uma lançada lá pelos idos de 1963. “Por Causa de Você Menina”, acompanhada em coro tímido. O cantor controla, com as mãos, os músicos como se fosse um maestro. Colando uma faixa na outra sem dar tempo nem pra respirar e com viradas muito bem ensaiadas, o sétimo som veio a galope e triunfal, “Mas que Nada” – pra delírio geral.

Antes da oitava música ouviu-se um coro tímido de “EleNão. Jorge Ben distribuiu algumas paletas para o público e chamou mais um clássico, o “Oba, Lá vem Ela”, tocado sob luz rosa no palco da Fundição. Quando o show foi caminhando para a nona canção uma grande microfonia invadiu o ar atrapalhando, mas não impedindo a sequência com “Zumbi”, e depois, coladinho, “Bebete Vambora”, que proporcionou coro e alegria à plateia.

Faltavam dez para as duas quando a décima primeira canção ganhou os alto falantes. “Take It Easy My Brother Charles”, original de 69, mas uma música eterna, daquelas de fazer emocionar ao se ver ao vivo. Agitando o meio de campo, Jorge avança com “O ponta de Lança Africano”, Umabarauma. Já a número 13 veio embalada com intro no solo de teclado, levantando a galera. Foi a vez de “Fio Maravilha’, que quando acabou deu lugar a, agora sim, um alto coro de “Ele Não”, infelizmente ignorado pelo cantor.

Mais uma baladinha romântica faz os casais se entrelaçarem. É a “Descalço no Parque”, que ganhou solo de sax caprichado. Sem demonstrar cansaço algum Jorge puxa “Menina mulher da Pele Preta”, sob bela luz azul iluminando tudo. Antes de dar sequência ao show, numa das poucas interações com o público, Ben Jor disse no mic: “Essa a Marisa Monte ia cantar junto, mas ela perdeu o metrô”, e avança para clássico “Telefone’.

Colando um no outro, como um mega engavetamento de hits, o por vir é excepcional, composto por “Os Alquimistas estão Chegando” e “Alcohol”, que teve solo de baixo. Ao fim dessa, a batera segura firme pra virada fantástica que emplaca “País Tropical”, com o público pulando lá no alto. Como tradição, no meio do País Tropical aparece aquele “bichinho pequenininho”, um tal de “Spyro Gyra”, pra depois voltar ao mais tradicional ainda refrão com corte das sílabas finais. Plateia louca.

Mas o que transforma a pista em um real baile black é Tim Maia, não tem jeito. E foi o que aconteceu quando, na vigésima música, Jorge lança “Do Leme ao Pontal”, para todo mundo ver que, com o Sebastião, amigo, “não há nada igual”. Sob luzes verdes e com uma apresentação longa, “W Brasil” abençoa ainda mais a memória de Tim.

Antes de começar “O Homem de Gravata Florida”, Jorge pede um favor: “Eu queria uma toalha que não seja de plástico. Essa aqui não enxuga nada”, reclama em tom de brincadeira. A música é executada toda só em voz e piano. Já eram 2:50 quando Ben Jor anunciou que o show estava perto do fim.

Na canção de número vinte e três, veio o “Surfista Solitário”, acompanhado do recado de Jorge Ben: “Eu quero que vocês aplaudam um surfista maravilhoso brasileiro, Gabriel Medina”, disse ele, sem que o atleta estivesse no palco ou por perto. Pra terminar, com direito a água pro alto e até rodinha, a banda fez “Taj Mahal”, completando vinte e quatro canções e, aproximadamente, duas horas de apresentação.

“Foi um showzaço, mas é triste ver que ele está envelhecendo, ficando com a voz mais frágil”, disse Ana Lúcia, gerente de projetos, uma jovem de uns 54 anos (disse ela, irônica, pois aparentava uns 23). Questionada sobre o que tinha lhe trazido ali aquela noite, Brown ou Ben, foi concisa e disse “os dois”. Fora isso, a jovem com idade de velha reclamou do atraso muito grande para o início do show.

Já o destaque da noite, segundo Marcos Caveira, profissional freelancer e mais um expectador da festa, foi “Fio Maravilha”, sem contar a energia da banda, no geral. E sobre o show que viria a seguir, ele disse em tom preocupado: “Tô com medo de virar comício. Eu não vim pra ver discurso político”, alertou, lembrando do episódio recente em que Brown aparece em um ato de campanha do PT.

Boogie Naipe de Mão Cheia – Brown Balança

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Antes do show da banda Boogie Naipe, uma artista da Fundição fez uma apresentação circense de cordas, bem no meio do salão. Quando relógio já estava lá pelas três e meia da manhã, enfim veio a turma fazer som.

_DSC1380Com a casa um pouco menos cheia, talvez por conta do atraso, a festa começou em alto nível. A sonoridade da banda é singular, com capacidade de transformar a energia de qualquer lugar em um verdadeiro baile black, mas as pessoas já não estavam mais muito animadas. Olhando para os lados era possível ver, vez ou outra, uma galera bocejando ao som do soul.

A Boogie Naipe, no palco, se organiza com dois back vocals, um DJ, um baterista e um na percussão, um doidão nos efeitos e sintetizadores, um no teclado, duas guitarras, um baixo, três no sopro, mais o vocal potente de Mano Brown e um na segunda voz pra lá de afinado, cheio de gritos e vocalizações. Ah, e pra fechar a conta, mais dois BBoys, dançando sem parar. Com isso, o palco até pesa com cerca de dezessete cabeças tocando a vera e dançando sem parar.

Destaques para “Boa Noite São Paulo” e “Mulher Elétrica”, tocadas em sequência. Só porque me viu com um caderninho na mão, anotando o tempo todo, um brother chegou perto para dar sua opinião: “Eu acho totalmente incompatível ver esse show que ele tá fazendo, com o que ele vive”, se queixou Ariel, de 29 anos, que trabalha como gerente de loja.

Antes de tocar “Flor do Gueto”, Brown anunciou no microfone: “Eu quero um casal aqui”, no que apareceu um fumando um baseado, prontamente filado pelo mestre de cerimônia. O palco acabou sendo invadido por pelo menos cinco casais, que protagonizaram cenas de beijo e pegação lá em cima, no que o Mc propagava “faça amor, não faça guerra”, em meio à chuva de selfies. No fim Brown protestou sobre isso dizendo “agora vamos acabar, já que vocês não largam esse maldito celular”, disse, se referindo aos presentes no palco.

Já passava das quatro horas da manhã quando a Boogie Naipe entoa algo como um neo-gospel da canção “Nova Jerusalém”. Sentado com um copo de whisky e um baseado degustado aos poucos, Brown fez valer sua militância representando no mic puxando um “Ele não, com certeza não… never, never, never”, brincando com a voz.

O show contou com um duelo entre voz e guitarra que arrancou aplauso geral. E quando começou “De Frente pro Mar” a casa virou um grande baile com as luzes de um globo de luz reluzindo pra todos os lados. Teve também solo de percussão longo e muito bem batucado. E também sessão animadassa de funk com memória de “Ela dança e eu danço”, mas já eram dez para as cinco da manhã e o sol já raiava.

Ao fim, quando as luzes acenderam, um doidão do fundo gritou “Toca Racionais, filho da p***”, sem compreender que esse projeto é justamente uma repaginação na carreira do Mano. Pois é. Não que seja uma página virada, mas essa nova fase representa um capítulo completamente novo na biografia do Brown. O show foi impecável na sonoridade, mas não empolgou muito a galera, talvez por as músicas ainda não serem de conhecimento da maioria da plateia.

Entre os presentes até o final, não houve resquício de dúvidas… o Ben foi maior que o Brown. Mas isso não é novidade nem para os integrantes da Boogie Naipe, afinal, como seria diferente, se Jorge Ben Jor é um rei da música black nacional? Só que no quesito posicionamento político, mais uma vez, o pódio da militância vai para o Capão. Sendo assim, como na pesquisa inicial, deu empate. Ambos brabos, campeões em seus estilos, um de trajetória consolidada e outro em fase de teste. Mano Brown e Jorge Ben, uma dupla inconteste.