Bolos, chás, poções, cogumelos e redução de danos (Parte 1/3)

por Gabriel Vilella

Ao final de um ritual com ayahuasca de aproximadamente dez horas, só me restava o cansaço generalizado e a confusão quanto ao que tinha acontecido. Havia eu participado de algo que mudara minha vida repentinamente e sequer saberia explicar o que se passou. Esse ritual fora minha primeira e talvez a mais significativa experiência com substâncias psicodélicas. O que tinha acontecido nessas dez horas? Estava lá, como estou aqui, mas também em um plano onde era sensível que o presente, o passado e futuro concernissem ao mesmo momento, num espaço-tempo em que os paradoxos se faziam perceptíveis. Que horas eram? Todas elas. Me lembro de Alice no País das Maravilhas:

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“Puxa! Puxa! Como tudo está tão estranho hoje! E ontem as coisas estavam tão normais! O que será que mudou à noite? Deixe-me ver: eu era a mesma quando acordei de manhã? Tenho a impressão de ter me sentido um pouco diferente. Mas se eu não sou a mesma, a próxima questão é “Quem sou eu?” Ah! esta é a grande confusão!”.

Dissolvi, derreti. A sensação era literal, mas sabia que estava ali! Ou não estava? Estava em lugar nenhum e em todos os lugares e tudo fazia sentido. Era possível sentiras respostas de todos os porquês, sem de fato conseguir explicá-las. Quando pensava em como descrever – isso? Essa coisa? Tudo? -, só vinha em mente “indescritível”, “indescritível”, “indescritível”…

Temos de concordar que fazer sentindo onde os sentidos se confundem é uma experiência um tanto estranha e típica de Alice. Parecido com o que ela faz, podemos elaborar diferentes usos das substâncias que alteram nossa percepção/realidade de acordo com nossos interesses. Como quando (Alice?) come cogumelo. Seus efeitos são principalmente subjetivos e podem nos lançar para baixo na toca do coelho, em um universo novo, ainda que em terra. Esses efeitos podem edificar novas realidades ao expandir a forma de conhecer e se reconhecer no mundo, podem provocar visões celestiais e infernais.

E para evitar que a Rainha de Copas com vontade de cortar as cabeças de todos entre na história, devemos ter atenção sobre alguns pontos.

Para baixo na toca do coelho[1]

Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert pioneiros nos estudos sobre psicodelia na década de 60, nos mostram que a imprevisibilidade da psicodelia pode, de certa maneira e até certo limite, ser contornada. Esse contorno não se trata de prever a experiência, mas de tornar a experiência mais prudente, menos propensa a certos riscos e mais predisposta a bons acontecimentos. Para minimizar os riscos e os danos dessas experiências e tentar evitar as situações difíceis, existem algumas providências que podem ser tomadas. Essas providências envolvem três principais conceitos: substance, set e setting que, se considerados, podem ser de grande utilidade. Cabe ressaltar que esses conceitos estão intimamente relacionados uns aos outros e só estão organizados nessa ordem para fins didáticos, não há privilégio de um sobre o outro[2].

O conceito de substance diz do quanto conhecemos a substância que vamos utilizar, as possíveis dosagens e seus efeitos. É o bolo, é o cogumelo, é a poção e o chá que Alice consome. Muitas das viagens ruins, as conhecidas bad trips, quando não overdoses, se devem também ao fato de que àquele que consome a substância não sabe o que está consumindo. Pensar em substance é pensar o que se pretende usar (doce, ecstasy, LSA, cogumelos, DMT, NBome, etc.), o quanto dela você irá tomar (o site www.erowid.orgpode ajudar a entender as dosagens dessas substâncias), e conhecer seus efeitos sobre seu corpo. Quando marinheiro de primeira viagem pesquisar, presenciar experiências e indagar outros sobre os efeitos, pode ajudar. Parece simples, e de fato é, mas a coisa fica mais complexa quando há outras drogas em jogo como o tabaco, álcool, cannabis, etc. Nem sempre essas combinações funcionarão e por vezes, quando bem combinadas, podem ser experiências fantásticas. Com o tempo, vamos aos poucos entendendo nossos limites individuais, percebendo que a nossa dosagem ideal não diz necessariamente da dosagem do outro que nos acompanha, e que para cada uso possível, pode-se utilizar diferentes dosagens.

Como meio de aperfeiçoar essas experiências e a fim de evitar problemas, deve-se ter em mente também o set, ou seja, as condições psíquicas e físicas daquele de quem utiliza a substância. Aqui não cabe separar a mente e o corpo, dizer que a mente comanda o corpo ou vice-versa, tanto o corpo quanto a mente terão papéis fundamentais. Por exemplo, tomar doce (falamos aqui de NBome, já que pouquíssimos doces hoje tem LSD) quando se está com febre, pode resultar numa bad tripde marca maior, já que este nos coloca extremamente sensíveis (também quentes e acelerados), e sentir mais os efeitos de uma gripe pode não ser a melhor ideia…

Estar bem consigo e em um bom dia irá facilitar todo processo, mas entendendo que nem sempre estamos em nossa melhor forma, temos de criar mecanismos outros para identificar se rola ou não rola ter a trip. Refletir, meditar, conversar sobre a vida podem ser alternativas. Alice, sempre muito bem disposta e aberta para as estranhezas daquele lugar, parecia não se importar em testar alguns limites, em explorar o que é desconhecido e bizarro. Foi entendendo que o bizarro, o estranho e o diferente podem ser amigáveis, que ela espantou muitas das bad trips que passaram em seu percurso lisérgico. Talvez o mecanismo mais eficiente seja estar disposto a isso!

Temos também o setting. O setting será todo contexto que estamos imersos, em diferentes aspectos e amplitudes: do ambiente físico, do ritual, às pessoas que estão presentes. Quando o coelho falar e a lua lhe sorrir, você vai querer ter certeza de estar em um ambiente tranquilo que te permita conversar com eles! O ambiente vai influenciar em muito na sua viagem… Estar em um lugar que seja o mais livre possível de intromissões, lhe passe boas sensações e te deixe bem, vai fazer toda diferença. Não somente o lugar será fundamental, como também a companhia de pessoas queridas e amigáveis com você. Compartilhar aquilo que vê, ouve, sente e poder contar com amigos, ainda que não precise, é tranquilizador e ajudará a fazer a manutenção de uma boa onda, como também a sair de uma bad.

É pensando o setting – aquilo que nos influencia no ambiente – que devemos ter a devida atenção ao contexto macrossocial que estamos inseridos: a proibição e a criminalização das drogas. A criminalização das substâncias que irá usar pode pender a balança para a bad trip, caso você fixe na ideia de estar fazendo algo ilícito, e que por isso pode ser reprimido, abordado por policiais ou sofrer alguma violência do tipo. Particularmente o medo de maneira geral pode dificultar a experiência, e por conta disso se faz tão importante a descriminalização das drogas, como também um lugar que lhe dê serenidade e lhe afaste dessas possíveis paranoias. Infelizmente a desinformação causada pela criminalização do uso, não costuma permitir, por exemplo, que sejamos compreendidos ou amparados com os devidos cuidados caso, por algum motivo, estejamos passando por uma bad trip em locais públicos emovimentados. Portanto, em uma primeira viagem, evite-os.

Usar substâncias que nos colocam em contato com algo íntimo nosso, que pode servir como uma lupa àquilo que muitas vezes passa despercebido por conta dos limites perceptivos de nosso cotidiano, pode ser uma experiência difícil e trabalhosa. Entretanto, as dificuldades se referem apenas a uma faceta, das muitas possíveis, de uma viagem. Viagens muito difíceis e angustiantes podem ter efeitos valorosos se darmos a devida atenção ao que se passou.


[1]Os títulos foram baseados nos capítulos de As Aventuras de Alice no País das Maravilhas.

[2] Posiciono-me em uma direção diferente à de Leary, Metzner e Alpert em seu livro The Psychedelic Experience: A Manual Based on The Tibetan Book of the Dead (1964), que indica que o setting é o mais importante quando se prepara uma sessão psicodélica.