Entretanto, constatada a facilidade de se cultivar cannabis ao ar livre num clima moderado como o nosso, gerara-se o hábito de plantar a “erva angolana” em quintais e varandas para consumo próprio; era possível fazê-lo com certa tranquilidade, visto a planta ser virtualmente desconhecida em Portugal. Mas tudo mudaria em 16 de Agosto de 1976, quando, num comunicado do Ministério da Justiça, a RTP divulgou imagens de um pé de cannabis e da sua característica folha, acompanhadas da legenda: “Se vir esta planta, destrua-a” Sob o mote “O Flagelo da Liamba” iniciava-se a segunda campanha antidroga em Portugal.
Os resultados foram imediatos. A partir do dia seguinte à divulgação das imagens da cannabis na televisão, as autoridades não tiveram, segundo o vespertino A Capital, “um minuto de descanso a acorrer a todas as solicitações de populares que aqui e ali vão detectando novas plantações, umas mais vastas, outras em simples e ‘inocentes’ vasos colocados à janela” Centenas de plantações ou pés de cannabis foram denunciados em todo o país; a acreditar na imprensa da época, o Porto e os seus arredores, em particular, estavam a transformar-se “em verdadeiros quintais de liamba”. O cronista Carlos Cascais foi dos poucos a subtrair-se à histeria reinante, perguntando ironicamente na revista Flama: “Que outra planta parece querer tornar-se tão popular como a sardinheira?”
Em 1973, avança-se com a estimativa de “existirem em Portugal cerca de 400-500 casos de drogados” (inquérito de Carlos Plantier, Século Ilustrado, 26/5/75); três anos depois, em 1976, fala-se de “mais de 100 mil drogados e cerca de 20 mil plantações de liamba” (Vida Mundial, 26/8/76). Embora nada rigorosos, estes dados testemunham o crescimento explosivo do consumo de derivados de cannabis em Portugal.
Registre-se que a desculpa mais frequentemente apresentada para a plantação caseira de liamba era a obtenção de sementes para a alimentação de pássaros.
Valores mais altos se alevantavam, de novo — encarnando o conceito de droga, a cannabis tornara-se, para o regime democrático, o arqui-inimigo que o comunismo fora para o salazarismo. Assim se explica que, apesar de não terem decorrido ainda dois anos sobre o 25 de Abril e a extinção dos “bufos” da PIDE, este regresso à política de denúncia de cidadãos praticamente não tenha levantado protestos. Pelo contrário: um vespertino lisboeta indignou-se com o fato da brigada de estupefacientes da Pj, em vez de se dedicar exclusivamente à investigação de denúncias de cultivo de cannabis, estar “a ser, inexplicavelmente, ocupada com serviços de bombas e explosivos”.
Diz uma das poucas vozes dissonantes com relação à campanha “O Flagelo da Liamba” publicadas na imprensa da época: “O que se consegue com esta saloia campanha anti-droga? A) Despertar o polícia que há em cada português. Será o objetivo da questão suficientemente fundamental, suficientemente nacional? Por que não ocorreu às autoridades utilizar este faro detetivesco da população para desmontar a rede bombista ou para procurar os pides que fugiram? B) Fazer crer que o problema número 1 do país reside nesses pés de liamba que crescem nalguns quintais e que este se resolve arrancando-os. C) Fazer tomar o todo pela parte, identificando ‘droga’ com o cannabis ou liamba”. (Júlio Henriques, Expresso, 3/9/76)
Resultante deste sobressalto, ia iniciar-se um novo ciclo na difusão do consumo de cannabis em Portugal — a partir desta altura, o uso da resina prensada de cannabis, o haxixe, começou a tornar-se dominante entre nós em detrimento da erva. De fato, por um lado, com a cessação do fluxo de repatriados estancara a entrada de marijuana africana em Portugal; por outro, a campanha “O Flagelo da Liamba” fizera esfriar drasticamente entre nós o entusiasmo pelo grow your own. Já se perfilava, porém, num horizonte pouco longínquo a alternativa para satisfazer o crescente apetite dos lusitanos pelo THC — Marrocos, onde a produção de haxixe é milenar, e de onde, aliás, já chegavam pequenas quantidades do derivado de cannabis proscrito no Ocidente. E cada vez mais haxe marroquino começou a ser contrabandeado para Portugal, primeiro por entusiastas destemidos para consumo próprio e de amigos; com o tempo, o abastecimento passaria para as mãos de redes de traficantes profissionais.
Segundo dados do Ministério da Justiça, atualmente cerca de metade do haxixe introduzido em Portugal (46% em 1995) provém de S. Tomé e Príncipe.
A partir da década de 1980, tornou-se claro que o acéfalo moralismo antidroga do governo português gerara um monstro — as autoridades estavam completamente desacreditadas quando ocorreu uma explosão no consumo de heroína entre a juventude. Duas décadas depois, em 2002, a jornalista Isabel Stilwell observou a propósito: “Se as campanhas dizem que os charros matam tanto como a heroína, o resultado pode ser que quando eles [os miúdos] percebem que isso não é verdade para os charros, assumam que também não o é no caso da heroína” E, de fato, está por apurar até que ponto milhares de jovens portugueses se viciaram em heroína nos anos 80 devido aos efeitos perversos da desinformação com que as autoridades aterrorizaram a população durante anos a fio, equacionando a inócua cannabis com o mal absoluto dos nossos tempos, a droga. Refletindo esta nova e dramática realidade, operou-se uma alteração semântica na palavra “droga” que deixou de ser sinônimo de cannabis e passou a sê-lo de heroína. (Data também desta altura a substituição da palavra “toxicomania” por “toxicodependência”)
Sobre os efeitos do proibicionismo, o comentador Alexandre Melo escreveu no Expresso de 8/7/00: “Depois de décadas de repressão — cada vez mais dispendiosa — os resultados do proibicionismo são tão devastadores, na sua monstruosa perversidade, que, hoje em dia, antes de poder tratar os problemas provocados pelas drogas é preciso resolver os problemas provocados pela proibição”.
Agora que o combate ao “flagelo da droga” assentava as suas baterias noutra substância ilegal, o expediente encontrado para legitimar a continuada proibição da cannabis — agora promovida a “droga leve” — foi a designada “teoria da escalada”, segundo a qual o charro é o primeiro passo num caminho que leva inelutavelmente à “droga dura” heroína.
A PJ considera que a teoria da escalada é validada por uma estatística que a instituição apurou, segundo a qual nos crimes contra a propriedade, nomeadamente o furto e o roubo, 91% dos implicados que já tinham experimentado heroína iniciaram-se nas drogas ilícitas pelo haxixe — uma ilação pouco evidente a retirar dos dados da PI pois, segundo a mesma fonte, no momento do delito a droga consumida em 98% dos casos era a heroína.
Foi assim que, após uma breve e vistosa fase inicial, o consumo de derivados psicoactivos de cannabis, ofuscado pela heroína, adquiriu em Portugal um extraordinário low profile (ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos, onde o uso de marijuana pela geração dos sixties se tornou um cliché nacional). Sendo a enorme maioria dos fumadores de cannabis aquilo que a retorcida gíria proibicionista designa de “consumidores não-problemáticos” este setor da sociedade lusitana esbateu-se na paisagem social quando, na representação popular do drogado, o freak, herdeiro do hippie, deu lugar ao junkie, o toxicodependente.
Em 2000, um pouco como quem descobre a pólvora, escreve-se na imprensa nacional: “Os consumidores ocasionais existem. Constituem a maioria dos consumidores de drogas, mas não arrumam carros nem roubam para pagar a ‘dose’. Estudam, trabalham, casam, têm filhos. São invisíveis e querem continuar a sê-lo, pelo menos enquanto o consumo for penalizado”. (Notícias Magazine, 18/7/00)
Certo é que o tabu sobre o uso de cannabis tem-se mantido firme em Portugal — apenas em 1990 consegue encontrar-se, em letra de imprensa, uma descrição “por dentro” dos efeitos da ganzá; ainda assim, apesar da ousadia ter sido cometida numa publicação de pendor alternativo e irreverente (o jornal grátis portuense Metro), o autor Paulo Abrunhosa preferiu ocultar-se por trás de um óbvio pseudônimo. Escreveu, pois, Timóteo Lírico sobre o efeito do haxixe que este “pode traduzir-se em transformações aleatórias da percepção e é suscetível de conduzir o utilizador a uma descida à subjetividade do pormenor, à textura do prazer e à obnubílação relativa do mundo exterior. (…) No mais, também tem sido pretexto para relaxar ou estimular a mente ou o corpo, redefinir os sentidos ou erotizar o amor, enquadrar um pôr do sol em perspectivas diferentes, estender o espaço dos universos interiores, teorizar a razão de não fazer nada ou exibir a evidência de uma figura de estúpido”.
Dos anos 90 em diante, assistiu-se ao reemergir da cannabis em Portugal, para surpresa de quem pensara que a apreciação da erva e do haxixe era um fenômeno datado, ligado às gerações de 60 e 70. Para além da sua presença previsível na “renascença psicodélica” que começava então a ganhar visibilidade entre nós, a aura de transgressão e rebeldia da cannabis ajudou à sua adoção pelas culturas alternativas, entretanto surgidas, do hip hop ao trance. Com a folha da erva elevada à condição de bandeira-logotipo informal de um leque de estilos de vida alternativos e/ou radicais, pode a partir de então falar-se de uma assumida cannabis culture em Portugal, com vertentes políticas, ambientais e espirituais (como é o caso do movimento reggae). E, na sociedade em geral, o cálculo dos que já experimentaram cannabis chega aos 30% da população adulta portuguesa…
É incontestável que não faltam consumidores de haxixe em Portugal. Aplicando-se parâmetros definidos pelas Nações Unidas (o volume de droga confiscada representa 10 a 15 por cento do total da movimentada) a dados recentes fornecidos pela 1’ohud Judiciária em 2000 as autoridades portuguesas apreenderam 30 toneladas de haxixe, com um recorde de 52 toneladas em 1996), chega-se à estimativa de que no início deste milênio, circula em Portugal pelo menos uma tonelada de hashish por dia.
Entretanto, os fumadores de cannabis lusitanos começam a assumir-se. Prova-o o artigo “Consumidores de Haxixe Dão a Cara” publicado em julho de 2000 na Notícias Magazine, onde cinco portugueses “consumidores ocasionais” de haxixe e marijuana falam livremente da sua relação com o fumo da cannabis. Por exemplo, para o realizador cinematográfico Rui Simões, hoje com 58 anos, o que mais aprecia na experiência é o “trazer-me para um registo diferente do habitual. Aumenta a capacidade auditiva, é muito agradável, é uma forma de estar diferente”.
Em entrevista concedida à Notícias Magazine em 1998, José Sócrates, então ministro com a pasta da toxicodependência, depois de ter revelado que aos vinte anos frequentara os coffee-shops de Amsterdão, respondeu da seguinte forma à pergunta “E experimentou cannabis?”: “Aaa… Se experimentei ou não? Espere aí. Oiça, eu não quero responder a essa pergunta, acho que não tem relevância para a matéria. Eu fui um jovem da minha época”. Se não parece mesmo a formulação nacional, palavrosa e tortuosa, do clintoniano “Fumei mas não traguei”…
O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.
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