Combinar Psicodélicos com o Capitalismo Pode Causar Efeitos Colaterais Não-intencionais

Alguns defensores dos psicodélicos estão entusiasmados com seus usos medicinais, alguns com seu potencial para transformar a cultura, mas a maioria parece estar empolgada com ambas as possibilidades. No entanto, para toda a pesquisa emocionante mostrando benefícios clínicos, parece que um mundo melhor resultará quase como um efeito colateral do ressurgimento dos psicodélicos. Eu argumento que isso é ingênuo, e que a justiça social e ambiental nunca será um efeito colateral de qualquer outro esforço, mas só pode ser alcançada através de ação sustentada, intencional e coletiva.

O psicólogo da comunidade George Albee calculou que não há terapeutas suficientes nos EUA para rastrear todas as crianças em busca de problemas de saúde mental, muito menos fornecer terapia a todos que poderiam se beneficiar dela. Ele concluiu que apenas a prevenção revolucionária, direcionada ao desmantelamento de sistemas que causam danos e estresse, pode proteger nosso bem-estar social e mental. Como um psicólogo recém-formado, este artigo me abalou, pois eu acreditava que a terapia poderia ser uma ferramenta primária para a mudança social e não havia considerado o quanto eu funcionava de forma semelhante a um médico de combate, consertando os feridos por sistemas injustos apenas para ver eles retornam ao campo de batalha. Ao mergulhar na psicologia comunitária, ativismo e teoria crítica, aprendi que nenhum sistema foi reformado alterando ou substituindo os indivíduos dentro dele. A única maneira de solucionar um estrutura problemática é terminá-la. Problemas sistêmicos exigem soluções sistêmicas.

Felizmente, duas organizações sem fins lucrativos lideram há muito tempo os ensaios clínicos psicodélicos: Usona com psilocibina e MAPS com MDMA. Entretanto, à medida que essas organizações se aproximam da linha de chegada com suas pesquisas, os interesses corporativos e do capital de risco também se aproximam. Compass Pathways, um recém-chegado, com fins lucrativos, apoiado pelo defensor de Trump e bilionário Peter Thiel, parece decidido a vencer a Usona através do processo de aprovação da FDA para monopolizar não apenas psilocibina, mas também terapia assistida por psilocibina. A Compass tem se utilizado de táticas que são extremas até mesmo para a indústria farmacêutica, como exigir que os pesquisadores assinem acordos de não divulgação e reivindiquem controle e direitos de propriedade intelectual sobre descobertas de pesquisas e terapias que surgem de estudos que usam sua psilocibina. Enquanto isso, a MAPS decidiu ajudá-los a navegar no processo do FDA. ATAI Life Sciences, outra iniciativa da Thiel, está investindo milhões em pesquisas adicionais sobre psicodélicos, longevidade e inteligência artificial.

Alguns líderes do movimento psicodélicos aplaudiram esses desenvolvimentos, revelando a falta de uma visão crítica sociopolítica adequada do capitalismo ou de um compreensão da natureza sistêmica da injustiça e da opressão. Ouvimos regularmente que o capitalismo é a melhor ou a única maneira “realista” de trazer psicodélicos às massas. No entanto, mesmo uma comparação superficial de modelos de assistência socialista versus modelos de assistência médica lucrativos, torna óbvio que apenas modelos socialistas são capazes de fornecer assistência médica universal, baseada na necessidade e não na capacidade de pagamento dos usuários. Ainda assim, muitos parecem convencidos de que o capitalismo é um mal necessário ou que pode até ser um cavalo de Tróia para ganhar aceitação no mainstream. Estas são suposições perigosas.

O problema do Capitalismo

Embora uma crítica do capitalismo esteja além do escopo deste artigo (ver A Companion to Marx’s Capital), pode ser demonstrado facilmente como ele é incapaz de prover sustentabilidade ou justiça. Em O Capital no século XXI, Thomas Piketty mostrou matematicamente, através de centenas de anos de dados econômicos, que o capitalismo inevitavelmente leva a uma desigualdade cada vez maior porque a riqueza existente (capital) sempre crescerá mais rapidamente do que a capacidade dos trabalhadores de aumentarem seus salários. As únicas exceções são rupturas como guerras, depressões e movimentos populistas que redistribuem temporariamente a riqueza. Além disso, E.F. Shumacher demonstrou, na década de 1970, que o capitalismo é insustentável porque depende de um consumo cada vez maior de recursos naturais, produzindo a fatal falácia lógica de tratar dinheiro (uma construção social) como um recurso escasso e a natureza como um recurso infinito. O Movimento negro demonstrou que o racismo é construido no capitalismo. A maioria branca tem sido protegida contra a desigualdade e a instabilidade do capitalismo, relegando os afro-americanos aos degraus mais baixos de um sistema de castas social, enquanto institucionaliza a discriminação para garantir que eles permaneçam lá. No entanto, o capitalismo tardio não está mais funcionando bem para a maioria dos brancos, pois eles estão cada cada vez mais envidados enquanto a desigualdade cresce.

Este é o seu cérebro no capitalismo

O capitalismo é espetacularmente ruim para as relações sociais e para a nossa saúde física e mental. A Organização Mundial da Saúde identificou a “má distribuição de poder, dinheiro e recursos como principais causadores das desigualdades na saúde global”. A desigualdade parece ser contrária à nossa evolução social, pois os mamíferos e as aves rejeitam salários desiguais quando treinados para usar uma economia simbólica (veja o vídeo). A desigualdade nem é boa para os ricos. Vários experimentos de pesquisa mostraram que crianças mais ricas são menos generosas em seu altruísmo, e indivíduos mais ricos estão mais dispostos a trapacear ou mentir para manter suas vantagens. Sem mencionar os problemas que surgem de um pequeno grupo de cidadãos ultra-ricos com a maior parte do poder político vivendo em um tipo de universo paralelo onde eles não têm participação e, portanto, pouca compreensão ou defesa para coisas como educação pública, segurança social, bem-estar ou outros recursos públicos de que nunca precisarão.

Devemos reconhecer que as pessoas frequentemente descobrem os psicodélicos através de sua desilusão com as consequências do capitalismo, embora muitos não percebam as raízes de sua insatisfação. Quando estamos contentes não consumimos tanto e quando estamos unidos procuramos a igualdade, entretanto o capitalismo promove a insatisfação, o materialismo, o consumo excessivo do ambiente natural, o egoísmo, a competição, o individualismo, as demandas excessivas de produtividade,  instabilidade nas comunidades, a desigualdade, a alienação e os efeitos dos impactos negativos no nosso bem-estar social e mental. Estes não são problemas individuais que podem ser superados com escolhas pessoais ou cura individual. A liberação “pessoal” é incompleta quando ocorre fora do contexto dos relacionamentos e é altamente vulnerável à regressão sem mudanças sociopolíticas que possam apoiar o despertar. O adágio feminista de que “o pessoal é político” ainda se aplica.

O Mito do Cavalo de Tróia

O capitalismo é uma ideologia com valores enganosamente amplos e penetrantes (tais como propriedade/riqueza privada, competição, desigualdade, consumo, trabalho assalariado e individualismo), o que o torna capaz de subsumir outras ideologias e movimentos com valores mais sutis. Ao invés de ser um veículo para os psicodélicos serem introduzidos no mainstream, o capitalismo é capaz de acomodar o que é mais lucrativo e suprimir os aspectos que são disruptivos. Considere como o cristianismo, que é uma das ideologias mais dominantes que o mundo conheceu, foi posto de joelhos por aqueles que pensaram que poderiam fundi-lo com o capitalismo para obter ganhos políticos. Hoje, cristãos evangélicos devotos apoiam esmagadoramente um presidente bilionário sexualmente abusivo e sexualmente agressivo, apesar das políticas moralmente detestáveis. Ainda assim, alguns sustentam a crença de que os psicodélicos irão inevitavelmente dominar os corações dos capitalistas, sem considerar o que o capitalismo pode fazer com os psicodélicos. Os psicodélicos se restringirão apenas à cura e a produtividade individualistas (e, portanto, apolíticas)? Os psicodélicos serão reduzidos a um produto de elite que aumenta o status e alimenta os egos, como  a ioga e a meditação o fizeram em alguns contextos ocidentais? Será que eles se tornarão parte da “perfectibilidade de elite”, onde aqueles que podem pagar tratamento entram em um ciclo interminável de auto-aperfeiçoamento? Será que uma hierarquia psicodélica será consagrada, onde um pequeno grupo de “especialistas” manterá um controle rigoroso sobre seu uso?

Os efeitos dos psicodélicos são profundamente afetados pelo “set” e “setting”, ou seja, a intenção e o contexto em que são usados moldam seus efeitos. Talvez tenhamos sido enganados por interpretações exageradas de pesquisas que mostram que os psicodélicos aumentam o traço de personalidade de “abertura” (que se correlaciona com liberalismo e a curiosidade intelectual), ou que aumentam o relacionamento com a natureza enquanto diminuem as crenças autoritárias. Na realidade, há um viés de seleção, já que as pessoas que tomam psicodélicos, mesmo em ambientes de pesquisa clínica, já tendem a ser abertas e liberais. No estudo de abertura, os participantes já estavam no 93º percentil (top 7%) de abertura antes de suas sessões de psilocibina, e eles se tornaram um pouco mais abertos. Neste último estudo, as reduções no autoritarismo não foram estatisticamente significativas em um seguimento de 7 a 12 meses, enquanto o relacionamento com a natureza permaneceu significativo, mas enfraqueceu.

Estamos certos em ficar impressionados com o fato de que a abertura, o autoritarismo e o relacionamento com a natureza foram afetados, já que não eram o foco dos estudos. Embora fizessem parte do contexto já que a maioria dos estudos psicodélicos inclui imagens da natureza e flores frescas na sala, a orientação dos estudos são não diretivos e  consentido (não autoritária), e a abertura é encorajada (por exemplo, “confiar, deixar ir e estar aberto”). Não deve surpreender que a maioria dos estudos psicodélicos encontre apenas pequenos a médios aumentos na abertura (medidos pelo “tamanho do efeito”), mas grandes reduções na depressão e ansiedade, porque há muito menos foco explícito e preparação para impactar a abertura. Mas o que aconteceria se os aspectos de apoio à abertura da terapia fossem completamente eliminados para tornar os tratamentos mais atraentes para os grupos que não valorizam a abertura? Ou, inversamente, o que seria possível se intencionalmente colocássemos uma maior ênfase na abertura ou em intenções coletivas?

Cortando nossas asas

Os líderes da área nos dizem que as discussões sobre o potencial revolucionário dos psicodélicos são muito ameaçadoras para aqueles que estão no poder, e por isso precisamos continuar discutindo usos médicos mais palatáveis (e individualistas). Há duas suposições falsas aqui: primeiro, que os revolucionários encontram a oposição porque suas táticas são muito conflituosas e, segundo, que podemos introduzir a justiça no mundo sem muita interrupção. Eu argumento que revolucionários como Ida B. Wells e Martin Luther King foram repetidamente ameaçados porque eram eficazes, não porque eram muito agressivos, e que qualquer tentativa séria de mudança sistêmica seria recebida com oposição significativa. É nossa persistência em fazer oposição, ao invés de nos acomodarmos ao mainstream, que é a nossa única esperança de mudança.

Para aqueles que acreditam que o capitalismo é a nossa única opção, considere que o capitalismo é uma invenção humana que, até recentemente, vivíamos sem (como é o caso de coisas como estados-nação e encarceramento). Como o antropólogo David Graeber aponta, as ideologias sobrevivem constrangendo nossa imaginação por alternativas, nos convencendo de que o status quo é natural e inevitável, e nos dizendo que a revolução é impossível ou insana. Mas este será um século radical, com ou sem o fim intencional do capitalismo. Qual abordagem é realmente mais radical? Intencionalmente e cuidadosamente movendo-se para além do capitalismo ou à espera de colapso global do meio ambiente (e subseqüente colapso das sociedades) que será o fim para nós?

Muitos horizontes possíveis

Existem muitas questões a serem consideradas. Qual é o potencial revolucionário dos psicodélicos? O quão eles são diferentes quando usados com intenções coletivas? Eles podem nos ajudar a superar nossos preconceitos, desmantelar sistemas de opressão e recuperar-nos de traumas sistêmicos? Eles podem nos unir e nos ajudar a romper a ilusão do indivíduo atomizado? Eles podem quebrar nossos vícios de materialismo e consumismo? Eles podem nos ajudar a resistir a hierarquias, redistribuir poder e democratizar o conhecimento? Eles podem nos ajudar a recuperar nossa imaginação e desenvolver modos de vida sustentáveis? Qualquer movimento precisa trabalhar duro para agir de maneira consistente com sua visão pretendida para o futuro (algumas vezes chamada de “política prefigurativa”). O relógio está correndo e os psicodélicos podem ser nossas melhores ferramentas para facilitar a transformação social (e adaptação pessoal a essa transformação) tão urgentemente necessária para salvar nosso planeta e criar um mundo justo. Quanto àqueles que têm assegurado ao mainstream que não há nada a temer com a medicalização dos psicodélicos, temo que, se seguirmos nessa abordagem apolítica, descobriremos que eles estão certos. A revolução não será um efeito colateral indesejado.

Traduzido por Márcio Roberto de Oliveira Junior – Associação Psicodélica do Brasil

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