A Guerra à Maconha – Parte 2! [OnJack Ed. #235]

Veja a parte 1 AQUI

Primeiros jovens presos em Portugal por posse e consumo de cannabis, em 1972.

Embora por detrás da campanha “Droga-Loucura-Morte” estivesse obviamente a pressão dos Estados Unidos (onde o presidente Nixon, acossado pelo escândalo Watergate, lançava oportunisticamente a “War on Drugs”), isso não invalida que os nossos governantes de então, acreditando que Portugal era uma espécie de reserva moral do Ocidente, se sentissem genuinamente aterrados com a ideia de implantar entre nós a contracultura juvenil que abalava o mundo industrializado. Neste espírito, para combater o que foi desi­gnado de “plano diabólico para cor­romper a juventude”, em 1973 chegou a ser advogado na Assembleia Nacional o “controle do movimento ‘hippie’ por­tuguês, evitando-se por todos os meios a entrada em Portugal dos seus adeptos estrangeiros”, advogando-se ainda “o controle dos festivais ‘pop’, responsáveis por tumultos e difusão das drogas”.

Sublinhe-se as vezes que forem necessárias que, em Portugal nos anos 70, as substâncias que estavam Implicadas na “drogagem da juventude” eram exclu­sivamente os diversos preparados psicoativos de cannabis, e os psicodélicos — a heroína, nomeada­mente, estava ausente da “problemática da droga”. Assim, em 1972, a propósito do primeiro julgamento de droga realizado em Portugal, escreveu-se na revista Observador. “O cânhamo indiano, o kif, a marijuana, o haxixe, a macomba, a liamba e o LSD faziam parte do vasto stock de estupefacientes que os fornecedores distribuíam.”

Mas Portugal não escaparia à explosiva mescla de conflito de gerações e revolução de costumes em curso no ocidente; tal como em tantas outras áreas,estávamos simplesmente atrasados em relação ao se que passava “lá fora”. E, com alguns anos de desfasamento, espalhou-se entre a juventude portuguesa o gosto pela música psicodélica e o estilo de vida hippie — quanto a experimentar as drogas catalizadoras do fenômeno contracultura, a maconha e o LSD, a maioria dos candidatos lusitanos precisou esperar um pouco mais.

Na imprensa da época fizeram-se ouvir algumas vozes ponderadas sobre a atração que sentiam os jovens pelos estados alterados de consciência pro­porcionados pela cannabis e o LSD. Por exemplo, para o sociólogo Fernando Jorge Micael Pereira “a droga é um fenómeno cultural, (…) aparece ligada ao grupo e à festa. (…) a droga aparece como desvendando ou pretendendo imaginar um mundo imaginário. Apresenta-se como pesquisa do futuro. (…) ela é um rito de iniciação no futuro (…) parece abrir uma nova via, é uma aventura, uma experiên­cia. E todos esperamos que sejam sobretudo os jo­vens quem se aventure, quem experimente” (entre­vista ao Século Ilustrado, 2/6/73).

Foi assim num clima de histeria anti-cannabis que, em Abril de 1973, teve iní­cio em Lisboa o julgamento conhecido por “novo caso das drogas”, o qual des­pertou enorme interesse, pois entre as dezenas de arguidos por posse e consu­mo de marijuana contavam-se nomes sonantes do meio artístico e cultural lisboeta. O Ministério Público pediu a con­denação dos réus a prisão efetiva, insistindo que o norteava o “valor pre­ventivo da repressão judicial ao consumo e transmissão de droga, mais do que a gravidade das infracções”; a defesa insis­tiu na tónica de que os réus “nunca pre­tenderam nem pensaram na comercia­lização de plantas consideradas estupefa­cientes”. No final, tendo-se provado a participação da maioria em “sessões de fumo”, 27 dos acusados foram condena­dos a penas de prisão indo de 3 a 33 meses (além de multas); todas as penas seriam porém suspensas exceto uma.

Entre os “médicos, escultores, pintores, escrito­res, atores, publicistas, desenhadores, estudantes” arguidos neste processo contavam-se os atores Eunice Munoz e João Perry, c os pintores António Areal e Lagoa Henriques; entre as testemunhas abonatórias estiveram Amélia Rey Colaça Antónia Alçada Baptista e Ary dos Santos.

Se vir esta planta, destrua-a

Os esforços que o regime marcelista fez para estancar a difusão do hábito de fumar cannabis não passaram porém de um patético exercício de tapar o sol com uma pe­neira. Nada podia impedir estudantes e jovens profis­sionais de viajar até países estrangeiros, principalmente a Inglaterra e a Holanda, on­de com facilidade experi­mentavam as famosas dro­gas dos hippies, muitas vezes tornando-se depois proséli­tos delas entre nós; outro pólo de difusão da cannabis eram os turistas europeus que começavam a eleger Portugal como destino de férias — o Algarve preocupava de forma particular os guardiões da nação,”por ser zona de turismo, portanto frequentada por milhares de estrangeiros, que conta­giam o perigoso vício aos habitantes daquela província”.

Mas o fator mais importante na difusão da marijuana em Portugal foram sem duvida os militares portugueses que participaram nas guerras de África. Mui­tos deles, tendo despertado para os pra­zeres de fumar liamba ou suruma nas antigas colónias africanas, ao regressa­rem das suas comissões de serviço fa­ziam-se acompanhar de amostras das potentes variedades de cannabis africana (boi-cola, mangarrossa), que partilha­vam com amigos e familiares.

Na imprensa dos anos seguintes ao 25 de Abril, o papel dos militares na introdução da cannabis ai tri­nos é um dado adquirido. Dois exemplos: “Em Portugal, nos últimos anos, a toxicomania Ura sotridi) um grande incremento, sobretudo através dos militares regressados das guerras coloniais e dos turistas vindos da América do Norte e da Europa Ocidental” (O Século ilustrado, 11/6/76), c “Em An­gola, em Moçambique, na Guiné, os soldados fuma­vam liamba (…). E voltavam, habituados à liamba, trazendo-a consigo, espalhando a nas suas aldeias e povoado* (…) (Vida Mundial 26/8/76).

Em Março de 1974, pela primeira vez em Portugal, consumiram-se joints (à época ainda não era comum usar-se o termo “charro”) ostensivamente num evento público. A ocasião foi o concerto da banda rock Genesis no Pavilhão de Cascais, onde, segundo informa o jorna­lista João Alves da Costa no livro Droga e prostituição em Lisboa, “o ar quase não se distinguia do fumo — a inconfundível associação sensorial que a marijuana tem com o aroma acre (…) o ambiente pouco menos que irrespirável — o fumo da ‘erva’ causava tosse a quem tivesse de encher os pulmões muitas vezes — mesmo sem respirar o fumo absorvia-se por osmose”. Concluindo, Alves da Costa afirma que “aquela sessão constitui talvez no nosso país a primeira maciça de­monstração coletiva do grau de disse­minação elevado em que a droga se en­contrava no seio da juventude”.

Logo no mês seguinte, dá-se o 25 de Abril. Numa eventual História Psicodélica de Portugal, 1974 será decerto considerado o ano do nosso Verão do Amor, pois o clima de liberdade, otimismo e idealismo vivido nos meses seguintes à Revolução dos Cravos foi o cenário utópico no qual milhares de portugueses se iniciaram no consumo de marijuana — cuja disponibilidade aumentara ainda mais com o regresso dos contingentes militares estacionados nas colónias africanas. A democratização em curso no país estendia-se também ao há­bito de fumar cannabis: “O consumo da droga não é hoje exclusivo das classes privilegiadas (…) Dos filhos das famílias poderosas a droga depressa alastrou até aos estudantes em geral e começa agora a penetrar entre os trabalhadores”, diz-se numa Vida Mundial de 1976.

O realizador de cinema Rui Simões, que co­meçou a fumar cannabis em 1968, em Bruxelas, onde era exilado politico, conta como foi regressar a Portugal em 1974. em plena “festividade revolu­cionária”: “Uma das surpresas agradáveis era que havia imensa erva angolana, a chamada liamba, em quantidades industriais. Era um privilégio que eu não tinha, só as pessoas que estiveram em Africa, nomeadamente os soldados, a conheciam”.

Não que a situação dos apreciadores nacionais de marijuana tivesse melhora­do com a Revolução dos Cravos; de fato, a única continuidade descortinável entre a ditadura derrubada e o novo regime democrático é o “combate à droga”. Assim, nos anos turbulentos a seguir ao 25 de Abril, apesar da aguda polarização po­lítica que quase conduziu o país à guerra civil, direita e esquerda em Portugal con­seguiam estar de acordo numa coisa — a demonização da cannabis. Nas palavras de Cândido de Agra, para a direita a can­nabis era o “sintoma de crise de uma so­ciedade ainda não preparada para viver em liberdade”; para a esquerda, ela era “introduzida do exterior malevolamente para destruir a combatividade revolucionária da nossa juventude”.

Apesar de ser um segredo de Polichinelo que muitos militares de Abril, incluindo figuras gradas da Revolução, apre­ciavam liamba, o espírito farma­cologicamente correto que im­pera entre os historiadores e jor­nalistas portugueses impede qualquer referência ao fato.

A partir do final de 1975, registou-se um novo e decisivo impulso na disseminação do hábito de fumar cannabis na sociedade portuguesa quando, na se­quência da independência das colónias africanas, cerca de 600.000 residentes de origem europeia fugiram espavoridos de Angola e Moçambique. Apesar de muitos destes “retornados” trazerem consigo pouco mais do que a roupa que vestiam, outros fizeram-se acompanhar de grandes quantidades de erva africana, sabendo que a mesma tinha grande procura na ex-Metrópole. Os registos indicam que foi na praça lisboeta do Ros­sio, lugar de concentração inicial dos retornados, que se inaugurou o comércio regular de cannabis em Portugal; mas rapidamente a liamba e a suruma espalharam-se por Portugal inteiro, à medida que os “deslocados do Ultramar” se iam fixando pelo país fora.

Diz-se num artigo publicado no Século Ilustrado em 1976 sobre o “vício” de cannabis de um jovem de uma vila não identificada do interior: “E se antes a tinha de procurar [a ‘erva’), com alguma dificuldade, entre os soldados que regressavam das chamadas “comissões de serviço’, em terras do ‘Império Colo­nial’, agora a questão está bem mais facilitada: alguns dos retornados constituem excelente mercado” E, mais adiante, afirma um professor, Domingos Bap­tista, depois de enumerar uma série de motivos que levam os alunos a drogar-se: “Acrescente-se a tudo isto a avalancha de retornados das ex-colónias, grande parte dos quais são reais ou potenciais toxicó­manos (…)”• Mais informa o psicólogo Artur Par­reira, no Expresso de 24/9/76: “Embora já existissem algumas drogas entre nós, foi na altura das movi­mentações de e para África que começou a ser intro­duzida a cannabis sativa 1., liamba como é conhecida, primeiro com o regresso de militares, depois com a vinda maciça de retornados (…) as condições para a sua introdução tornaram-se propicias pela instabili­dade social que se seguiu ao 25 de Abril, com o desa­parecimento das instituições de repressão e controlo, derrubadas com bastante rapidez”.

O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.