Abertura do I Seminário sobre Psicodélicos-RJ [1]

por Fernando Beserra

Inicialmente gostaria de agradecer as pessoas que colaboraram tanto com esse evento. Como o prof. César falou é um evento único, não só no Rio de Janeiro, mas são poucos no Brasil que tratam dessa temática dos psicodélicos. Agradeço inicialmente na figura do Sandro Rodrigues, que também vai palestrar aqui, que co-organizou este Seminário. Também agradecer a toda equipe do site Mundo do Cogumelo que está transmitido ao vivo e a gravação realizada pelo Hempadão. Agradeço a toda comunidade do ISERJ, que tornou este evento possível e, particularmente, a equipe de Sociologia, Filosofia e Psicologia do ISERJ, a todos os professores que tornam esse evento possível.

Antes de começar estas mesas de debate, a ideia é fazer uma introdução sobre o que são os psicodélicos para entrar efetivamente no debate, até porque entendemos que são pessoas, com distintos níveis de conhecimento sobre a temática, que estão presentes aqui hoje. A motivação para este seminário: tivemos recentemente o caso do falecimento de um estudante da USP, a partir do uso de uma substância recém produzida, que é o 25B-NBOMe. Trata-se de um conjunto de substâncias que reúne um grupo do 2-Metoxy-benzil, que é o NBOMe, com um conjunto de fenetilaminas, produzidas pelo Alexander Shulgin, que falaremos mais sobre ele depois. Estas substâncias são muito novas. Os 25x-NBOMe foram produzidos pela primeira vez em 2003 em uma Universidade da Alemanha. Estas substâncias têm sido vendidas como se fossem a dietilamida de ácido d-lisérgico, vocês conhecem, provavelmente, o LSD. Nossa preocupação, em primeiro lugar, é com a adulteração destas substâncias, em decorrência de um modelo que não regulamenta as drogas; de um modelo que possui um descaso com a informação e com a regulamentação destas substâncias, particularmente com as substâncias psicodélicas. Nós pensamos que era fundamental um debate sobre este tema tão importante e tantas vezes negligenciado em nossa sociedade.

Houve esse caso em São Paulo, na verdade, não foi propriamente uma overdose, a causa morte foi um afogamento e isso apareceu nos jornais, por vezes, de forma distorcida. Quando o NBOMe apareceu, pela primeira vez no Brasil, alguns jornais consideraram que ela seria uma droga mais potente que o crack. Na verdade é até um tanto risível se tivermos um conhecimento sobre substâncias psicoativas, até porque são substâncias de classes muito diferentes. Enquanto o crack tem um potencial de dependência importante, partindo da cocaína como princípio ativo, que já tem um potencial próximo de 20% de seus usuários, o crack tem um potencial de dependência, pelo seu modo de uso, ainda maior. O NBOMe, pelo contrário, tem um potencial de dependência pequeno – a ainda pouco conhecido – e se tratam de outras modalidades de risco que precisam ser observadas, para que possamos reduzir os riscos e talvez pensar também, no caso dos psicodélicos, naturais, sintéticos ou semissintéticos, nos benefícios que podem advir destas substâncias. É sobre isso que pretendemos nos debruçar hoje no ISERJ.

Trago uma fala do Timothy Leary para abrirmos bem este Seminário. Leary foi um psicólogo que trabalhou com psilocibina em Harvard, que é o princípio ativo de alguns, assim chamados, cogumelos mágicos. O Leary falava que o LSD era uma droga psicodélica que ocasionalmente causa comportamento psicótico em pessoas que não a utilizaram[2]. Ele falava isso sobre o modo exagerado e fantasioso que a mídia colocou o debate na década de 60, a ponto que Timothy Leary, psicólogo, acadêmico, professor de Harvard, ter sido considerado por Richard Nixon a pessoa mais perigosa da América. Ele foi preso, por pequeno porte de maconha, condenado a quase uma prisão perpétua. Um doutor em psicologia considerado inimigo número um da América. Acredito que nosso Seminário possa contribuir para discussão deste tema.

Para entender o que são os psicodélicos, podemos fazer uma discussão terminológica. O primeiro termo para nomear estas substâncias vem de Louis Lewin no final do século XIX. Lewin foi um pesquisador que estou um conjunto de cactos que continuam como princípio ativo a mescalina. Ele observou o efeito que ocorria entre populações tradicionais neste tipo de consumo, que era um consumo, tipicamente, religioso, no sentido originário da palavra religião, que é religio, o olhar atencioso à psique, o olhar atencioso à imaginação, à fantasia. Ele chamou estas substâncias de phantastica, porque elas produzem efeitos que são fantásticos, na medida em que elas alteram a senso-percepção, elas permitem, por exemplo, ver as paredes dissolvendo ou que há uma ligação profunda entre todos nós e todo o cosmo. Este tipo de percepção que foi patologizado, visto como forma doente, era considerado em alta conta pelos povos tradicionais. No entanto, não é desta forma que as sociedades ocidentais entenderam estas substâncias. Estas substâncias foram entendidas como algo relacionado, desde a colonização dos povos tradicionais das Américas, ao diabo, ao demônio, a partir de um viés moralista e, posteriormente, este viés moralista estará presente também na formação da ciência positivista.

O termo até hoje prevalente é alucinógeno, que vem de alucinação. Alucinação, que é um termo da psicopatologia. A alucinação ocorre quando não existe o estimulo objetivo que cause uma sensopercepção, portanto, eu penso que estou ouvindo uma voz, mas ninguém compartilha dessa voz que estou escutando. A alucinação é comumente acompanhada, na psicopatologia, da ausência de consciência de morbidade. Além da pessoa estar escutando uma voz, que normalmente é uma voz desagradável nos casos de psicose, e todos devem escutá-la, como na alucinação auditiva em uma esquizofrenia paranoide, paranoica. No entanto, estas não são as características das substâncias psicodélicas; tipicamente os usuários de psicodélicos não tem alucinações, mas o que nós poderíamos chamar de uma experiência visionária. Os psicodélicos promovem um insight mais agudo, com a amplificação da imaginação. A sensopercepção é alterada, mas não de forma alucinatória. Primeiro lugar, o usuário permanece consciente de que utilizou uma substância que alterou o estado de consciência dele; segundo lugar, são substância que, muitas vezes, são consideradas em alta conta pelos usuários como promovendo uma transformação de consciência considerada, por muitos, positiva em suas vidas.

Outro termo é perturbador do sistema nervoso central. Aqui já podemos diferenciar os psicodélicos de outras substâncias psicoativas, como os estimulantes a exemplo da cocaína, da cafeína, da folha da coca. No caso dos psicodélicos, o central não é o aumento ou a redução da atividade neuronal a nível do sistema nervoso. Diante desta dificuldade de nomear esta experiência, alguns pesquisadores consideraram que ele perturba o sistema nervoso. Só que perturbar normalmente tem um significado de um erro cometido; o que perturba é o que conduz ao erro. Novamente é um termo carregado de um moralismo construído ao longo dos últimos séculos. Optamos, neste Seminário, utilizar o termo psicodélico e aqui já estou falando um pouco sobre o efeito destas substâncias. Psicodélicos vem do grego: psique, que significa mente ou alma, mais delos, que vem de delein, portanto, psicodélicos são substâncias que amplificam a manifestação da mente, que pode ser compreendida também como uma mente não claramente consciente, subconsciente ou inconsciente. Este termo também ficou associado a cultura psicodélica dos anos 60, que o Sandro falará melhor sobre ela. No final da década de 70, quem produzirá um novo termo serão um conjunto pesquisadores, dentre os quais, um dos criadores da etnobotânica, Robert Gordon Wasson e o químico Jonathan Ott. Wasson, Ott, além de etimólogos entre eles, vão sugerir o termo enteógenos. Enteógeno vem de em, mais theos, mais genos, que significa a produção do divino interior. Essa era uma ideia que visava dar conta de um uso tradicional destas substâncias, que foi tomado a partir de um etnocentrismo em nossa cultura; se vocês não estão entendendo o mundo tal como eu entendo, se vocês não estão entendendo o mundo tal como eu entendo, da perspectiva do trabalho, de um modelo linear de entendimento humano, então vocês são malucos, vocês são inferiores, este era o entendimento típico, e daí que vários pesquisadores se reúnem para se contrapor a este entendimento e é nessa perspectiva que vamos realizar essa conversa hoje. Um termo ainda mais recente e pouco conhecido, para dar conta destes usos tão particulares, é enteodélico. Estas substâncias promovem uma ligação com uma singularidade interior, no entanto elas não produzem essa ligação, mas manifestam o divino interior. O prof. César teve uma fala comigo anteriormente, como alguns pesquisadores abordam, sobre a questão deste theos, que ramificaremos depois da cultura grega para o entendimento de Deus, na cultura grega não era esse o entendimento de deus. O theos grego estava relacionado, por exemplo, a uma espécie de espírito ou ente que atravessa o ser humano e entra em contato com nosso amago; poderia ser associado ao daimon socrático.

Outro nome foi o empatógeno, seriam substâncias que promovem empatia. É o termo muitas vezes associado a substâncias como o ecstasy, que seria a metilenodioximetanfetamina, o MDMA, que também sofre com gravíssimas alterações no mercado negro de drogas, colocando os usuários em riscos, muitas vezes até graves. Outras substâncias como a salvia divinorum, uma substância recentemente proibida pela ANVISA, ela promoveria, segundo alguns pesquisadores, um efeito onirógeno. Novamente temos aí o “genos”, produção, e o oniros, sonhos, então seria uma substância que promove sonhos. A ideia é que haveria, no uso deste psicodélico, pouco controle do usuário sobre aquela produção imaginária, dos conteúdos psíquicos ou mesmo arquetípicos. Finalmente, para fecharmos esta parte de classificação, de terminologia, que é importante, mas um pouco maçante, há um historiador e filosofo que é interessantíssimo, que é o Antonio Escohotado, que ele designou estas substâncias como substâncias visionárias. Ele estava falando de visionário do ponto de vista da experiência, ele não estava preocupado sobre os efeitos no sistema nervoso, no organismo. Ele estava preocupado com quais são os efeitos produzidos e o que os usuários procuram nestes efeitos. Ele vai classificar estimulantes como ele fala, da procura do brio puro, na sensação de sentir-se potente. Ele relaciona isso aos estimulantes. No caso dos psicodélicos ele fala de substâncias visionária, porque ele classifica que esse público de usuários de psicodélicos, é um público que muitas vezes está insatisfeito com a realidade ordinária e os seus limites. Esse público teria interesse de ir além dos limites, buscando alternativas e soluções para estagnações culturais, sociais e individuais. Portanto, seria este o público que buscaria estas visões. De tal modo que estas substâncias foram entendidas como psicoscópicas. Como temos os telescópios ou os microscópios, que amplificam ou permitem a visão de coisas muito pequenas, os psicóscopios permitiriam um olhar aguçado sobre a mente humana. Daí os benefícios que vamos discutir sobre estas substâncias, hoje usadas em psicoterapia, assim como os riscos, na medida em que, se o usuário se encontra em uma situação de desorganização psicológica, estas drogas podem oferecer um risco, na medida em que elas amplificam um estado mental. Elas produzem, portanto, estado alternativos de consciência, se relacionarmos a consciência aos estados ordinários, habituais que nós temos no mundo de vigília. Nós estamos acostumados a entender a realidade a partir de um modo de tempo, o tempo cronológico, que passa em intervalos regulares, nós podemos ver esse tempo nos minutos, nos relógios, ou na nossa experiência particular de mundo construída na nossa história. Essa consciência ordinária está relacionada também a um modo de inteligência, a um modo de memória, a maneira particular de pensar: em conceitos, em conteúdos, a partir de uma linguagem construída em uma cultura. E os psicodélicos promovem, portanto, estados não ordinários de consciência, estados alternativos, que levam a outras modalidades de tempo. A temporalidade pode levar a sensação de infinito, parece que o tempo não vai passar ou parece que ele sequer existiu. Pode ser que o psicodélico promove uma experiência onde os pensamentos não ocorram por meio de conceitos, onde a noção da experiência é total, ou seja, não há distinção entre o que eu penso, do que eu vivo e de que modo a realidade se manifesta. Estas não são ideias absurdas, mas são ideias que eram tomadas em alta conta em sociedades que, muitas vezes, poderiam ser consideradas mais saudáveis, do ponto de vista psicológico, do que nossa sociedade maníaca, que deve fazer tudo imediatamente, ter todos os prazeres e recompensas de forma automática, ou seja, não é possível esperar ou viver outras modalidades de experiência, de tempo e de prazer.

Aqui temos uma tabela construída pelo pesquisador David Nutt e por outros pesquisadores. O David Nutt foi o principal conselheiro de drogas do Reino Unido e ele pesquisou quais seriam o risco psicológicos e social de uma série de drogas, para que pudesse classifica-las em um ranking. Este ranking é usado na Inglaterra para classificar substâncias que seriam proibidas ou lícitas. Ele observou, no entanto, que o ranking inglês é absolutamente absurdo, pois ele não tem uma base científica. Igualmente é o nosso. Álcool e tabaco, que geram maiores danos, são não apenas permitidos, mas seu consumo estimulado. A margem vermelha seriam os danos aos outros produzidas pelo uso das drogas e a azul direcionado aos próprios usuários. Pode-se observar pela pesquisa realizada que substâncias psicodélicas como LSD, cogumelos com psilocibina, assim como o ecstasy, são substâncias com riscos absolutamente inferiores a substâncias como álcool, tabaco, cocaína – para falarmos de uma droga ilícita -, até mesmo com riscos inferiores à cannabis sativa.clip_image004

Então é importante fazermos essa discussão, pois até hoje estas drogas não entram na discussão política, como se fossem simplesmente drogas perigosíssimas. As drogas psicodélicas dependem, de forma singular, do tripé drug, set and setting, da droga que é utilizada, do ambiente no qual é utilizada, se é utilizada de forma ritual ou religiosa este uso é reduzido; se há uma preparação para o uso, da alimentação; se o usuário que está usando este psicodélico é acompanhado ou não por um cuidador (sitter), que é uma metodologia de redução de riscos. Então, se este usuário é acompanhado por uma pessoa que não fez uso de substâncias, que confia e conhece o uso de psicodélicos, isso reduz drasticamente o risco no uso de psicodélicos. Isso vai ser, no caso dos psicodélicos, tão fundamental que Timothy Leary dizia o seguinte: que apenas 10% dos riscos no consumo se devem ao consumo da substância, os outros 90% dependeriam tão primordialmente do contexto e do indivíduo que está fazendo, que perderíamos até um pouco deste rigor farmacológico, como existiria independente do usuário e do contexto. Essa ideia do drug-set and setting vem, primeiramente, do Timothy Leary e, posteriormente, foi popularizada pelo psiquiatra Norman Zinberg, autor do livro Drug, set and setting. Este tripé pode ser utilizado também para entender outras substâncias, se pensarmos no caso de um estimulante com alto grau de dependência como o crack, o uso de crack é completamente diferente em um ambiente de miséria e marginalidade, de vulnerabilidade produzida do que em um ambiente de classe média. Os psicodélicos teriam essa variação de forma ainda exacerbada.

Alguns exemplos de psicodélicos para fechar minha fala e dar abertura à primeira mesa. Afinal, que drogas são essas? Falei do LSD, do MDMA. Podemos falar também dos psicodélicos indóios, das triptaminas: o LSD, os cogumelos com psilocibina, que são diversos, o LSA, que é a ergina, que podemos relatar as sementes de plantas como a Ipomoea violácea, que contém as sementes com LSA: ámido de ácido lisérgico. O LSA está presente em sementes como a Argyréia nervosa, além do ololiuhqui, que vem de uma planta chamada de Rivea corymbosa. Ayahuasca, que já conhecemos bem como “Santo Daime”, vamos falar deste importante contexto religioso. A anahuasca, outra combinação que reunirá o princípio ativo DMT com inibidores de monoamonoxidase. O MDMA, que é o famoso ecstasy, embora o ecstasy de rua dificilmente contenha MDMA. Uma pesquisa recente em São Paulo mostrou que cerca de 50% do ecstasy de rua apenas contém MDMA. O peiote, que tem um uso tradicional e permitido nos EUA para uso religioso, é um cacto que contém mescalina. O São Pedro ou Wachuma, que é um outro cacto que contém mescalina, que é um cacto permitido no Brasil. Os 25x-NBOMe, são pelo menos 11 substâncias deste conjunto. Os DOx, o di-metil anfetamina que contém várias combinações, com cloro, bromo, iodo, etc. São substâncias que o Sandro falará também e que levam a grandes riscos na “adulteração” do LSD. O Amanita muscaria, aquele cogumelo do Mário, dos Smurfs, que colocamos nas nossas casas de veraneio, é um cacto psicodélico que contém ácido ibotênico, usado por populações na Russia tradicionalmente, na Sibéria. E alucinógenos que são efetivamente alucinógenos, substâncias que promovem alucinações, que eu não classifico como psicodélicos. Substâncias como o chá de lírio, por exemplo, a gente pode falar dos nomes tradicionais como meimendro, beladona, que contém tropano, escolpamina, atropina ou hioscimina. São os tropanos.

Eu não poderia deixar de mencionar que a ideia desse Seminário é não só debater estas substâncias e suas políticas, mas também entender quais seriam as formas de fornecer redução de riscos e danos das pessoas que farão uso de qualquer forma, independente das formas de repressão. Aqui uma frase da redução de danos

Vou passar para nossa segunda mesa e convidar o coordenador da mesa, que é um prazer recebe-lo, o redutor de danos Denis Petuco.


[1] – Realizado em 26 de Novembro de 2014 no Instituto Superior de Educação do Rio de Janeiro (ISERJ).

[2] – Há controvérsias sobre a autoria desta frase. Terence Mckenna, em Schizophrenic or Shamanic (disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=1wKZ0ImX7A0) explicita que Leary o falou que nunca pronunciou tal frase, que se tornou tão famosa.