Esquecido o cânhamo, abria-se um novo e controverso capítulo na longa história da cannabis em Portugal — a planta que tornara possíveis os Descobrimentos era agora apresentada aos portugueses como uma droga infernal, a marijuana. De fato, a acreditar em deputados lusitanos do início dos anos 70, a cannabis era “um flagelo capaz de subverter a família, a Nação, o Estado”, causando “não só a decadência mas a morte da civilização ocidental”. Chegou-se mesmo à apocalíptica conclusão, na antiga Assembleia Nacional, que a marijuana era “o perigo n° 1 para a sobrevivência do homem”.
Tão histérico alarme era especialmente descabido em Portugal, que à época correspondia ainda em grande medida ao “orgulhosamente sós” salazarista — e o hábito de fumar cannabis, emblemático da geração flower power que sacudia o mundo, era virtualmente desconhecido entre nós. Assim, na primeira edição do festival de Vilar de Mouros (Agosto de 1971), mau-grado o visual hippie de muitos dos 20.000 jovens presentes no “Woodstock português”, ninguém — muito menos os 150 agentes da GNR presentes, alguns armados de metralhadoras — descortinou indícios de consumo de “drogas”.
Entre as elites portuguesas, porém, houve quem estivesse sintonizado com os ventos psicodélicos desde o início. Assim, segundo o jornalista João Alves da Costa em Droga e Prostituição em Lisboa, a partir de 1967,”(.,.) na margem costeira do Algarve nomeadamente em Ferragudo — Albufeira — Praia da Rocha — Monte Gordo — as novidades toxicômanas [marijuana e LSD] explodiam nas festas da praia na noite — nas boates — nos apartamentos (…) nos anos que se seguiram os escândalos urbanos envolvendo jovens consumidores e matreiros traficantes apareceriam nos jornais de Lisboa — corriam rumores que era gente da ALTA — nomes da sociedade — malta graúda — mas a censura de influências a padrinhagem a política de desfasamento da verdade faziam cruelmente os seus efeitos (…) .
Aliás, quem fumou cannabis em Portugal até Setembro de 1970 fê-lo na mais completa legalidade, pois entre nós o consumo de substâncias “estupefacientes” só passou a ser considerado um crime após a promulgação, nesse mês, dos Decretos-Lei n° 420/70 e 435/70, mediante os quais Portugal ratificava acordos internacionais visando o chamado “combate à droga”, tais como a Convenção Única sobre Estupefacientes, subscrita pelo governo salazarista em Março de 1961 em sede da ONU. Como assinala um texto do Movimento Anti-Proibicionista sobre esta legislação, “[n]este período a atitude tomada foi na prática e na teoria o uso exclusivo da repressão a todos os níveis, não sendo definidos quaisquer esforços na área da profilaxia”.
A pena prevista para o crime de consumo de cannabis, incluída na tabela de substâncias psicoativas ilegalizadas, oscilava entre os 6 meses e os dois anos de prisão, e multa de 5 a 50 contos (entre 250 a 2500 euros).
Em Junho de 1972, surgiram afixados em outdoors por todo o país centenas de cartazes com a imagem de uma caveira ostentando na fronte o símbolo da paz(associado aos hippies), tudo acompanhado pelos dizeres “Droga-Loucura-Morte”. Iniciava-se a primeira campanha nacional contra a droga, não obstante Portugal ser um país onde, como se escreve na imprensa da época, “só se ouvia falar de haxixe e LSD pelo noticiário internacional dos jornais”.
Em 1973, o deputado Agostinho Cardoso confirmava que o consumo de drogas ilícitas era praticamente inexistente em Portugal: “São cerca de 137 os casos que foram detectados de consumo de droga nos últimos dois anos na metrópole (…) detectou-se LSD, marijuana e haxixe. Nenhum caso de heroína.” Quanto às razões para tão baixos índices de consumo, diz o artigo “Química da Loucura” publicado no Século Ilustrado de 4/3/72: “É também a nossa eterna posição de parentes pobres e afastados da opulenta família ocidental que nos tem preservado (e ainda preserva) de certas doenças da riqueza, como é o caso das drogas. Para a grande maioria da nossa juventude, o problema é ainda a sobrevivência”.
Por esta razão, a primeira campanha antidroga nacional foi amplamente denunciada, mesmo à época. Escreveu-se, por exemplo, no Século Ilustrado que “cartazes como o da Droga-Loucura-Morte (…) induzem em vez de afastar, criando o fascínio pelo perigoso e pelo proibido” — um efeito tanto mais previsível quanto era abissal a dissintonia entre o caquético regime de Marcelo Caetano e a juventude portuguesa. Recentemente, Cândido de Agra, investigador dos fenômenos da droga e do crime, escreveu em Dizer a Droga, Ouvir as Drogas que “[e]sta grande campanha publicitária tem sido apontada por favorecer a difusão do fenómeno [o consumo de drogas ilícitas] que à data era praticamente inexistente”.
Sobre esta campanha, escreveu Cândido de Agra na obra citada: “[N]enhum acontecimento significativo, em matéria de consumo de drogas, tinha lançado a inquietação quanto a esta problemática junto dos portugueses. Por outro lado, nenhum estudo epidemiológico sobre a incidência e prevalência do fenómeno da droga fundamentava tal campanha. (…) E nem sequer foi avançada qualquer estimativa, mesmo que infundada, quanto ao número de ‘drogados’ em Portugal. (…) não se conhece qualquer estudo, ainda que elementar, sobre índices de risco anterior a campanha”. Em 2002, o psicólogo Luís Fernandes escreveu na revista A Página da Educação a propósito da campanha “droga-loucura-morte”: “Sob o signo da diabolização do fenômeno, comandada pela politica de tolerância zero do maior produtor mundial de marijuana — os EUA — afastou-se a psicoatividade das funções que mais a aproximavam dos seus usos ancestrais — rituais, psicodélicos, festivos, lúdicos ou curativos — e, no fim da linha da caça às bruxas, expulsou-se a possibilidade de convivência pacífica com a translucidez, relevando unilateralmente o que nela havia de abismo, de perdição, de tragédia, de patologia, de transgressão. A sua proibição legal seguiu-se o seu interdito, mesmo nos recantos mais suaves da liberdade de cada um”.
Note-se que à época, mesmo em Portugal era bem sabido que, enquanto “droga”, a cannabis era pouco menos que inofensiva. Assim, em 1973, o psiquiatra João Fragoso Mendes, presidente da Liga Portuguesa de Higiene Mental, considerava em entrevista ao Século Ilustrado: “[Na] maioria das drogas de que tanto se tem falado ultimamente e que se consideram originar toxicomanias – marijuana, LSD, etc. –, (…) não existe nem dependência nem síndroma de abstinência”.
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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