Vida de inseto – Relato de um “missionário”!

Sexta feira, 2 de outubro. Começa o fim de semana e como todo bom usuário regular vou atrás de erva divina. Marco com o parceiro. Bora? Fechou!

16:31. Subúrbio do Rio de Janeiro. A caminhada até a boca é rápida, 10 minutos ida e volta – falo pro amigo -. Saímos da estação, percorremos a passarela que leva até a rua de uma favela carioca numa região onde a presença do Estado se faz mais forte através de seu braço armado. É uma rua comum de subúrbio, ladeia a linha do trem, do outro lado um famoso shopping da Zona Norte. Na entrada da favela passamos por um camburão e uma viatura da PM saindo da favela. Sinal de alerta liga. Na rua, que costumava ficar apinhada de pessoas consumindo drogas depois de fazer missão, um clima pesado, a pesar disso várias pessoas seguem em linha reta até a primeira esquina onde se localiza o movimento. De papo, esquadrinhando o local, as pessoas e a movimentação percebemos que na tal esquina se encontrava um camburão parado e dois PMs. O sangue gela, coração bate forte, é preenchido pelo desespero. Que merda! Dinheiro tá contado pra missão e transporte! Ai é de foder!

Na volta do percurso, debatemos sobre como procederemos a partir daí. Eu precisava comprar naquele momento, grana tava curtíssima e tava tudo contado, tinha que ser naquele momento. Até que uma alma surge em paralelo a nós avisando que a boca havia sido realocada para a linha do trem devido à presença da polícia. Debatemos. Subimos a passarela para ter melhor visão da localização da boca e da polícia. De cima da passarela via-se dezenas de pessoas andando pela linha do trem enquanto os dois PMs observavam toda a movimentação encostados na parede que separa a rua da favela e a linha do trem. Daquele ponto de vista pareciam muitas formiguinhas andando em fila se arriscando na linha do trem e os besouros (PMs) olhando tudo aquilo. Penso: são muitas formiguinhas e poucos besouros. Numa mistura de audácia e irresponsabilidade me arrisco no corre. O amigo fica.

Retorno o caminho e há 50 metros da onde os policiais se encontravam entro por um buraco que dava acesso à linha do trem. 5 minutos de caminhada. Sinto-me em outro lugar. Cadê aquele RJ de praia, sol, mulheres lindas, futebolzinho que tanto é vendido na mídia? Se esse RJ existe certamente não é ali. 5 minutos de caminhada pela linha do trem sinto que cruzei o limiar entre a cidade maravilhosa e o submundo trevoso das regiões periféricas, não que esse tipo de submundo periférico não faça parte do meu dia a dia, mas estar ali naquele clima de tensão, vigiado pela PM e escaldado em ficar no meio de uma possível troca de tiro faz o sentimento de alteridade extrapolar o céu. Andando em linha junto com dezenas de outras pessoas percebo que vários barracos de madeira e alumínio foram erguidos na beira da linha, vejo pessoas aparentando um estado físico mais parecido com os zumbis do The Walking Dead do que seres humanos. Cenas lamentáveis da miséria humana gerada pela criminalização da pobreza e as barreiras impostas a essas pessoas para que cruzem essa fronteira da pobreza e consigam atingir um estado de vida mais digno.

Chego a boca. Por incrível que pareça estava lotada, uma fila imensa se formava na frente da boca. A informação é anunciada por um dos traficantes: a boca fechou, acabou a carga. Puta que pariu! Só faltava essa. Pergunto a um dos traficantes se teria outra boca mais próxima ele aponta outra, metros a frente. Lidar com traficantes é algo bastante complexo, é difícil manter a tranquilidade quando se conversa com alguém que segura uma arma e mantém o dedo no gatilho sempre. Mas já estava ali, era tudo ou nada. Chego na outra e a informação: acabou a maconha, só pó e crack. Puta que pariu de novo!

Volto tudo a pé, puto, desolado, impregnado de imagens que se fossem mostradas na novela mostrariam a real cara de uma cidade segregada, imersa numa guerra civil. A presença da polícia e dos traficantes no mesmo local ostensivamente armados distando menos de 1 km e uma parede me faz perceber como nos acostumamos a viver uma sociedade esquizofrênica. Qual seria o sentido da polícia nessa guerra? Não pode ser coibir o tráfico já que ele estava em pleno funcionamento logo ali do lado e o buraco que dava acesso à linha do trem ficava a 50 metros de distância de onde os policias estavam estacionados. Concluo que sua presença ali não é para coibir o tráfico, muito menos garantir a segurança de ninguém, nem da vida deles próprios visto que estavam em menor número, na verdade sua presença naquele contexto gerava apenas tensão entre os usuários, os próprios traficantes e os moradores.

Me sinto no filme Vida de Inseto. Me sinto uma formiga que para se abastecer precisa ficar de olho aberto para não ser comido pelos besouros ou pisado pela bota do Estado e seu sistema penal que criminaliza o usuário.

Dessa experiência consigo entender realmente o por que do jargão comum para comprar drogas se chamar “missão”. Ter diversas dificuldades que impedem de plantar por conta própria e grana curta para comprar na pista nos levam a situações extremas que podem custar a liberdade ou a vida de quem faz.

Enquanto nos acostumarmos com um sistema penal doentio, que remete ao nazismo e sua interferência na vida privada dos indivíduos; uma guerra as drogas sem sentido que só faz vítimas entre traficantes, policiais, usuários e desavisados e não obtém êxito na sua megalomania de destruir as drogas; e a própria relação esquizofrênica que criamos com relação a polícia que tendemos a odiar por suas práticas autoritárias difundidas institucionalmente, e que por isso mesmo não sabemos lidar com eles pois são a personificação da lei que, em tese, garantem a segurança de todos mas, na prática, sua presença e ostensividade aliada a um sistema penal repressivo geram medo e tensão.

Em casa, ironicamente, lembro do capitão Nascimento, em Tropa de Elite 2, que conclui o filme acertadamente dizendo: O sistema é foda, e ainda vai morrer muito inocente.

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