Usuário de psicodélicos: protagonismo e redução de danos (PARTE 1)

A redução de danos (RD), em seu histórico e em prática, conecta-se profundamente aos usuários de substâncias psicoativas (SPA). O usuário de substâncias, nesta abordagem, não se encontra como alguém desamparado de sua potência e poder de decisão; pelo contrário, o usuário ocupa um papel central na organização de políticas de cuidado aos usos de substâncias em geral. Tal cuidado e construção coletiva merecem destaque desde o usuário ocasional, recreativo, passando pelo usuário do uso terapêutico, até chegarmos no farmacodependente. Em todo espectro do uso de substâncias, o usuário tem um papel fundamental na análise e construção de políticas de cuidado destes usos e não deveria, de forma alguma, ser descartado como secundário, isto é, como alguém incapaz de decidir e construir tais políticas. Portanto, trata-se de formar um paradigma que não promova o assujeitamento. Os programas de RD estão direcionados a usuários que continuam usando SPA e àqueles que não querem ou não podem, em um determinado momento, interromper o consumo de substâncias (FONSECA, 2005).

por Fernando Beserra

A RD surgiu como um outro modelo diante de uma política de repressão e de uma forma de tratamento que, visando a doença e a completa abstinência de drogas, não promovia os resultados almejados, bem como não abordavam a experiência humana em sua complexidade e indeterminação. Um fato que contribuiu decisivamente para a implementação da política de redução de danos foi a criação e atuação da Junkiebond (liga dos junkies), que é um movimento social de usuários de droga com o intuito de zelar pelos interesses dos usuários, “melhorando suas condições de vida e moradia. Sua filosofia é a de que os próprios usuários conhecem melhor seus problemas” (RAMÔA, 2005, p.92). O protagonismo dos usuários tornou-se, de uma vez por todas, fundamental para a RD. Nada sobre nós sem a nossa participação.

A partir da valorização da troca na construção das ações de RD, os redutores de danos, quer utilizem ou não as substâncias do usuário do serviço de RD, devem se esforçar para aproximar-se de seu território para realizar o acolhimento de experiências difíceis. O território não compreendido aqui como topografia, mas como topologia, isto é, com suas dinâmicas afetivas, históricas, culturais, socioeconômicas (RAMÔA, 2005) e psicodélicas. Cabe ao redutor de danos, inicialmente, construir um espaço de acolhimento sem que diga ao psiconauta como deveria agir ou como deveria experimentar sua própria experiência. Demonstrar sensibilidade e compreensão pode ter efeitos incríveis e surpreendentes. Este espaço de acolhimento oferecido é a base da ação do que se denominou sitter (babá), isto é, a figura do cuidador que se encontra ao lado do psiconauta. Tal modelo foi muito utilizado no campo da psicoterapia com psicodélicos; embora também possamos pensar o sitter como Timothy Leary (1999) e Frank Barron, isto é, como uma nova demanda na sociedade ocidental: um orientador cerebral, um treinador para múltiplas realidades. Apesar do nome pomposo, tal ideia não remetia à produção de uma heteronomia. De acordo com Leary (1999, p.60), remetendo a discussões de 1960, a tarefa do orientador: “não era acompanhar a profusão desenfreada de imagens aceleradas do viajante, e sim permanecer disponível como uma base de referência segura, uma presença tranquilizadora a quem o viajante poderia recorrer”. Em 1962, Leary conheceu pessoalmente o trabalho clínico do psiquiatra Oscar Janiger, na época professor de psicologia em Universidade da Califórnia Irvine. Em sua clínica, Oscar treinava os cuidadores que acompanhavam os pacientes nas sessões de psicoterapia com LSD. Os sitters propiciavam um ambiente de apoio (LEARY, 1999).

A experiência de cuidado de um psiconauta envolve mais do que a empatia. Um dos pontos fundamentais é a desconstrução de uma visão que patologize a experiência psicodélica e tudo aquilo que escapa à ciência mecanicista. Esta ciência, ao longo do seu desenvolvimento, adquiriu mecanismos de defesa em relação aos seus sistemas de crenças, de modo que rotula como psicóticos os desvios perceptuais ou conceptuais do modelo newtoniano-cartesiano (GROF, 1987). A consciência e o respeito às dinâmicas específicas de reação aos psicodélicos são balizadoras para o trabalho de RD.

Portanto, o cuidador da experiência, seja em ambiente clínico, seja no ambiente de redução de danos em uma festa, deve conhecer a experiência psicodélica e algumas de suas particularidades. A linguagem do inconsciente, que se apresenta na experiência psicodélica, não se identifica com a linguagem ordinária da consciência e, portanto, requer – além do acolhimento – uma espécie de tradução para o próprio redutor de danos. De acordo com Jung (1946/2011) o inconsciente é de natureza dupla e paradoxal. Os arquétipos, tão presentes na experiência psicodélica, sempre se expressam primeiro em metáforas (JUNG, 1940/2000). Em sua autobiografia o psiquiatra suíço indica que a linguagem, para aproximar-se do inconsciente:

[…] precisa ser ambígua, isto é, ter sentido duplo, se quiser levar em conta a natureza da psique e seu duplo aspecto. É conscientemente e com deliberação que procuro a expressão de duplo sentido para corresponder a natureza do ser, ela é preferível a expressão unívoca. […] A expressão unívoca só tem sentido quando se trata de constatar fatos e não quando se trata de interpretação, pois, o sentido não é uma tautologia, mas inclui em si sempre mais do que o objeto concreto do enunciado. (JUNG; JAFFÉ, 1962/2005).

No caso da experiência psicodélica, há uma relação profunda com dimensões do inconsciente que, para muitas pessoas, eram basicamente não acessadas. De acordo com Leary, Metzner e Alpert (1964) a experiência psicodélica conduz a novos reinos da consciência, por meio da transcendência de conceitos verbais, das dimensões de espaço-tempo, do ego e da identidade. Por estes motivos o redutor de danos com substâncias psicodélicas deve conhecer a experiência psicodélica. Acharia inadequada uma prescrição que dissesse que o redutor deveria usar psicodélicos em alguma periodicidade específica ou que deveria ter usado um número definido de substâncias. No entanto, diante da singularidade da experiência psicodélica, é fundamental que o redutor conheça esta experiência, pois os psicodélicos, inclusive nas experiências difíceis, podem conduzir a campos da experiência humana pouco acessíveis à experiência cotidiana convencional e, desta forma, caso o redutor não tenha ele mesmo se aproximado desta experiência imediata, podem ocorrer erros de conduta e compreensão.

Há momentos específicos, em especial com o avançar da experiência e redução da intensidade de períodos críticos, que não se deve descartar o lugar da simbolização e criação de um diálogo, quando o redutor sentir abertura e capacidade de manejo para tal. Diante da singularidade da abordagem da redução de danos com substâncias psicodélicas, não se trata de construir um corpo técnico prescritivo, pois este corpo geraria uma fixação e eliminaria as diferenças do set, do setting e da individuação do psiconauta. Pelo contrário, a mistura entre as ações técnico-objetivas, como as concernentes a testagem de substâncias psicoativas, e a singularidade do manejo na compreensão e suporte de experiências psicodélicas, é que formam cada ação de RD como um encontro único. No campo das tecnologias de saúde, pode-se dizer que a singularidade da RD articula tecnologias leves de cuidado com ênfase nas relações interpessoais, produção de vínculos e autonomia, isto é, tecnologias que promovem a humanização do cuidado (JORGE e outros, 2011) e duras, tais como equipamentos tecnológicos e normatizações para este uso – como as testagens de substâncias.