Inflexões sobre a loucura

por Gabriel Vilella [1]

Sempre que converso com alguém sobre o tema drogas e comento sobre as experimentações com psicodélicos, aquele que desavisado ouve, se espanta. Olhos arregalados e sobrancelhas suspensas reagem das mais diversas maneiras, ora torcendo o nariz, ora curioso e por vezes surge a pergunta, ‘mas como é?’, ‘O que sente?’. Dada às devidas explicações do que costumo sentir e coisa do tipo, o espanto continua… Mas corre risco de ficar louco? De se jogar da janela? Vi um vídeo no youtube… Eis aí uma questão que me ronda há tempos, afinal, já ouvi histórias também. Pesquisei e encontrei um monte de artigos sobre o tema. Muitos das décadas de 50 e 60 quando as pesquisas ainda eram permitidas, e me dei conta de uma coisa nesse processo, de outra loucura, mais preocupante até.

Ela começa com as nossas rotinas. As rotinas são mais ou menos realizadas em compartimentos, em compartimentos casa, compartimento transporte, compartimento baia de trabalho, compartimento família, compartimento educação (que te estrutura para outros compartimentos), compartimento internet (mesmo achando que essa é imensa). Planejamos inclusive carreiras que nos deem espaço para outros compartimentos e por ai vai… caixas e caixas sobre caixas. Estamos nessa há tempos, alguns prodigiosamente arranjam meios de estar fora da caixa, mas de maneira geral somos cada vez mais encaixotados, compartimentados, guiados. Nesse ponto me passa como um relâmpago: devo me preocupar com aquela loucura que os psicodélicos poderiam causar?

Sem conseguir responder à pergunta sigo cotidianamente a loucura da rotina. Mal dá tempo para pensar. Loucura hardcorede fazer mais com menos, sempre com menos! Algo que suga a saúde e por vezes, sem que possamos perceber, somos encaminhados para um limite, uma beirada. Ouvimos diariamente sobre essa beirada, dos estresses dessa vida, do infarto, do AVC, de como você pode morrer das mais diversas maneiras, mas pouco sabemos de como nos é difícil estar fora da caixa, fora daquilo que nos leva a esses riscos. Ainda sim, lá em cima no texto, alguém entendendo não estar louco me pergunta se corria o risco de enlouquecer e não de ter infarto ao ingerir psicodélicos ou de fazer um AVC.

Há algo com o tema da loucura que nos curto-circuita. Ficamos apavorados com essa possibilidade! Frente à doideira que pode ser uma experimentação psicodélica (salvo aqui as diferenças entre essas doideiras), nós trememos, nos desconcertamos, pensamos uma, duas, três vezes! E devemos fazê-lo, é prudente… Mas pera lá, né! Cabe pensar um pouco em todo o contexto que estamos inseridos e marcar a diferença entre essas loucuras: uma a qual você já está até o pescoço, que tem põe em caixas sem que você escolha, já a outra, que pode te tirar das caixas e te colocar em outros movimentos (penso aqui um uso cuidadoso como já abordado nessa matéria AQUI).

Esses outros movimentos são aqueles mais próximos aos movimentos que promovem a vida, uma reapropriação da saúde que te sugam. Um movimento religioso, no sentido de religare, de religação para com aquilo que rompe as caixas, com as pessoas ao seu redor, com a natureza que atropelamos no nosso cotidiano cinza, com a simplicidade das coisas… É sair para depois voltar, mas voltar diferente, com menos angústias², por exemplo. E quanto ao risco de não voltar? De ficar numa trip? Ainda que com estudos científicos inconclusivos, entende-se que seja extremamenteimprovável que você tenha uma reação psicótica transitória ou prolongada – um surto mais ou menos demorado – com uso de psicodélicos, com exceção daqueles com histórico de psicose ou do que chamam de pré-disposição à psicose (histórico de delírios, alucinações, etc.)¹ ³. Talvez seja mais fácil inclusive, o tal AVC ou infarto com estilo de vida encaixotado.

Não pretendo aqui fazer uma ode a loucura, na loucura pode ter muito sofrimento… Mas na dita sanidade, não tem? Opto então por ficar louco fazendo a cabeça. Uma saída necessária – não uma fuga – de uma rotina conturbada em um contemporâneo frenético. Ilha da mais lúcida loucura em um mar de pré-ocupações de pré-tensões, um surto planejado.

E ai? Qual vai ser?

Referências

¹ Cohen, S. Lysergic Acid Diethylamide: Side Efects And Complications. Journal of Mental and Nervous Disease, Volume 130. No 1. Jan 1960, USA.

² Hendrics, P.; Johnson, M.; Griffiths, R. Psilocybin, psychological distress, and suicidality.Journal of Psychopharmacology 2015, Vol. 29(9) 1041–1043.

³ Jerome, L. D-Lysergic Acid Diethylamide (LSD) : Investigator Brochure. 2008. Disponível em < https://www.maps.org/research-archive/lsd/swisslsd/IB_LSD.pdf> Acessado em 03 de dezembro de 2015.

Vilella, G. Bolos, chás, poções, cogumelos e redução de danos. Disponível em < https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/pt/infumacao/portas-da-percepcao/3557-bolos-ch-aacute-s-po-ccedil-otilde-es-cogumelos-e-redu-ccedil-atilde-o-de-danos.html>


[1] Psicólogo pela Universidade Federal Fluminense e pesquisador na temática de drogas e produção de saúde.