Maconha? Come antes uma peça de fruta

por Hugo Gonçalves

morangos4No Brasil, o popularíssimo Tropa de Elite contribuiu para a narrativa da culpa do consumidor de canábis. Numa cena do filme, um negro, de origem humilde, polícia e estudante de Direito, perde a cabeça com os colegas brancos da PUC (universidade onde estudam os mais afortunados) e dá-lhes uma lição de moral: a classe média/alta, ao fumar maconha, apoia e financia o tráfico. Há quem, de facto, se sinta culpado por fumar erva da Rocinha, sem, no entanto, pensar muito nas condições de vida de quem faz os seus telemóveis e a sua roupa.

Hoje, com a quantidade de estudos sobre o canábis, bem como aquilo que sabemos do negócio do tráfico e da corrupção da polícia (cúmplice dos traficantes e fortemente repressora dos consumidores, a quem gosta de bater e de extorquir), usar a culpa como estratégia é como dizer que a masturbação faz borbulhas.

É preciso esclarecer – alguns não sabem – que o canábis não é uma droga que, como mostravam anúncios dos anos 1950, nos Estados Unidos, enlouquece pessoas e as leva a atirar-se pela janela. Compare-se a erva com o álcool, uma droga legal, e percebe-se o manto de ignorância que caiu sobre ela.

Não se conhecem casos de morte por overdose de canábis. É fácil, porém, consumir doses letais de álcool. Segundo o Ministério da Saúde brasileiro, entre 2006 e 2010 morreram 40 692 pessoas por causa do abuso de drogas e doenças daí decorrentes – 84,9% das quais por causa do álcool. E não são precisos estudos para saber-se que as bebedeiras causam milhares de mortes na estrada e são combustível para a violência. O alcoolismo é um vício que apodrece o corpo, que destrói famílias, que instiga crimes, que provoca doenças cardiovasculares e cancro, custando assim milhões ao Estado.

Sim, o canábis pode prejudicar a saúde – cancro do pulmão, por exemplo -, mas os danos são bastante menores, além de ter várias propriedades terapêuticas. Se excluirmos os assaltos ao frigorífico por causa da larica, é razoável dizer que a violência não está associada à erva, tampouco a desestabilização social ou o crime violento.

Sabemos que o tabaco, o álcool e os medicamentos matam muita gente – ao contrário da erva. No Brasil, morrem por ano cerca de 20 mil pessoas por causa da automedicação. Nos Estados Unidos, anti-inflamatórios, como a aspirina ou o ibuprofeno, causaram a morte de 7600 pessoas.

Todos os dias, na comida, ingerimos substâncias legais muito mais nocivas do que o canábis. E não se veem polícias a algemar quem come fruta com agrotóxicos e frangos minados de antibióticos.

Jogada por terra a hipocrisia do argumento da preocupação do Estado com os cidadãos e a paz social, é importante esclarecer duas coisas:

1) Quem fuma erva não precisa que ela seja legalizada para fumar. Perguntem a qualquer consumidor se é fácil adquiri-la. Todos dirão que sim. Os melhores motivos para a legalização não são egoístas, nem resultam de um delírio de hippies procrastinadores, mas têm em vista o que é melhor para a comunidade – redução da corrupção, do tráfico e da violência que ele provoca, além dos milhões arrecadados em impostos sobre um produto que seria regulado e de venda controlada.

2) Muitas pessoas que passam pela vida do leitor deste jornal – médicos, advogados, professores, etc. -, gente com filhos, respeitada, que paga impostos e recicla o lixo, também fuma ou já fumou charros. Steve Jobs fumou, Carl Sagan, Oprah Winfrey e Bill Gates também. Não se trata de uma sociedade secreta de gente que degenera quando fuma. E se tantas pessoas de sucesso, estáveis, com carreiras e famílias, o fazem sem destruir nada ao seu redor, talvez seja hora de aceitar que fumar charros é tão convencional – e menos nocivo – como beber um whisky depois do jantar.

Este tipo de argumentação não funciona no Brasil ou na maior parte do mundo, onde mitos, desconhecimento, interesses económicos e burrice religiosa (jamais os evangélicos permitirão a legalização) continuam a valer mais do que a razão. No Rio, ser apanhado pela polícia com um charro é motivo para sérias preocupações. No entanto, parece que parte do país atravessa a vida graças ao Rivotril, um ansiolítico que exige prescrição e que os farmacêuticos apelidam de “tarja preta” (cinturão preto, muito forte). O Rivotril foi o medicamento mais vendido no Brasil em 2013.

Fumar charros, além de crime, é financiar o tráfico, mas se a droga (potente) for produzida por farmacêuticas – essas empresas impolutas, em momento algum causadoras de sofrimento e de morte -, então, trata-se apenas de uma forma amplamente aceite para lidar com a ansiedade dos dias que se seguem uns atrás dos outros.

P.S. – Na crónica da próxima semana: como a liberalização da maconha poderia diminuir o tráfico, a corrupção na polícia, aliviar a situação selvagem das prisões brasileiras e encher os cofres do Estado.