O germinar de um novo mundo – Reflexões da minha visita ao Uruguai!

por Sérgio Vidal

Desculpem pela ausência da última semana. Não pude escrever o texto para nosso encontro semanal por que estava numa missão muito especial. Pela primeira vez na vida saí do Brasil e fui conhecer logo o país dos sonhos para qualquer pessoa com o mínimo de interesse pela Cannabis Sativa: o Uruguai. Primeiro país do mundo a aprovar a implantação de uma regulamentação total dos usos da planta, o Uruguai é alvo dos olhares de pessoas do mundo todo interessadas do futuro da Cannabis no país e em quais serão os reflexos dessa experiência em outros países.

Saí de São Paulo no dia 16, quinta-feira, e em pouco mais de 2 horas pousávamos no Aeroporto de Carrasco, em Montevidéu, eu e Renato Mota, da empresa de fertilizantes Photogenesis. Nos dois primeiros dias, procuramos endereços, fizemos contatos e marcamos encontros. No sábado encontramos Julio Rey, presidente da Federação Nacional de Cultivadores de Cannabis do Uruguai, na estação rodoviária Tres Cruces. Ele nos levou para conhecer a sede da Rede de usurários de drogas y cultivadores de cannabis do Uruguai , uma associação sem fins lucrativos que promove redução de danos. O espaço funciona numa casa ampla, simples e aconchegante, em um bairro periférico de Montevídeu e serve como centro de convivência para usuários que cultivam cannabis para uso pessoal. Na casa moram Álvaro e Luz Cannabica, pai e mãe de Antu, um menino de 1 ano e 8 meses que me ensinou que a frutinhas que estavam nos cachos da árvore que fazia sombra em nós durante o almoço podiam ser comidas. Sem falar nada, ele puxava minha blusa e apontava as frutinhas. “Ele está te convidando a provar. O pai ensina tudo o que pode comer e o que não pode comer no jardim”, me disse Luz. Nesse espaço eles promovem oficinas de cultivo sobre os mais variados temas, desde como produzir mudas para perpetuar uma genética até como prevenir e tratar diferentes pragas. No domingo visitamos novamente a associação e eles nos presentearam com um almoço e nos levaram para conhecer o Candombe, uma manifestação cultural típica do Uruguai, com aproximadamente 200 anos, surgida a chegada dos primeiros escravos de África.

Segunda-feira, às 11 da manhã fomos encontrar um amigo que conheci ainda em 2012, em Salvador, por ocasião do encontro da Rede Latino Americana de Pessoas que Usam Drogas. Na época, Juan Vaz era presidente da Associação de Estudos da Cannabis do Uruguai, atualmente coordenada por sua esposa, Laura Blanco. Hoje Juan está à frente de um escritório especializado em auxiliar empresas que queiram entrar no mercado da Cannabis no Uruguai. Juan nos explicou que há muito mercado para empresas do ramo que não necessitam de licenças especiais para lidar com a Cannabis, como as que produzem fertilizantes, ou outros produtos relacionados com o cultivo, beneficiamento ou outra etapa do mercado. Segundo ele, inclusive há muita disposição do governo para facilitar os investimentos no país. Ele nos explicou que o governo será bem rígido com relação à produção e comércio para fins recreativos e as possibilidades de entrar nesse mercado como produtos ou comerciante são mínimas. As licenças para produção para fins recreativos serão bem limitadas e o comércio só ocorrerá em farmácias autorizadas. Essa etapa da legalização começa em março. Mais próximo de julho, inicia o processo de regulamentação do cultivo, beneficiamento e comercialização do uso medicinal, cujo controle de mercado será mais flexível, já que o destino é para a demanda dos médicos e pacientes. A regulamentação dos usos industriais das fibras e outras partes não psicoativas da planta se inicia mais próximo do final do ano. Enquanto Juan me explicava isso e muitas outras coisas a minha mente se abria para uma experiência que não tem retorno. Imaginar o mercado regulamentado de uma planta que considero tão importante para a humanidade dentro do escritório de empresa formalizada, no primeiro país do mundo a legalizar a maconha. Visitar Juan e ouvir seus ensinamentos sobre as Leis e Políticas, sobre as primeiras empresas que estão interessadas no mercado e em como o governo está pensando em lidar com tudo isso, me fez retomar as esperanças de que o mundo realmente pode se tornar como eu sonho que ele deva ser. Sai do escritório bastante feliz com as novas dimensões por onde expandir o pensamento sobre a Cannabis e o futuro das relações dos seres humanos com a planta.

Terça-feira visitamos a loja Urugrow, primeira do país especializada em cultivo de Cannabis e conhecemos 2 dos 3 sócios proprietários. Conversamos muito sobre a cena de cultivo local e sobre a Copa Canábia do Uruguay. Juan e Jonathan ganharam as copas em 2012 e 2013 e as taças ficam decorando a prateleira da loja com orgulho. À noite recebemos no albergue onde estávamos hospedados a visita de Martin, ativista da associação Pro Derechos que trabalha com diversos temas relacionados com Direitos Humanos, e de um amigo seu. A turma do albergue estava fazendo um asado (Churrasco) no terraço, também uma tradição no Uruguai e ficamos conversando durante um bom tempo. Martín me explicou que a vitória da legalização se deveu principalmente à unificação de muitas lutas de diferentes minorias, algo que o Julio já havia me falado um pouco numa conversa que tivemos na sede da Rede de Usuários e Cultivadores. Segundo Martín, todo o esforço de diferentes grupos ligados à defesa da liberdade sexual/afetiva, sindicatos e diferentes grupos de minorias tiveram diferenciados papéis nesse processo. Ele afirma que a luta foi de diferentes setores que se encontram unidos pela defesa das liberdades individuais.

Na quarta à noite, antes de embarcarmos de volta encontramos novamente Juan. Ele e sua esposa foram nos pegar no albergue e caminharam conosco até próximo da estação Tres Cruces, onde comemos algo e tomamos um ônibus até o aeroporto para retornar ao Brasil. Durante todo o momento em que estivemos juntos nessa noite conversamos sobre muitas coisas. Juan nos contou que já ganho diferentes copas, especialmente na categoria concentrados e nos falou como atualmente seus conhecimentos sobre a planta estão sendo valorizado por empresas legalizadas. Laura nos explicou um pouco como funciona a Copa Canábica do Uruguay, que é organizada pela Associação que ela preside.

Enquanto aguardava no aeroporto para retornar ao Brasil, só conseguia pensar em quantos anos de luta foram necessários para chegar nesse momento onde todos estão sendo legitimados por terem um conhecimento que há alguns meses era considerado clandestino. O Juan, por exemplo, já foi preso por lutar pela legalização e defender o cultivo. Passou 7 meses preso e durante esse período chegou inclusive a ser esfaqueado. Quantas outras pessoas sofreram repressão de diferentes tipos até que o Estado Uruguaio decidisse que a maconha deveria ser legalizada? Durante o voo, fiquei pensando, a partir de que minuto estaria ultrapassando a fronteira brasileira? Em qual instante deixei de estar no território onde a partir de março desse ano, a maconha será legalmente vendida nas farmácias para qualquer cidadão e passei para um onde quem vende maconha pode pegar até 15 anos de prisão?

As fronteiras são invisíveis aos olhos, mas guardam diferenças que podem transformar completamente a realidade de milhões de pessoas. Sonho com o dia em que o Brasil tenha um mínimo de maturidade para iniciar uma experiência semelhante com a que está ocorrendo no Uruguai. Só espero que esse dia não demore a chegar e que até lá o mínimo de pessoas sofra com as consequência nefastas dessa proibição absurda.

*Antropólogo, Redutor de Danos e Cidadão Ativista engajado na construção de um Brasil com leis e políticas públicas sobre maconha e outras drogas mais humanas e eficientes.