Laranja, Limão e… DMT! [Portas da Percepção Ed. 284#]

por  Fernando Beserra

Pesquisas dos anos de 2012 e 2013, publicadas no Journal of Agricultural and Food Chemistry, demonstram algo que poderia ser, à primeira vista, surpreendente: substâncias cítricas como limão e laranja contêm traços de Dimetiltriptamina (DMT) e 5-Hidroxi-N¹N-DMT (Bufotenina). A triptamina DMT é o principal princípio ativo do chá da ayahuasca, conhecido também no Brasil pelos nomes de Daime, Hoasca, Vegetal, dentre outros. A ayahuasca, como os leitores aqui do Portas da Percepção tem plena consciência, é uma substância enteogênica ou psicodélica.

 

Constata-se a curiosa situação: a décima segunda substância, na lista de substâncias psicotrópicas da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), é o DMT. Portanto, o DMT é uma substância proibida no Brasil e, por conseguinte, categorizada como “droga” em território nacional, em acordo com a lei 11.343/06. O uso permitido do DMT é o uso religioso [no caso da ayahuasca], conforme regulamentação da Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (SENAD).

A situação coloca os limões e laranjas em situação análoga a das sementes de Argyréia nervosa, Ipomoea violácea e Rivea corymbosa, que contém LSA. Enquanto o LSA é substância proibida (pela mesma portaria que proibiu a Salvia divinorum), as plantas que contém LSA não são proibidas, o que permite o porte e o comércio de plantas e sementes. Nesta ambiguidade legislativa, muitos usuários de ayahuasca já foram reprimidos e mesmo presos. Caso fosse seguida esta lógica, os usuários de limão e laranja estariam expostos ao Artigo 28 da Lei 11.343/06, na qual se lê:

Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:

I – advertência sobre os efeitos das drogas; (nota minha: seria curioso. Acho que poderiam explicar os benefícios da vitamina C, por exemplo);

II – prestação de serviços à comunidade;

III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Já os comerciantes destas drogas, laranjas e limões, como os “traficantes” dos Hortifrutis, feireiros e demais vendedores ou produtores, ficariam expostos ao Artigo 33 da dita Lei:

Art. 33. Importar, exportar, remeter, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda, oferecer, ter em deposito, transportar, trazer consigo, guardar, prescrever, ministrar, entregar a consumo ou fornecer drogas, ainda que gratuitamente, sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar:

Pena – reclusão de 5 (cinco) a 15 (quinze) anos e pagamento de 500 (quinhentos) a 1.500 (mil e quinhentos) dias-multa.

Não precisaríamos ir tão longe, pois, com efeito, o DMT também está presente no cérebro humano e, possivelmente, é produzido de forma endógena. Todos portamos DMT e poderíamos nos entregar como criminosos na próxima delegacia de polícia.

Segundo a pesquisa, a laranja tem, em média, entre 0,03 0,05 mg/kg da substância proibida. A dose ativa do fármaco fumado ronda os 20 a 30 mg e tomado oralmente cerca de 50 mg (embora a dose oral, estabelecida no Phikal, seja de 350mg). Jonathan Ott, no Pharmacotheon, cita uma série de experimentos realizados para estabelecer doses mínimas e médias em distintos usos. O uso oral teria uma dose psicoativa mínima (com IMAO) entre 0,25 e 0,5 mg/kg, isto é, de 15 a 30 mg para uma pessoa de 60kg e 20-40mg para uma pessoa de 80kg. No entanto, há algo muito peculiar no DMT. Ao ser ingerido por via oral ele é destruído por enzimas da monoamonoxidase (MAO) no fígado e no intestino, de modo que não provoca seu efeito psicoativo de forma plena. Para que isso ocorra é necessário uso de inibidores de MAO (IMAO), como ocorre na mistura das folhas de Psychotria viridis e com o caule do Banisteriopsis caapi, tratando-se da ayahuasca. Uma alternativa conhecida é o uso das sementes de Pegnum harmala

Logo, haveria essa possibilidade de suco de laranja, em conjunto com IMAO, produzir o efeito psicodélico. E, pasmem, a famosa fruta maracujá contém beta-carbolinas com traços de IMAO.

O usuário que optasse pelo método de tomar sucos de laranja e maracujá para promover uma viagem, no entanto, teriam que se aventurar a consumir quantidades estratosféricas de suco, isto é, no mínimo, caso pese 60kg e tome laranjas com 0,05 mg/kg de DMT, seriam necessários 300 kg de laranja. Isso só para falar da laranja… No caso do IMAO, uma substância que tem quantidades altas do mesmo certamente não é o maracujá, mas a Peganum harmala.

Nos EUA a situação é ainda pior que no Brasil. Com os resultados da pesquisa mencionada, a laranja e o limão encontram-se em situação análoga, legalmente, por exemplo, a da heroína. A conclusão óbvia é: a Guerra as Drogas é uma piada sem graça!

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Artigos:

Servillo, L., Giovane, A., Balestrieri, M. L., Cautela, D., and Castaldo, D. 2012. N‑Methylated tryptamine derivatives in Citrus genus plants: Identification of N,N,N‑trimethyltryptamine in bergamot. Journal of Agricultural and Food Chemistry 60(37): 9512–9518. Epub 7 Sep 2012. http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/jf302767e

Servillo, L., Giovane, A., Balestrieri, M. L., Casale, R., Cautela, D., and Castaldo, D. 2013. Citrusgenus plants contain N‑methylated tryptamine derivatives and their 5‑hydroxylated forms.Journal of Agricultural and Food Chemistry 61(21): 5156–5162. Epub 17 May 2013. http://pubs.acs.org/doi/abs/10.1021/jf401448q

Reportagem sobre as pesquisas:

The Nexian

Lista de substâncias de uso proscrito no Brasil: AQUI

Outros posts sobre Ayahuasca no Hempadão:

Breves palavras sobre a ayahuasca – parte I

Breves palavras sobre a ayahuasca – parte II

Breves palavras sobre a ayahuasca – parte III

Análogos da ayahuasca

Estudos sobre a ayahuasca – enteogenia brasileira

Psicóloga presa com DMT

Encontro: ayahuasca e o tratamento da depressão