A Descriminalização da Maconha em Portugal – Parte 2!

Convocação para a primeira manifestação em Portugal em favor da legalização da Cannabis

A 15 de Agosto de 2001 realizou-se a pri­meira manifestação pública em Portugal a favor da completa legalização da canna­bis.* Exibindo uma faixa alusiva, algumas centenas de pessoas juntaram-se frente à Muralha de Lagos, no Algarve, e fumaram marijuana e haxixe abertamente perante os impávidos agentes da autoridade pre­sentes no local. Custa, pois, a crer que tenha sido uma coincidência o que se passou um mês depois: a 13 de Setembro, a GNR pro­cedeu a uma rusga a casa do organizador do “fumício” de Lagos, Bernd Gutbub, um ativista pró-cânhamo alemão residente no Algarve, descobrindo 250 plantas de cannabis na sua propriedade de Aljezur, além de pequenas quantidades de haxixe e marijuana.

*Em 1999, o Bloco de Esquerda promovera, em bares lisboetas e portuenses, diversas “Noite da Fo­lha” dedicadas ao projeto-lei, apre­sentado por este partido, de despenalização da cannabis e separação dos mercados das drogas, através da legalização do comércio passi­vo dos seus derivados. Na altura, a Juventude Social Democrata apre­sentou uma proposta de teor seme­lhante.

As coisas ter-se-iam resu­mido a mais uni fait divers da guerra contra a cannabis caso o Tribunal de Lagos não tivesse confirmado a prisão preventiva do filho de Bernd, Joringel, à época com 17 anos, que estava presente no local aquando da rusga. Esta decisão revelou-se uma pedra no sapato da justiça portuguesa, pois a opinião públi­ca reagiu mal ao encarceramento de um menor numa prisão de adultos pelo crime de estar presente num campo de cannabis, tendo o pai assumido a responsabilidade pelo cultivo ilícito das plantas — no balanço final, quem saiu a ganhar com o episódio foi a causa da legalização da cannabis, que ganhou uma visibilidade inédita entre nós devido à midiatização do caso.

O desfecho judicial do caso não podia ter sido mais kafkiano: depois de terem cumprido nove me­ses de prisão preventiva, Joringel foi condenado a 46 dias de multa e o pai a oito meses de prisão.

Manu ChaoUm sinal seguro de que a cannabis cul­ture portuguesa estava a sair do armário foi dado nos concertos de Manu Chao realizados em Lisboa em Junho de 2001. Segundo o Público, num dos espectáculos, Manu Chao incluiu uma canção dedicada a Bob Marley, que apresentou como “o maior fumador de marijuana de todos os tempos”, enquanto “uma bandeira perdi­da entre a assistência desfraldava ao vento a grande palavra de ordem dos antiproibicionistas: ‘Legalize it!’”

Não que hoje em dia seja difícil encontrar em Portugal quem se pronuncie a favor da legalização da cannabis, ou mesmo de todas as substâncias atualmente ilícitas. Algumas dessas vozes chegam até de setores inesperados — por exemplo, a presi­dente da Comissão de Dissuasão da Toxicodepen­dência de Lisboa, Maria Antónia Almeida Santos, não parece nada convicta do sucesso da instituição que dirige, pois considera que “[t]alvez seja melhor caminhar para a despenalização total”. E vai per­guntando: “O que é que nós ganhámos quando isto foi crime? Qual foi a vantagem? A droga diminuiu? Não. Os crimes ligados à droga diminuíram? Pelo contrário. Quanto mais repressão, pior foi”. (Pú­blico, 10/7/01)

Com a entrada no novo milênio, o tó­pico “cannabis” deixou de ser um tabu absoluto entre nós, passando à categoria de temática discutível em programas po­pulares de rádio e TV, em particular os de­dicados aos jovens. Na imprensa, come­çam a atenuar-se os pruridos algo saloios que manifestam os jornalistas portugueses perante a realidade do consumo de haxixe e marijuana. Assim, em 2002, a propósito do Festival de Vilar de Mouros, um jornal português (o Público, honra lhe seja feita) refere pela primeira vez que fumar charros é das atividades mais praticadas em festi­vais e concertos de música moderna em Portugal; este fato, que há décadas salta à cara de qualquer frequentador de tais eventos, sempre fora puritanamente aba­fado, enquanto o consumo público de ál­cool é reportado com naturalidade.

Por outro lado, impressiona a forma como mesmo os mais esclarecidos mídia portugueses se obstinam em perpetuar a confusão da cannabis com a famige­rada “droga”. Por exemplo, uma noticia publicada no Público no final de 2002 sobre o “consumo proble­mático de droga” (um eufemismo para o uso de opiá­ceos) nos países da União Europeia, apesar de não referir uma única vez a cannabis, é ilustrado com uma fotografia da confecção de um charro de haxixe…

Por outro lado, é significativo que em Outubro de 2002 um investigador médico português tenha defendido em público, sem arruinar a carreira, as virtudes da cannabis terapêutica, em particular no alívio da dor de pacientes de câncer, AIDS, escle­rose múltipla, epilepsia e artrite.* De fato, a oficialização dos poderes curativos da cannabis (THC) está a fazê-la perder rapi­damente o estigma de planta maligna que adquirira na consciência nacional, resul­tante de décadas de propaganda promovi­da por autoridades de todas as persuasões políticas, com o aval das instituições médi­cas e científicas — as quais começam agora a informar-nos que afinal a cannabis não é uma droga, mas sim um remédio.

*O investigador em causa, Jorge Gonçalves, da Faculdade de Farmácia da Universidade do Porto, refere em declarações ao Público outras propriedades terapêuticas dos canabinóides: redução da ansieda­de, inibição das náuseas e vômitos; há ainda outros efeitos “suficientemente documentados”.

Assim, quanto ao futuro, para além de previsíveis controvérsias ligadas à igualmente previsível abertura de coffee shops e grow shops (comércio de sementes de can­nabis e acessórios para o seu cultivo), adi­vinha-se que entre nós o cânhamo-de-can-nabis recupere, e talvez ultrapasse, o seu antigo estatuto de “preciosa planta”, à me­dida que, contra a ignorância, os precon­ceitos e os interesses ocultos, se vai impon­do o rol impressionante de efeitos positivos que ele pode ter na nossa existência e na do planeta que habitamos. A ver vamos rumo a que dimensões a integração em curso das múltiplas facetas da cannabis fará agora viajar Portugal, e o mundo…

Aproveite-se este espaço que sobra para incluir uma nota de feiçam herética: e se, como não registram os historiadores, o jovem Luís de Camões — marginal, boêmio, aventureiro — não se tiver escusado a experi­mentar o bangue. quando garantidamente deparou com a famosa droga da Índia? (ver “Garcia da Orta Apresenta o Bangue ao Ocidente“). Assim, caso Ca­mões tenha alguma vez proclamado “Pois venha o bangue!” a conclusão mínima a retirar é que a can­nabis não teve seguramente o efeito de não inspirar o Poeta a redigir as estrofes visionárias dos Lusíadas...

Luís Torres Fontes, com João Carvalho Novembro de 2002

O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.