A importância do cânhamo na vida das populações portuguesas da Idade Média é dramaticamente ilustrada pelo fato de, à época, haver camponeses transmontanos que se dedicavam com tal afinco à sua produção que desleixavam as culturas, vitais para a sua subsistência, dos cereais e da vinha.
É o que atesta uma carta enviada a D. Afonso V pelos homens-bons da vila transmontana de Torre de Moncorvo, na qual dão conta ao rei dos problemas locais, e que a dado passo diz: “[E]m esta villa ha huna rribeyra que chamam a Vallariça na quall os homees lavram muytos linhos alcanaves aalem do razoado em tall guisa que per aazo do dito linho lavrarem tanto vêem a adoecer e morrem ante tempo. Outro ssy per este aazo do dito linho lei-xam morrer as vinhas e leixam de lavrar ho pam e a terra vaysse a monte”. E, como forma de garantir que os camponeses cultivassem trigo suficiente para a sua alimentação, na missiva a D. Afonso V os homens-bons moncorvenses sugerem a aplicação de multas a “qualquer que lavrar nem semear mays que ataa dez alqueires de linhaça”.
Desconhece-se se esta pretensão foi atendida pela coroa portuguesa.
Fonte: Capítulos especiais dados a Moncorvo por D. Afonso V, citados na Illustração Transmontana, 2″ Ano, 1909.
QUANDO EM PORTUGAL ATÉ OS PADRES ERAM OBRIGADOS A CULTIVAR CANNABIS
As leis humanas são muito mudáveis. Em 1656 o Estado português obrigava os povos da Comarca de Moncorvo e das Comarcas vizinhas a cultivarem a liamba.
— Telmo Verdelho em “A Cultura do Cânhamo em Moncorvo” 1981
Os decretos reais conhecidos por Regimentos que, no século XVII, foram aplicados às feitorias do linho cânhamo de Torre de Moncorvo, Santarém e Coimbra eram taxativos — dada a importância crucial da matéria-prima em causa para o império marítimo português, ao cultivo da cannabis estavam obrigados não apenas os lavradores mas todos os terrate-nentes das regiões em causa, qualquer que fosse a sua condição social.
Assim, no Regimento que S. Mages-tade manda que aja na feitoria do linho cânhamo da cidade de Moncorvo, para que os officiaes delia saibão a obrigação, que devem guardar, publicado em 1656, el-Rei D. João IV explicita: “(O cultivo de cânhamo é rnandatório quer] as terras sejam minhas, ou de particulares a quem eu as tenha dado, ou próprias e patrimoniais de quaisquer meus vassalos, ou sejam Duques, Marqueses, Condes fidalgos do meu Concelho e Casa, Desembargadores e Cavaleiros do Hospital de São João e de nosso Jesu Cristo e mais ordens militares e de outras pessoas isentas e privilegiadas que pretenderem serem escusas de semearem linhaça cánha-ma. Hei por bem e mando, que para este efeito não usem as tais pessoas dos ditos privilégios nem outros quaisquer que sejam”.
E para não restarem dúvidas de que todos os privilégios eram abolidos, e não apenas os decorrentes da ordem terrena, no capítulo 24 do Regimento de Moncorvo, D. João IV sublinha que até mesmo os membros das classes eclesiásticas deviam sujeitar-se ao imperativo de plantar cannabis, “visto ser negócio encaminhado ao serviço de Deos, conservação e augmento da Fé catholica, aprestandose com as enxárcias, Armadas contra Infieis’”.
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