Psiquedélicos e psicopatologia: um olhar sobre a atenção

por Fernando Beserra

Pablo painting 2Para refletir sobre os enteógenos, psicopatologia e psicologia geral, é necessário um foco. Para começar o objetivo deste post, obviamente não é colocar o uso de enteógenos no rol dos transtornos mentais, pelo contrário, este foi um abuso cometido logo quando começou a se rediscutir, no ocidente fora dos povos originários, o uso dos enteógenos. Preciso sinalizar que ao longo de séculos de farmacopéia cristã tradicional, os usos tradicionais de enteógenos foram excluídos não apenas na queima das ditas bruxas, mas também da própria presença do discurso. Considerados crimes que atentavam contra o Espírito Santo, sequer se podia falar ou cogitar em divulgar qualquer informação sobre os enteógenos, informações esta logo alvo de queimas e desaparecimentos.

Vários enfoques são possíveis para abordar o tema dos psiquedélicos e da psicologia geral e da psicopatologia, vamos focalizar quatro particularmente produtivos para uma análise crítica:

  1. Análise terminológica;
  2. Análise da atenção;
  3. Análise da senso-percepção e/ou transtornos da representação;
  4. Análise do pensamento ou transtornos do juízo.

 

A psicopatologia é uma disciplina autônoma, embora normalmente relacionada à psiquiatria e, mais recentemente, à psicologia. O nome psicopatologia significa, por sua etimologia: psico, de psykhé (alma, mente) + pato, de pathos (paixão, doença) + logia de logos (estudo, discurso, razão), portanto, psicopatologia é o estudo das doenças da mente ou, por outro entendimento, o discurso sobre as paixões da alma. O termo patologia, resultado da união de duas palavras gregas, tem o uso datado de 1813, em francês, pathologie, de acordo com o Dicionário de Etimologia

No que concerne a análise terminológica já ganhou destaque aqui na coluna Portas da Percepção, a crítica a utilização do termo alucinógeno para se referir as substâncias psiquedélicas ou visionárias em geral e, neste plano, inclui-se a maconha.

Vamos nos focar neste post no segundo ponto, i.é, a análise da atenção. Por atenção compreende-se a “quantidade de esforço exercido para se concentrar em determinadas partes de uma experiência; capacidade de manter o foco em uma atividade e se concentrar” (KAPLAN e SADOCK, 2010). A atenção possui um campo, chamado de campo de atenção, que consiste na área de atenção que o ato intencional delimita em relação ao conteúdo da consciência. Além disso, segundo Eugen Bleuler, a atenção possui duas qualidades, a vigilância e a tenacidade. A tenacidade é a capacidade de a pessoa manter o foco da atenção em um único objeto ou estímulo, enquanto a vigilância é a capacidade do sujeito alterar o foco da atenção mediante novas estimulações ou por um ato intencional.

Dito isto, cabe perguntar: mas, afinal, o que ocorre sobre a atenção quando alguém utiliza um psiquedélico?

De modo geral, parece que existem algumas distintas possibilidades, que poderiam ser mais bem apresentadas em um texto mais longo e abrangente. Mas, resumidamente, creio que se podem observar casos onde ocorre uma hipervigilância e uma hipotenacidade, isto é, a pessoa fica extremamente focada na presença de suas fantasias, carregadas (catexia) de grande carga emocional. Ocorre o que chamamos comumente de mirações, isto é, a presença de imagens carregadas de forte conteúdo afetivo e muitas vezes com qualidades de cores e formas muito nítidas. Diante de diversas imagens e de mudanças rápidas destas imagens, a pessoa fica em um estado contemplativo e sua atenção perde a capacidade de concentração, isto é, perde-se o centro. Isso não necessariamente é ruim, na medida em que estas imagens podem ser bastante agradáveis e revelar uma série de informações para o auto-conhecimento do psiconauta. Esta ampliação do conhecimento de si pode ocorrer, especialmente, se o psiconauta for capaz de se concentrar, se centrar, sobre as imagens que vivenciou durante o estado não ordinário de consciência.

No entanto, este não é o único modo possível de condução da função psicológica que denominamos atenção. A atenção, durante o estado visionário, também pode se manter hipertenaz e hipovigil, isto é, diante da presença de uma única imagem ou de um colorido muito especial concentrado pela pessoa na interação com um objeto, a pessoa pode ficar absolutamente concentrada em um único estimulo. P.ex, se vejo na minha miração um Deus construindo o próprio universo, é bem possível que eu fique totalmente alheio aos fenômenos a minha volta, mesmo que gritem comigo, pela necessidade interior de se concentrar sobre aquela interação impressionante. Neste sentido, o afeto que ocorre é fundamental para a hiper-concentração. É muito simples imaginar um caso mais corriqueiro deste mesmo fenômeno. Pessoas introvertidas, muito focadas nas suas fantasias, ficam bastante alheias a acontecimentos externos que as pessoas extrovertidas às vezes acham muito relevantes, p.ex, perdem chaves de casa, esquecem o ônibus que deveriam pegar, começam a andar e se esquecem para onde iam, etc, etc. Isso não é, necessariamente, um sinal de uma memória debilitada ou seqüela, mas pode ser também uma característica da introversão da energia psicológica, quando direcionada para os encadeamentos psíquicos, sejam pela atenção à fantasia ou a conteúdos de devaneios.

Pessoas com atitude extrorvertida durante uma trip também podem ter a tal hipertenacidade. Neste caso, ao invés do foco em imagens internas, as percepções “externas” tomam outro colorido, resultando em mudança no foco da atenção. Se comumente prestamos atenção em elementos mais racionais e encadeamentos lógicos de pensamentos, durante a trip pode ocorrer que a atenção se volte a pequenos detalhes como um tipo especial de iluminação solar em uma folha, que parece agora totalmente diferente, ou podemos nos voltar para novas sensações corporais que nunca tínhamos percebido.

Para irmos além nesta discussão, seria necessário nos alongarmos ainda nas mudanças qualitativas que ocorrem durante uma viagem psiquedélica no que concerne às representações e a senso-percepção, mas hoje vamos ficar por aqui.

E vocês, digam aí, durante as trips como muda o foco de atenção de vocês ou o que vocês já identificaram neste sentido?