Ultrapassado o período exploratório dos Descobrimentos, a prioridade das autoridades portuguesas passou a ser consolidar o império intercontinental conquistado no século anterior — com o resultado da importância da cannabis entre nós ter crescido mais ainda, dada a vasta armada à vela necessária para tal efeito. Assim, tendo como base a preocupação régia relativamente ao abastecimento da indústria naval, em meados do século XVII a coroa promulgou uma série de Regimentos destinados a regulamentar e fiscalizar apertadamente o cultivo e produção de cannabis, a aplicar às Feitorias do Linho Cânhamo existentes em Santarém, Torre de Moncorvo e Coimbra, os principais pólos de cultivo e transformação de cannabis em Portugal.
Começando por decretar a obrigatoriedade da cultura do linho cânhamo (não só para os lavradores como para todos os donatários de terras das regiões abrangidas), os Regimentos ocupavam-se de todos os detalhes referentes à transformação dos linhos e seu transporte pelos produtores até às feitorias, proibindo o comércio e a fabricação particulares de artigos de cânhamo. Sobre este claro contexto de monopólio régio escreveu a historiadora Maria Helena da Cruz Coelho: “Os interesses nacionais de manutenção do império ultramarino ditavam, no século XVII, estas medidas rígidas e concretas”.
Note-se que as Feitorias cuidavam apenas da recolha e armazenamento do linho cânhamo, não possuindo terras de cultivo próprias.
Para compensar o carácter impositivo que revestiam, os Regimentos enumeravam algumas compensações para os lavradores obrigados a cultivar cânhamo, as quais porém se reduziam praticamente aos benefícios que a terra retira desta cultura, pois “recebem as mesmas terras grande benefício com a dita semente, porque descansam e se fortalecem para em outros anos darem maior abundância de trigo”. Claramente, como constata o historiador Telmo Verdelho a propósito do Regimento de Moncorvo, estes decretos são “um testemunho do exercício violento do poder político, da ação centralizadora do Estado em prejuízo de uma zona do país tão desprotegida como explorada”, pois impunham o cultivo em terras que por vezes não eram apropriadas, com consequências negativas para os lavradores transmontanos, que assim “pagara dolorosamente a independência de Espanha e foram sacrificados às necessidades da colonização do Brasil”.
O Regimento de Moncorvo era tão pormenorizado que dedicava um capítulo às chaves da Feitoria. Especificava-se que haveria três chaves, intransmissíveis, para aceder à Feitoria, e ainda que, devido ao risco de incêndio, “nunca se abrirá a feitoria para se receber ou entregar e fiar linho, senão de dia, se fechará às horas convenientes”. De fato, os processos de iluminação então usados exigiam todas as cautelas, a ponto de um adágio popular ter imortalizado esse receio: “Por um só cabelinho pode arder todo o linho”.
As Feitorias do Linho Cânhamo canalizavam a maior parte dos seus stocks de filaça para a capital do reino, mais precisamente para as oficinas de cordoaria e velame dos Arsenais Reais, que funcionaram na Ribeira das Naus, em Lisboa, até à sua destruição por um incêndio que se seguiu ao terremoto de 1755. Nesse mesmo ano, por proposta do Marquês de Pombal, D. José promulgou um decreto determinando a construção na praia da Junqueira, em Lisboa, de instalações mais amplas e funcionais para a transformação do cânhamo com fins náuticos; só porém em 1788 aí começaria a funcionar a Real Fábrica da Cordoaria da Junqueira, que ficou conhecida por Cordoaria Nacional.
Existiam no entanto em Portugal outros centros de transformação de cordame. Segundo o investigador Jorge de Macedo, “Em 1780, Agostinho Rebelo da Costa cita como exemplo de uma grande “fábrica” a Fábrica da Cordoaria do Linho e Cânhamo do Porto, cuja produção permitia dispensar a cordoaria inglesa, e que possuía cerca de 300 operários”. Diz a obra citada de Agostinho Rebelo da Costa, Descripção topográfica e histórica da cidade do Porto: “Entre todas essas fabricas a que merece o primeiro lugar, he a das Cordagens, e Massames necessários para Navios, Naos e todo o gênero de embarcaçoens. Está situada num largo, e comprido Campo chamado a Cordoaria nova (…) porque o seu primeiro estabelecimento foi ao pé da Igreja de S. Pedro de Miragaya, aonde há huma rua, que ainda conserva o nome de Cordoaria Velha”.
No final do século XVIII a cannabis era ainda a cultura não alimentar primordial em Portugal, como atesta a edição em 1799 do Tratado Sobre o Canamo, a versão nacional de uma obra francesa, que abre com a epígrafe: “Não há planta alguma que seja tao util ao homem; ainda excede ao grão frumentaceo [trigo]”. Na introdução do Tratado, o tradutor Martim Francisco Ribeiro d’Andrade dirige-se a D. Maria I, chamando a atenção da rainha para a importância da “preciosa planta” nos desígnios nacionais, considerando a cannabis “um dos objectos de primeira necessidade para as Potencias Marítimas, como a nossa, de que VOSSA ALTEZA REAL goza o Supremo commando”.
Apesar da cordoaria desde cedo ter canalizado para si a maioria da produção de cânhamo nacional, as necessidades da intensa atividade de construção naval eram tais que apenas a importação permitia satisfazê-las totalmente. Segundo LePortugal au Point de Vue Agricole, obra de 1900, “o nosso país é obrigado a tomar de empréstimo e importar da Rússia um stock bastante considerável de cânhamo em rama, porque as condições económicas da produção agrícola tornam hoje a cultura em causa pouco vantajosa, se exceptuarmos as terras de Trás-os-Montes”.
Mas os tempos estavam a mudar. Com o advento da Revolução industrial, a atração pelo cultivo de cânhamo-de-cannabis diminuía rapidamente em toda a Europa — e Portugal, apesar do seu incipiente progresso tecnológico, não era exceção na matéria, como dá conta o Visconde de Villa-Maior no artigo “O Canamo na Villariça”, publicado em 1863 na revista Archivo Rural. Depois de referir que “[a] cultura dos linhos (canhamos) é fácil e incomoda pouco os lavradores”, Villa-Maior assinala que “todas as dificuldades e embaraços aparecem depois que a planta é arrancada para ser entregue às diversas operações que têm por fim separar a matéria filamentosa” após o que enumera explicações para o declínio desta cultura em Trás os Montes nos finais do século XIX: “1º Porque oespaço que se lhe pode consagrar, e que decerto não excede nem talvez atinge 100 hectares, a restringe consideravelmente. 2o Porque as operações verdadeiramente industriais, da preparação da filaça, que se devem forçosamente praticar num período muito limitado, requerem muitos braços e é difícil encontrá-los aqui disponíveis na época oportuna. 3o Porque a extracção do cânhamo é aqui limitada pelo emprego que lhe dão os cordoeiros de Vila Nova de Foz Coa, que são os únicos consumidores que sustentam o preço acima indicado. 4º Finalmente, porque o vergonhoso atraso em tudo o que diz respeito a vias de comunicação torna infesadas e de pouco vulto todas as reclamações comerciais”.
Apesar de apelos bem intencionados (“Por isso é precisa dos agricultores a sua atenção para que renasça esta importante cultura, e do governo a devida protecção para bem da economia do país”, escreve-se em As Terras de Entre Sabor e Douro, uma obra regionalista de 1908), o declínio acentuou-se — e no princípio do século XX o cultivo do cânhamo-de-cannabis estava praticamente extinto em Portugal.
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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