“Analisando essa cadeia hereditária”

por S. M. Hermes

Nesse domingo assisti no Netflix o filme Born To Be Blue (2015), que mostra parte da vida e da carreira de um dos maiores ícones e trompetistas do jazz norte-americano — Chet Baker. O longa é um recorte da fase de sua vida quando buscava retomar sua carreira, após anos abusando do uso de drogas pesadas, como heroína. O próprio musico se intitulava como junkie, admitindo seu gosto por abrir as portas da percepção através de substâncias psicoativas variadas. Inclusive, fumava um do bom.

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Minha vó tem 84 anos de idade, e sempre visito ela uma vez por semana, geralmente na sexta-feira. Saio do trabalho e passo lá pra bater uma lara vespertina. Religiosamente fumo na saída do trampo — 24/7. Se eu contasse pra ela que sou usuário de Cannabis, acredito que a velha morreria de desgosto ou coisa parecida.

Nascida no interior de Caxias (RS), há quase um século atrás, tendo estudado até a segunda série do ensino fundamental pois tinha de trabalhar, a ideia dela quanto ao uso de drogas é toda baseada no lado negativo da coisa: em suma na desgraça, na violência, nas mortes, nos vícios frenéticos, etc. E não a culpo por isso, pelo contrário. Suas experiências e interações com usuários foram todas nesse âmbito problemático.

Portanto, antes de chegar lá, passo num posto de gasolina pra lavar os dentes e o rosto. Ainda assim, algumas vezes ela sente a marofa e me pergunta se eu ando fumando (cigarro) — digo que não. Ao invés de fazê-la lidar com algo que talvez seja incompreensível dentro das suas determinadas perspectivas sobre a vida, prefiro “blindá-la” quanto a realidade, devido a sua possível dificuldade de assimilar tais coisas.

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O jornal Boca de Rua, de Porto Alegre, existe há 17 anos. De acordo com o expediente da edição 68 do próprio, “Este jornal foi produzido (fotos, textos e ilustrações) por pessoas em situação de rua e risco social de Porto Alegre sob a supervisão da Alice (Agência Livre para Informação Cidadania e Educação). A receita obtida com os exemplares vendidos é revertida para os integrantes do grupo”. Conforme conheci o trabalho do Boca há alguns anos atrás, sempre que possível adquiro a edição atual. Além de contribuir com a causa, torna-se possível a compreensão e aproximação (por mais distante que seja) da realidade dos moradores de rua/colaboradores do periódico.

A palavra-chave é empatia, principalmente em tempos de eleição, onde a luta entre as classes fica ainda mais lamentável — em outras palavras, como diriam as poetas d’As Meninas: “E o motivo todo mundo já conhece, é que o de cima sobe, e o de baixo desce. ”

“Assim acabou se tornando o mais resistente dos homens vivos, habilidoso em seus ofícios e erudito nas suas tradições, e apesar disso era mais do que eles; pois tinha a sabedoria dos elfos, e havia uma luz em seus olhos que, quando se acendia, poucos podiam suportar. Seu rosto era triste e austero por causa do destino que lhe fora imposto, e apesar disso a esperança sempre morou nas profundezas de seu coração, do qual a alegria às vezes jorrava como uma fonte que jorra de uma rocha. ” – J. R. R. Tolkien, em O Senhor dos Anéis: O Retorno do Rei (1955).