“Se vir esta Planta, Destrua-a!” [OnJack. Ed. 236#]

Entretanto, constatada a facilidade de se cultivar cannabis ao ar livre num clima moderado como o nosso, gerara-se o hábito de plantar a “erva angolana” em quintais e varandas para consumo pró­prio; era possível fazê-lo com certa tranquilidade, visto a planta ser virtualmente desconhecida em Portugal. Mas tudo mudaria em 16 de Agosto de 1976, quando, num comunicado do Ministério da Justiça, a RTP divulgou imagens de um pé de cannabis e da sua característica folha, acompanhadas da legenda: “Se vir esta planta, destrua-a” Sob o mote “O Flagelo da Liamba” iniciava-se a segunda cam­panha antidroga em Portugal.

 

Os resultados foram imediatos. A par­tir do dia seguinte à divulgação das imagens da cannabis na televisão, as autori­dades não tiveram, segundo o vespertino A Capital, “um minuto de descanso a acorrer a todas as solicitações de popu­lares que aqui e ali vão detectando novas plantações, umas mais vastas, outras em simples e ‘inocentes’ vasos colocados à janela” Centenas de plantações ou pés de cannabis foram denunciados em todo o país; a acreditar na imprensa da época, o Porto e os seus arredores, em particular, estavam a transformar-se “em verdadei­ros quintais de liamba”. O cronista Carlos Cascais foi dos poucos a subtrair-se à histeria reinante, perguntando ironica­mente na revista Flama: “Que outra planta parece querer tornar-se tão popu­lar como a sardinheira?”

Em 1973, avança-se com a estimativa de “exis­tirem em Portugal cerca de 400-500 casos de droga­dos” (inquérito de Carlos Plantier, Século Ilustrado, 26/5/75); três anos depois, em 1976, fala-se de “mais de 100 mil drogados e cerca de 20 mil plantações de liamba” (Vida Mundial, 26/8/76). Embora nada rigorosos, estes dados testemunham o crescimento explosivo do consumo de derivados de cannabis em Portugal.

Registre-se que a desculpa mais frequentemente apresentada para a plantação caseira de liamba era a obtenção de sementes para a alimentação de pás­saros.

Valores mais altos se alevantavam, de novo — encarnando o conceito de dro­ga, a cannabis tornara-se, para o regime democrático, o arqui-inimigo que o comunismo fora para o salazarismo. Assim se explica que, apesar de não terem decorrido ainda dois anos sobre o 25 de Abril e a extinção dos “bufos” da PIDE, este regresso à política de denúncia de cidadãos praticamente não tenha levantado protestos. Pelo contrário: um ves­pertino lisboeta indignou-se com o fato da brigada de estupefacientes da Pj, em vez de se dedicar exclusivamente à inves­tigação de denúncias de cultivo de cannabis, estar “a ser, inexplicavelmente, ocupada com serviços de bombas e explosivos”.

Diz uma das poucas vozes dissonantes com relação à campanha “O Flagelo da Liamba” publi­cadas na imprensa da época: “O que se consegue com esta saloia campanha anti-droga? A) Despertar o polícia que há em cada português. Será o objeti­vo da questão suficientemente fundamental, sufi­cientemente nacional? Por que não ocorreu às autoridades utilizar este faro detetivesco da po­pulação para desmontar a rede bombista ou para procurar os pides que fugiram? B) Fazer crer que o problema número 1 do país reside nesses pés de liamba que crescem nalguns quintais e que este se resolve arrancando-os. C) Fazer tomar o todo pela parte, identificando ‘droga’ com o cannabis ou liam­ba”. (Júlio Henriques, Expresso, 3/9/76)

Resultante deste sobressalto, ia iniciar-se um novo ciclo na difusão do consumo de cannabis em Portugal — a partir desta altura, o uso da resina prensada de cannabis, o haxixe, começou a tornar-se do­minante entre nós em detrimento da erva. De fato, por um lado, com a cessação do fluxo de repatriados estancara a entrada de marijuana africana em Portugal; por outro, a campanha “O Flagelo da Liamba” fizera esfriar drasticamente entre nós o entusiasmo pelo grow your own. Já se per­filava, porém, num horizonte pouco longínquo a alternativa para satisfazer o crescente apetite dos lusitanos pelo THC — Marrocos, onde a produção de haxixe é milenar, e de onde, aliás, já chegavam pequenas quantidades do derivado de cannabis proscrito no Ocidente. E cada vez mais haxe marroquino começou a ser contrabandeado para Portugal, primeiro por entusiastas destemidos para consumo próprio e de amigos; com o tempo, o abastecimento passaria para as mãos de redes de traficantes profissionais.

Segundo dados do Ministério da Justiça, atual­mente cerca de metade do haxixe introduzido em Portugal (46% em 1995) provém de S. Tomé e Príncipe.

A partir da década de 1980, tornou-se claro que o acéfalo moralismo antidroga do governo português gerara um mons­tro — as autoridades estavam completa­mente desacreditadas quando ocorreu uma explosão no consumo de heroína entre a juventude. Duas décadas depois, em 2002, a jornalista Isabel Stilwell observou a propósito: “Se as campanhas dizem que os charros matam tanto como a heroína, o resultado pode ser que quando eles [os miúdos] percebem que isso não é verdade para os charros, assumam que também não o é no caso da heroína” E, de fato, está por apurar até que ponto milhares de jovens portu­gueses se viciaram em heroína nos anos 80 devido aos efeitos perversos da desin­formação com que as autoridades ater­rorizaram a população durante anos a fio, equacionando a inócua cannabis com o mal absoluto dos nossos tempos, a droga. Refletindo esta nova e dramática realidade, operou-se uma alteração se­mântica na palavra “droga” que deixou de ser sinônimo de cannabis e passou a sê-lo de heroína. (Data também desta altura a substituição da palavra “toxico­mania” por “toxicodependência”)

Sobre os efeitos do proibicionismo, o comenta­dor Alexandre Melo escreveu no Expresso de 8/7/00: “Depois de décadas de repressão — cada vez mais dispendiosa — os resultados do proibicionismo são tão devastadores, na sua monstruosa perversidade, que, hoje em dia, antes de poder tratar os problemas provocados pelas drogas é preciso resolver os pro­blemas provocados pela proibição”.

Agora que o combate ao “flagelo da droga” assentava as suas baterias noutra substância ilegal, o expediente encontra­do para legitimar a continuada proibição da cannabis — agora promovida a “droga leve” — foi a designada “teoria da escalada”, segundo a qual o charro é o pri­meiro passo num caminho que leva inelutavelmente à “droga dura” heroína.

A PJ considera que a teoria da escalada é validada por uma estatística que a instituição apurou, segundo a qual nos crimes contra a propriedade, no­meadamente o furto e o roubo, 91% dos implicados que já tinham experimentado heroína iniciaram-se nas drogas ilícitas pelo haxixe — uma ilação pouco evidente a retirar dos dados da PI pois, segundo a mesma fonte, no momento do delito a droga consumida em 98% dos casos era a heroína.

Foi assim que, após uma breve e vis­tosa fase inicial, o consumo de derivados psicoactivos de cannabis, ofuscado pela heroína, adquiriu em Portugal um extraordinário low profile (ao contrário, por exemplo, dos Estados Unidos, onde o uso de marijuana pela geração dos sixties se tornou um cliché nacional). Sendo a enorme maioria dos fumadores de can­nabis aquilo que a retorcida gíria proibicionista designa de “consumidores não-problemáticos” este setor da sociedade lusitana esbateu-se na paisagem social quando, na representação popular do drogado, o freak, herdeiro do hippie, deu lugar ao junkie, o toxicodependente.

Em 2000, um pouco como quem descobre a pól­vora, escreve-se na imprensa nacional: “Os consumidores ocasionais existem. Constituem a maioria dos consumidores de drogas, mas não arrumam carros nem roubam para pagar a ‘dose’. Estudam, trabalham, casam, têm filhos. São invisíveis e querem continuar a sê-lo, pelo menos enquanto o consumo for penalizado”. (Notícias Magazine, 18/7/00)

Certo é que o tabu sobre o uso de cannabis tem-se mantido firme em Por­tugal — apenas em 1990 consegue en­contrar-se, em letra de imprensa, uma descrição “por dentro” dos efeitos da gan­zá; ainda assim, apesar da ousadia ter sido cometida numa publicação de pendor alternativo e irreverente (o jornal grátis portuense Metro), o autor Paulo Abru­nhosa preferiu ocultar-se por trás de um óbvio pseudônimo. Escreveu, pois, Timó­teo Lírico sobre o efeito do haxixe que este “pode traduzir-se em transformações aleatórias da percepção e é suscetível de conduzir o utilizador a uma descida à sub­jetividade do pormenor, à textura do prazer e à obnubílação relativa do mundo exterior. (…) No mais, também tem sido pretexto para relaxar ou estimular a mente ou o corpo, redefinir os sentidos ou erotizar o amor, enquadrar um pôr do sol em perspectivas diferentes, estender o espaço dos universos interiores, teorizar a razão de não fazer nada ou exibir a evidência de uma figura de estúpido”.

Dos anos 90 em diante, assistiu-se ao reemergir da cannabis em Portugal, para surpresa de quem pensara que a aprecia­ção da erva e do haxixe era um fenô­meno datado, ligado às gerações de 60 e 70. Para além da sua presença previsível na “renascença psicodélica” que começa­va então a ganhar visibilidade entre nós, a aura de transgressão e rebeldia da can­nabis ajudou à sua adoção pelas cultu­ras alternativas, entretanto surgidas, do hip hop ao trance. Com a folha da erva elevada à condição de bandeira-logotipo informal de um leque de estilos de vida alternativos e/ou radicais, pode a partir de então falar-se de uma assumida cannabis culture em Portugal, com vertentes políticas, ambientais e espirituais (como é o caso do movimento reggae). E, na so­ciedade em geral, o cálculo dos que já ex­perimentaram cannabis chega aos 30% da população adulta portuguesa…

É incontestável que não faltam consumidores de haxixe em Portugal. Aplicando-se parâmetros definidos pelas Nações Unidas (o volume de droga confiscada representa 10 a 15 por cento do total da movimentada) a dados recentes fornecidos pela 1’ohud Judiciária em 2000 as autoridades portu­guesas apreenderam 30 toneladas de haxixe, com um recorde de 52 toneladas em 1996), chega-se à estimativa de que no início deste milênio, circula em Portugal pelo menos uma tonelada de hashish por dia.

Entretanto, os fumadores de cannabis lusitanos começam a assumir-se. Prova-o o artigo “Consumidores de Haxixe Dão a Cara” publicado em julho de 2000 na Notícias Magazine, onde cinco portugue­ses “consumidores ocasionais” de haxixe e marijuana falam livremente da sua re­lação com o fumo da cannabis. Por exemplo, para o realizador cinematográ­fico Rui Simões, hoje com 58 anos, o que mais aprecia na experiência é o “trazer-me para um registo diferente do habi­tual. Aumenta a capacidade auditiva, é muito agradável, é uma forma de estar diferente”.

Em entrevista concedida à Notícias Magazine em 1998, José Sócrates, então ministro com a pasta da toxicodependência, depois de ter revelado que aos vinte anos frequentara os coffee-shops de Amsterdão, respondeu da seguinte forma à pergunta “E experi­mentou cannabis?”: “Aaa… Se experimentei ou não? Espere aí. Oiça, eu não quero responder a essa pergunta, acho que não tem relevância para a ma­téria. Eu fui um jovem da minha época”. Se não pa­rece mesmo a formulação nacional, palavrosa e tor­tuosa, do clintoniano “Fumei mas não traguei”…

O OnJack publica, semanalmente, trechos da tradução do livro de Jack Herer, The Emperor Wears no Clothes.