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Embora por detrás da campanha “Droga-Loucura-Morte” estivesse obviamente a pressão dos Estados Unidos (onde o presidente Nixon, acossado pelo escândalo Watergate, lançava oportunisticamente a “War on Drugs”), isso não invalida que os nossos governantes de então, acreditando que Portugal era uma espécie de reserva moral do Ocidente, se sentissem genuinamente aterrados com a ideia de implantar entre nós a contracultura juvenil que abalava o mundo industrializado. Neste espírito, para combater o que foi designado de “plano diabólico para corromper a juventude”, em 1973 chegou a ser advogado na Assembleia Nacional o “controle do movimento ‘hippie’ português, evitando-se por todos os meios a entrada em Portugal dos seus adeptos estrangeiros”, advogando-se ainda “o controle dos festivais ‘pop’, responsáveis por tumultos e difusão das drogas”.
Sublinhe-se as vezes que forem necessárias que, em Portugal nos anos 70, as substâncias que estavam Implicadas na “drogagem da juventude” eram exclusivamente os diversos preparados psicoativos de cannabis, e os psicodélicos — a heroína, nomeadamente, estava ausente da “problemática da droga”. Assim, em 1972, a propósito do primeiro julgamento de droga realizado em Portugal, escreveu-se na revista Observador. “O cânhamo indiano, o kif, a marijuana, o haxixe, a macomba, a liamba e o LSD faziam parte do vasto stock de estupefacientes que os fornecedores distribuíam.”
Mas Portugal não escaparia à explosiva mescla de conflito de gerações e revolução de costumes em curso no ocidente; tal como em tantas outras áreas,estávamos simplesmente atrasados em relação ao se que passava “lá fora”. E, com alguns anos de desfasamento, espalhou-se entre a juventude portuguesa o gosto pela música psicodélica e o estilo de vida hippie — quanto a experimentar as drogas catalizadoras do fenômeno contracultura, a maconha e o LSD, a maioria dos candidatos lusitanos precisou esperar um pouco mais.
Na imprensa da época fizeram-se ouvir algumas vozes ponderadas sobre a atração que sentiam os jovens pelos estados alterados de consciência proporcionados pela cannabis e o LSD. Por exemplo, para o sociólogo Fernando Jorge Micael Pereira “a droga é um fenómeno cultural, (…) aparece ligada ao grupo e à festa. (…) a droga aparece como desvendando ou pretendendo imaginar um mundo imaginário. Apresenta-se como pesquisa do futuro. (…) ela é um rito de iniciação no futuro (…) parece abrir uma nova via, é uma aventura, uma experiência. E todos esperamos que sejam sobretudo os jovens quem se aventure, quem experimente” (entrevista ao Século Ilustrado, 2/6/73).
Foi assim num clima de histeria anti-cannabis que, em Abril de 1973, teve início em Lisboa o julgamento conhecido por “novo caso das drogas”, o qual despertou enorme interesse, pois entre as dezenas de arguidos por posse e consumo de marijuana contavam-se nomes sonantes do meio artístico e cultural lisboeta. O Ministério Público pediu a condenação dos réus a prisão efetiva, insistindo que o norteava o “valor preventivo da repressão judicial ao consumo e transmissão de droga, mais do que a gravidade das infracções”; a defesa insistiu na tónica de que os réus “nunca pretenderam nem pensaram na comercialização de plantas consideradas estupefacientes”. No final, tendo-se provado a participação da maioria em “sessões de fumo”, 27 dos acusados foram condenados a penas de prisão indo de 3 a 33 meses (além de multas); todas as penas seriam porém suspensas exceto uma.
Entre os “médicos, escultores, pintores, escritores, atores, publicistas, desenhadores, estudantes” arguidos neste processo contavam-se os atores Eunice Munoz e João Perry, c os pintores António Areal e Lagoa Henriques; entre as testemunhas abonatórias estiveram Amélia Rey Colaça Antónia Alçada Baptista e Ary dos Santos.
Os esforços que o regime marcelista fez para estancar a difusão do hábito de fumar cannabis não passaram porém de um patético exercício de tapar o sol com uma peneira. Nada podia impedir estudantes e jovens profissionais de viajar até países estrangeiros, principalmente a Inglaterra e a Holanda, onde com facilidade experimentavam as famosas drogas dos hippies, muitas vezes tornando-se depois prosélitos delas entre nós; outro pólo de difusão da cannabis eram os turistas europeus que começavam a eleger Portugal como destino de férias — o Algarve preocupava de forma particular os guardiões da nação,”por ser zona de turismo, portanto frequentada por milhares de estrangeiros, que contagiam o perigoso vício aos habitantes daquela província”.
Mas o fator mais importante na difusão da marijuana em Portugal foram sem duvida os militares portugueses que participaram nas guerras de África. Muitos deles, tendo despertado para os prazeres de fumar liamba ou suruma nas antigas colónias africanas, ao regressarem das suas comissões de serviço faziam-se acompanhar de amostras das potentes variedades de cannabis africana (boi-cola, mangarrossa), que partilhavam com amigos e familiares.
Na imprensa dos anos seguintes ao 25 de Abril, o papel dos militares na introdução da cannabis ai trinos é um dado adquirido. Dois exemplos: “Em Portugal, nos últimos anos, a toxicomania Ura sotridi) um grande incremento, sobretudo através dos militares regressados das guerras coloniais e dos turistas vindos da América do Norte e da Europa Ocidental” (O Século ilustrado, 11/6/76), c “Em Angola, em Moçambique, na Guiné, os soldados fumavam liamba (…). E voltavam, habituados à liamba, trazendo-a consigo, espalhando a nas suas aldeias e povoado* (…) (Vida Mundial 26/8/76).
Em Março de 1974, pela primeira vez em Portugal, consumiram-se joints (à época ainda não era comum usar-se o termo “charro”) ostensivamente num evento público. A ocasião foi o concerto da banda rock Genesis no Pavilhão de Cascais, onde, segundo informa o jornalista João Alves da Costa no livro Droga e prostituição em Lisboa, “o ar quase não se distinguia do fumo — a inconfundível associação sensorial que a marijuana tem com o aroma acre (…) o ambiente pouco menos que irrespirável — o fumo da ‘erva’ causava tosse a quem tivesse de encher os pulmões muitas vezes — mesmo sem respirar o fumo absorvia-se por osmose”. Concluindo, Alves da Costa afirma que “aquela sessão constitui talvez no nosso país a primeira maciça demonstração coletiva do grau de disseminação elevado em que a droga se encontrava no seio da juventude”.
Logo no mês seguinte, dá-se o 25 de Abril. Numa eventual História Psicodélica de Portugal, 1974 será decerto considerado o ano do nosso Verão do Amor, pois o clima de liberdade, otimismo e idealismo vivido nos meses seguintes à Revolução dos Cravos foi o cenário utópico no qual milhares de portugueses se iniciaram no consumo de marijuana — cuja disponibilidade aumentara ainda mais com o regresso dos contingentes militares estacionados nas colónias africanas. A democratização em curso no país estendia-se também ao hábito de fumar cannabis: “O consumo da droga não é hoje exclusivo das classes privilegiadas (…) Dos filhos das famílias poderosas a droga depressa alastrou até aos estudantes em geral e começa agora a penetrar entre os trabalhadores”, diz-se numa Vida Mundial de 1976.
O realizador de cinema Rui Simões, que começou a fumar cannabis em 1968, em Bruxelas, onde era exilado politico, conta como foi regressar a Portugal em 1974. em plena “festividade revolucionária”: “Uma das surpresas agradáveis era que havia imensa erva angolana, a chamada liamba, em quantidades industriais. Era um privilégio que eu não tinha, só as pessoas que estiveram em Africa, nomeadamente os soldados, a conheciam”.
Não que a situação dos apreciadores nacionais de marijuana tivesse melhorado com a Revolução dos Cravos; de fato, a única continuidade descortinável entre a ditadura derrubada e o novo regime democrático é o “combate à droga”. Assim, nos anos turbulentos a seguir ao 25 de Abril, apesar da aguda polarização política que quase conduziu o país à guerra civil, direita e esquerda em Portugal conseguiam estar de acordo numa coisa — a demonização da cannabis. Nas palavras de Cândido de Agra, para a direita a cannabis era o “sintoma de crise de uma sociedade ainda não preparada para viver em liberdade”; para a esquerda, ela era “introduzida do exterior malevolamente para destruir a combatividade revolucionária da nossa juventude”.
Apesar de ser um segredo de Polichinelo que muitos militares de Abril, incluindo figuras gradas da Revolução, apreciavam liamba, o espírito farmacologicamente correto que impera entre os historiadores e jornalistas portugueses impede qualquer referência ao fato.
A partir do final de 1975, registou-se um novo e decisivo impulso na disseminação do hábito de fumar cannabis na sociedade portuguesa quando, na sequência da independência das colónias africanas, cerca de 600.000 residentes de origem europeia fugiram espavoridos de Angola e Moçambique. Apesar de muitos destes “retornados” trazerem consigo pouco mais do que a roupa que vestiam, outros fizeram-se acompanhar de grandes quantidades de erva africana, sabendo que a mesma tinha grande procura na ex-Metrópole. Os registos indicam que foi na praça lisboeta do Rossio, lugar de concentração inicial dos retornados, que se inaugurou o comércio regular de cannabis em Portugal; mas rapidamente a liamba e a suruma espalharam-se por Portugal inteiro, à medida que os “deslocados do Ultramar” se iam fixando pelo país fora.
Diz-se num artigo publicado no Século Ilustrado em 1976 sobre o “vício” de cannabis de um jovem de uma vila não identificada do interior: “E se antes a tinha de procurar [a ‘erva’), com alguma dificuldade, entre os soldados que regressavam das chamadas “comissões de serviço’, em terras do ‘Império Colonial’, agora a questão está bem mais facilitada: alguns dos retornados constituem excelente mercado” E, mais adiante, afirma um professor, Domingos Baptista, depois de enumerar uma série de motivos que levam os alunos a drogar-se: “Acrescente-se a tudo isto a avalancha de retornados das ex-colónias, grande parte dos quais são reais ou potenciais toxicómanos (…)”• Mais informa o psicólogo Artur Parreira, no Expresso de 24/9/76: “Embora já existissem algumas drogas entre nós, foi na altura das movimentações de e para África que começou a ser introduzida a cannabis sativa 1., liamba como é conhecida, primeiro com o regresso de militares, depois com a vinda maciça de retornados (…) as condições para a sua introdução tornaram-se propicias pela instabilidade social que se seguiu ao 25 de Abril, com o desaparecimento das instituições de repressão e controlo, derrubadas com bastante rapidez”.
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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