Sociólogo que coordena projeto de legalização da maconha no Uruguai defende controle estatal

Fonte: Folha

O sociólogo Julio Calzada, 57, vai comandar o processo de legalização da maconha no Uruguai. Secretário-geral da Junta Nacional de Drogas, ele foi designado pelo presidente José Mujica para coordenar a (nova) política nacional sobre o tema.

“O país iniciará um processo de risco”, disse à Folha. “Não há antecedentes, nenhum país fez o que estamos fazendo. Há que minimizar os riscos, mas temos pouca margem para equívocos.”

No próximo mês, o Senado deve concluir votação do projeto de lei que libera o plantio e a venda de maconha no Uruguai –tudo controlado pelo Estado. Espera-se aprovação mais folgada que na Câmara, há 12 dias.

Se aprovado, o Uruguai será o primeiro país do mundo a legalizar a maconha –nos EUA, até agora dois Estados aprovaram o uso “recreativo” e, na Holanda, cuja lei é conhecida pela tolerância, permite-se fumar pequenas quantidades em cafés, mas nunca em locais públicos.

Segundo o projeto, haverá cadastro para usuários –com mais de 18 anos e residentes no país, sem levar em conta a nacionalidade–, que poderão comprar até 40 gramas da droga por mês.

O consumo já é permitido –a Constituição uruguaia reconhece os direitos individuais em relação ao corpo e à própria vida.

Entra aí a incongruência da atual situação, que será sanada com a aprovação da lei: para praticar um ato legal, o cidadão precisa recorrer a meios ilícitos.

Formado em sociologia pela Universidade da República, de Montevidéu, Julio Calzada afirma que o modelo a ser adotado no Uruguai não serve para outros países. E nem é perfeito –o secretário admite que o projeto “limita” direitos aos cadastrados.

“Há uma limitação de direitos, mas assumimos isso para mudar a política de drogas, que é fracassada. Não há alternativa a não ser o controle do Estado de todo o processo, do plantio à distribuição”.

A seguir, trechos da entrevista concedida por telefone, na semana passada, em Bella Unión, no lado uruguaio da tríplice fronteira com Brasil e Argentina.

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Folha – O Senado deve aprovar a lei no próximo mês. Como será a legalização?

Julio Calzada – Levará tempo, acho que no final deste ano ou talvez no início do próximo. Ainda estamos decidindo assuntos referentes ao cultivo e à distribuição. Não sabemos quantas associações vão cultivar a droga e quantos locais de venda o Estado terá.

Fizemos pesquisas para entender como funciona o tráfico no país, os preços cobrados etc. Estipulamos um valor com base no mercado negro. O valor médio do grama é de US$ 1, US$ 1,50 (entre R$ 2,30 e R$ 3,40). Vamos trabalhar com um valor nessa faixa. Decidimos também um montante anual que será produzido e permitido pelo Estado, 22 toneladas de maconha por ano, que é a quantidade que se consome atualmente no país.

O que explica o fato de o país ser o primeiro a regulamentar o cultivo e o acesso à droga?

O convencimento do presidente da República de que os mecanismos de controle existentes há 50 anos não davam os resultados que esperávamos. Em primeiro lugar está o aspecto da saúde pública. É preciso dar resposta aos usuários. Uma resposta que seja adequada. Os usuários são estigmatizados ou considerados cidadãos de segunda classe. Este é o ponto central.

Um segundo aspecto, não menos importante, é a incongruência de nosso país. Aqui o consumo é legal. Nossa Constituição diz que atos pessoais, privados, desde que não afetem terceiros, não podem ser proibidos pelo Estado ou pelo Poder Judiciário.

Qual a maior dificuldade para legalizar a maconha?

É um processo que carece de precedentes. Há alguns poucos casos, como a Holanda e alguns Estados dos EUA. Há um conjunto de coisas que precisamos adequar à realidade. A dificuldade é que não há antecedentes, nenhum país fez o que estamos fazendo. Há que minimizar os riscos, temos pouca margem para equívocos.

A maioria da população uruguaia é contrária. Esse cenário não cria um problema para a regulamentação da lei?

O que estamos fazendo é trabalhar com muita dedicação e profissionalismo. Mudar o paradigma é muito difícil. Mas temos estudado a experiência de alguns países com a produção de ópio, como Índia e Turquia, por exemplo. É uma experiência prévia. É preciso haver sobretudo controle, para não haver desvios.

Há um convencimento de que a melhor forma de se lutar contra o tráfico é no plano econômico. O que essa lei busca é tirar o usuário do comércio ilegal. A única forma de matar o tráfico é tirar sua sustentação econômica. Essas organizações se utilizam da estrutura das drogas para cometer outros crimes, como tráfico de armas ou de pessoas. A atual política gera mais danos que benefícios.

Há preocupação com potenciais efeitos da legalização nos vizinhos Brasil e Argentina?

Estamos atentos aos controles necessários para evitar qualquer problema. Os usuários precisam se registrar, e para isso é necessário comprovar residência no país. Só assim as pessoas poderão comprar a maconha produzida aqui. Ou terão permissão para plantar em casa.

O objetivo é controlar o que seja produzido legalmente e evitar que essa produção seja desviada para o mercado negro e para países vizinhos.

Só a lei será suficiente para impedir a entrada da droga legal no mercado negro?

Sim, haverá um sistema de licenças que permite ao Estado interferir em todo o processo. Os produtores tampouco poderão competir entre si. O mercado será fechado e completamente controlado pelo Estado.

Um cidadão recebe autorização para plantar maconha. O Estado irá na sua casa para fiscalizá-lo?

Sim, essa pessoa terá que se registrar e nos informar qual tipo de planta irá utilizar. Tudo isso será controlado, sobretudo a quantidade. Se ficar comprovado que há mais do que o especificado, a pessoa poderá responder por tráfico de drogas.

Muitos usuários dizem que o projeto fere liberdades individuais e civis, já que eles precisam se cadastrar para plantar ou comprar do Estado. O que o sr. pensa dessa afirmação?

Este é um aspecto muito discutido pelas organizações sociais. Estamos num momento de debate e mudanças na política de drogas em todo o mundo. Essa é uma maneira de controle no marco dessa nova política.

Mas, para o sr., não há desrespeito às liberdades individuais e civis?

Há, sim, uma limitação de direitos, mas assumimos isso para mudar a nossa política de drogas, que é fracassada. Não há outra alternativa a não ser o controle do Estado em todo o processo, do plantio à distribuição. A medida tem dois aspectos. O primeiro é evitar o desvio da droga. Depois, também é uma medida sanitária, para controlar a quantidade de droga consumida no país.

O sr. acredita que o modelo uruguaio poderá ser aplicado em outros países latino-americanos?

É um projeto pensado exclusivamente para o Uruguai. Não somos um modelo a ser seguido. Estamos dando uma resposta aos nossos problemas, à realidade do Uruguai. A medida está de acordo com a presença do Estado na vida do país. Vamos controlar o comércio e oferecer um programa de assistência médica e também preventivo.

Queremos que neste século haja uma política progressiva em relação às drogas. O Uruguai, por ser o primeiro país a fazer isso, certamente vai contribuir ao debate como um exemplo. Brasil e Argentina têm uma política de drogas completamente distinta da nossa. Mas, neste caso, cada país precisa modificar essa política de acordo com a realidade local.