Considerações sobre o “sapo” Kambô e a Medicina da Floresta

por Catiusia

Saudações amigos!

No artigo desta semana, gostaria de compartilhar um pouco da minha indignação acerca das notícias recentemente veiculadas na mídia sobre o kambô. Mais conhecida como “vacina do sapo” (que não é uma vacina e nem é proveniente de um sapo, mas sim de uma espécie de perereca), o kambô foi mais um alvo da mal informada televisão brasileira. Para quem não viu a reportagem (e não se preocupem, não perderam nada!) aí vão algumas considerações sobre o assunto.

 

O kambô é como chamam os índios amazônicos à perereca Phyllomedusa bicolor, que secreta a substância utilizada por eles em rituais de cura. Tradicionalmente, os rituais são feitos pelo xamã ou curandeiro da tribo antes do clarear do dia. A pessoa que recebe a secreção do kambô fica livre dos males físicos em seu corpo e ganha mais resistência às situações de estresse, como fome e sede. O ritual é uma espécie de defesa dos indíos às adversidades da floresta. Relatos de pesquisadores em etnobotânica trazem uma associação estreita do kambô com outro ritual enteogênico, do preparo de uma bebida a partir do cipó jagube (Banisteropsis caapi), o mesmo que é parte integrante da ayahuasca. Nesta associação, o “sapo” kambô é o animal patrono do “nixi pëi” que é a bebida feita a partir do cipó jagube. Destaca-se aqui a imensa riqueza dos conhecimentos tradicionais indígenas e de seus rituais xamânicos, associando animal e planta em um mesmo ritual.

Infelizmente, nem todas as pessoas possuem essa estreita relação com o mundo natural, e por esse motivo não são capazes de assimilar tais conhecimentos. O grupo de animais que inclui os sapos, rãs e pererecas, grupo dos anuros, constitui um grupo animal extremamente distinto. São indicadores de boa qualidade ambiental, ou seja, se estão presentes é sinal que o ambiente está relativamente preservado. O Brasil concentra uma das mais ricas faunas de anuros de todo o mundo, sendo que muitas espécies ainda são desconhecidas. Todos os anuros produzem toxinas de defesa em suas glândulas, como as do “sapo” kambô, mas os efeitos dessas toxinas são muito diversos dentre tantas espécies diferentes. Algumas toxinas tem efeito parecido com a adrenalina, outras possuem ação antimicrobiana e por isso têm despertado a atenção não só dos especialistas deste grupo da fauna, mas também nas indústrias farmacêuticas, de olho no potencial farmacológico dessas substâncias.

Os números do mercado farmacêutico são astronômicos, da ordem de 700 bilhões de dólares em vendas de medicamentos por ano. E adivinhem de onde saem tantas substâncias ativas para a produção de tantos remédios? Sim, das nossas plantas e animais. A riqueza da biodiversidade brasileira está na mira dos grandes laboratórios farmacêuticos e a maioria das pesquisas feitas em busca das substâncias potencialmente ativas são estrangeiras, ou patrocinadas por estrangeiros. As portas da floresta ficam abertas e o conhecimento tradicional de nossos índios se transforma em patentes de medicamentos, os quais nos são vendidos depois. A biopirataria é uma das grandes ameaças às nossas plantas e animais. Muito provavelmente existe uma facilitação do acesso a essas substâncias pelos próprios indígenas, mas considere os números do mercado farmacêutico e a situação de pobreza que vivem nossos índios, logo ficará claro que seus conhecimentos são comprados.

Não é de se espantar que notícias como essa sobre animais ou plantas e suas peçonhas ou toxinas são veiculadas de tal forma pela mídia, afinal está escrito na bíblia sagrada do cristianismo, por exemplo, que os sapos seriam “animais impuros” e mais alguns absurdos parecidos. E assim esse tipo de desinformação é passado adiante, e infelizmente a maioria esmagadora dos brasileiros não tem acesso à informação de qualidade. É uma grande pena que nosso país não consiga cuidar de suas florestas repletas de curas, de espíritos e de tradições.