Canadá se torna grande laboratório para indústria da Maconha

Há um ano e meio, o Canadá realiza um experimento sem precedentes no mundo da indústria: a legalização total do consumo de cannabis.

Toronto, 30 mai (EFE) O cheiro de cigarros de maconha se transformou em algo habitual em Toronto, a maior cidade do Canadá, onde a legalização deu tranquilidade aos usuários, que, com a chegada da primavera, consomem a substância em parques sem o temor de serem surpreendidos pela polícia.

por Julio César Rivas
Fonte: UOL

“É um grande dia para avançar na política pública sobre drogas no mundo todo. Deveríamos ter muito orgulho do papel de liderança que temos”, declarou em 17 de outubro de 2018, no dia da legalização, Mark Zekulin, o presidente e executivo-chefe da Canopy Growth, uma das maiores companhias de maconha do mundo.

Desde que pronunciou essas palavras, as principais cidades canadenses viram surgir em suas ruas lojas especializadas no comércio legal de maconha.

As estatísticas mais recentes indicam que 5,3 milhões de pessoas, 18% dos canadenses com mais de 15 anos, consumiram maconha nos últimos três meses. Antes da legalização, o percentual era de 14%. Os consumidores, no entanto, seguem recorrendo ao mercado negro, já que 40% adquirem a substância de forma irregular.

Nos próximos meses, o governo canadense deve legalizar a venda de produtos comestíveis e bebidas com infusões de tetraidrocanabinol (THC, o componente psicoativo da cannabis) e canabidiol (CBD que não é psicoativo e tem propriedades medicinais para o tratamento de doenças como epilepsia), o que ampliará o número de potenciais consumidores.

“É um bom negócio”, garantiu à Agência Efe Heather Conlon, a proprietária da NOVA Cannabis, uma das quatro lojas de maconha que operam na região central de Toronto, que foi surpreendida pelas filas de clientes que aguardavam sua vez durante os primeiros dias de abertura.

A empresária ganhou em um sorteio uma das 25 licenças outorgadas para abrir lojas de venda de produtos de cannabis. Sem experiência no setor, entendeu que o comércio legal de maconha era uma oportunidade real de negócio.

“Meu marido e eu fomos empresários há 20 anos e, nos últimos 10, tivemos relações com a Alcanna na província de Alberta. Quando em outubro abriram cinco lojas, contemplamos, observamos as filas, ouvimos todos os comentários e vimos (a repercussão) nos meios de comunicação. Quando tivemos uma oportunidade aqui em Ontário, decidimos tentar uma licença para ver o que acontecia. E ganhamos”, explicou Conlon.

James Burns, CEO da empresa Alcanna

A empresa Alcanna se dedicou durante 25 anos à venda bebidas alcoólicas no Canadá e nos Estados Unidos, e agora entrou também no mercado da cannabis.

Os dois setores são regulamentados de forma similar. O Governo Federal repassou a gestão do sistema de venda de maconha às dez províncias do país, cujas autoridades estabelecem os detalhes, como a idade mínima de consumo e os canais de distribuição.

Em Ontário, a idade mínima de consumo é de 19 anos, assim como para o álcool. As lojas que vendem maconha só podem adquirir seus produtos de cannabis da Junta de Controle de Álcool de Ontário (LCBO na sigla em inglês), uma empresa pública. A LCBO, por sua vez, compra de produtores autorizados pelo Ministério de Saúde do Canadá a cultivar e processar maconha, como o Canopy Growth.

Além disso, em todas as províncias, com a exceção de Québec, a lei permite que qualquer pessoa em idade legal de consumir cannabis cultive até quatro pés de maconha para consumo pessoal.

Jennifer Lee, da companhia Deloitte, é uma das principais especialistas do país no setor da maconha. Antes da legalização, Lee elaborou um relatório sobre o novo setor com o título de “Uma sociedade em transição, uma indústria pronta para florescer”, no qual afirma que o mercado legal canadense está avaliado em US$ 5,4 bilhões e tem grande projeção de crescimento.

Modelo Canadense

“Apesar de todos os problemas, o modelo canadense pode ser replicado em outras partes do mundo. Muitos dos membros do G7 estão atentos ao que está ocorrendo porque a cannabis não se limita ao comércio, mas afeta bancos, indústria farmacêutica, setor imobiliário e de saúde e bem-estar”, explicou a especialista à Efe.

Marcha Global da Maconha de Toronto

Em 4 de maio, Toronto acolheu a Marcha Global da Maconha, um protesto que acontece na cidade há 20 anos para reivindicar a legalização da cannabis. Neste ano, e apesar da legalização, a mobilização foi mantida.

“A razão pela qual temos que seguir protestando é porque ocorreu um movimento hostil das corporações e se esqueceram das pessoas. Muitos pacientes de maconha medicinal foram atropelados. Se tivessem criado um mercado livre e inclusivo, não estaríamos protestando. Mas não fizeram isso. Eles o absorveram, o monopolizaram e ainda temos punições muito duras na Justiça”, disse à Efe Michael ‘PuffDog’ Thomas, um veterano ativista da cidade.

‘PuffDog’ jamais comprará maconha em lojas como a NOVA Cannabis. Não só por razões “éticas”, mas também por questões práticas. “Desfruto do valor terapêutico de cultivar a minha própria maconha. Mas também entendo a importância de cultivar cannabis orgânica, como a natureza proporciona. Quando se utiliza 24 pesticidas, isto vai contra o propósito. Prefiro manter minha cannabis orgânica”, disse.

Além disso, o veterano ativista tem outras queixas, uma das mais frequentes entre os consumidores: a baixa potência da maconha oficial. “Ela tem uma limitação de THC. Eu consigo encontrar exemplares com THC elevado, de até 34%. Para mim, esta é a forma de fazer. Não quero algo que é basicamente cânhamo”, argumentou ‘PuffDog’.

Lojas especializadas

Growers World, loja situada na zona leste de Toronto

A Growers World é uma loja situada na zona leste de Toronto dedicada à venda de produtos para os que querem cultivar suas plantas de maconha. Thomas, o proprietário, coincide com a opinião de ‘PuffDog’. “Nas lojas legais não se sabe realmente o que estão te vendendo. Gosto de conhecer quem cultiva e tudo o que for possível sobre a cepa. Não confio na maconha do governo”, explicou à Efe.

Thomas também revela o maior dos problemas do sistema oficial: o preço. “Um grama de maconha no site do governo custa US$ 22,6, o que é o dobro ou quatro vezes mais do que deveria ser e do que custa no mercado negro”.

“O sistema não funciona”, disse Kevin, um usuário de maconha medicinal. Este cozinheiro aposentado por invalidez a consome para aliviar as intensas dores que sofre na coluna cervical. “Legalizamos o consumo recreativo para a elite, mas os usuários médicos não podem pagar apesar de terem uma receita”, protestou.

Além disso, Kevin também critica a escassa potência do produto oficial, que não server para aliviar suas dores. “Necessito de cannabis potente. Não posso obter legalmente e não posso pagar”.

Críticas Positivas

Lee, a analista da Deloitte, entende essas queixas. “A única forma de o mercado negro se transformar em um mercado legal é que haja uma variedade adequada de produto. Pois quem vai deixar o mercado negro, a menos que ofereçamos algo completamente diferente? Os consumidores estão dispostos a pagar 10% a mais se oferecermos o que estão buscando”, opinou Lee, embora admita que sempre existirá o mercado negro.

Nova Cannabis em Ontario

Lojas modernas como a NOVA Cannabis estão atraindo muitas pessoas que consomem maconha pela primeira vez. “São de todas as idades, até gente de 70 e 80 anos que querem comprimidos de CBD e óleos. Alguns, obviamente, compraram durante muito tempo no mercado negro e estão felizes com a existência de um estabelecimento legalizado que podem frequentar e se sentir seguros. E também gente que prova pela primeira vez, agora que é legal, para aproveitar a oportunidade”, relatou Conlon.

Agora, o próximo desafio do experimento canadense é a legalização de comidas e bebidas. “As comidas terão um enorme impacto. Com o tempo, será uma das categorias mais importantes do mercado porque haverá uma variedade de produtos atrativos para uma maior quantidade de consumidores. É mais discreto e em um formato mais acessível”, acredita Lee.

“Nunca tivemos uma posição melhor de liderança em nada desde Graham Bell. Agora, a questão é se podemos aproveitar. Podemos chegar a todas as esquinas? Temos mais pacientes de maconha medicinal que o resto do mundo. Isso deveria significar que podemos fazer melhor a ciência, com maiores grupos de estudo e encontrar todas as respostas”, opinou Bruce Linton, fundador de Canopy Growth.

Para Lee e para Linton, o futuro do setor canadense da maconha vai muito além do que acontece no país. Seus olhos estão voltados para o mundo todo. EFE