‘Fumei maconha para amenizar a dor e as náuseas durante a quimioterapia’

Fonte: IG

Douglas chegou a pedir para o traficante que lhe vendesse maconha de qualidade, não adulterada e sem “aditivos”, caso contrário o corpo debilitado pela quimioterapia não resistiria aos efeitos das substâncias incógnitas. Thais preferiu não se envolver com bocas de fumo e decidiu importar sementes de maconha e plantar em casa. Hoje, ela e o marido respondem para a justiça pela importação ilegal.

Tanto o vidraceiro Douglas Godoi, de 19 anos, quanto a publicitária Thais Carvalho, de 33, buscaram na maconha uma forma de minimizar a dor e as náuseas provocadas pela quimioterapia. Ambos começaram o tratamento tomando analgésicos e remédios, mas eles deixaram de fazer efeito rapidamente.

“Na primeira vez em que fumei, em segundos já me senti melhor. Parecia mágica. Fui logo me levantando e dando comida para a minha filha. Tinha muito preconceito, mas eu queria ficar boa logo. Não conseguia fazer nada nem dar andamento à quimioterapia”, diz Thaís, que mora em Belém.

Douglas e Thaís afirmam que seus médicos não indicaram, mas também não reprimiram o uso de maconha. A droga é proibida no Brasil, até mesmo para uso medicinal de princípios ativos da cannabis.

Uma proibição cada vez mais contestada. “Os efeitos são bem conhecidos e tanto canabidinol quanto o THC atuam nos sintomas de dor e náuseas. O canabidinol modula o efeito do THC, que sozinho tem propensão de levar a confusão mental”, explica o biólogo e mestre em Psicobiologia pela Unifesp, Lucas Maia.

Os efeitos benéficos da maconha para a dor são conhecidos desde o final dos anos 1960. O efeito analgésico serve tanto para a dor neuropática quanto para a miopática. Desde 2010 há no mercado um remédio com os princípios do THC e do Canabidinol, com uso liberado na Europa, Estados Unidos, Canadá, Austrália, Nova Zelândia e países da Ásia (exceto Japão, China e Hong Kong) e países do Oriente Médio (exceto Israel e Palestina).

‘Nunca tinha fumado’

Thaís descobriu o câncer de ovário na hora parto. “O ovário direito estava estourado. Vinte dias depois do nascimento da minha primeira e única filha, precisei fazer histrectomia [retirado do útero]”, conta. Um mês depois do parto, ela começou a fazer quimioterapia e logo vieram as náuseas, a falta de ar, as dores no corpo, a falta de apetite e a síndrome do pânico.

O mal estar era tanto que Thaís levou quarenta dias para poder fazer o segundo ciclo de quimioterapia. Do segundo para o terceiro, foram necessários outros 45 dias de pausa. O tratamento estava emperrado.” Foi quando meu marido descobriu por meio de pesquisas na internet que a maconha poderia me ajudar. Eu nunca tinha fumado”, diz Thais, que passou a fumar dois cigarros de maconha por dia.

Do terceiro ciclo de quimioterapia em diante ela conseguiu fazer dentro do intervalo determinado de 21 dias, voltou a ter apetite e consequentemente disposição para as atividades diárias. As dores e as náuseas quase desapareceram e o ânimo voltou.

Fora isso, o tratamento seguiu a diante. “Foram seis ciclos de quimio que deveriam durar cinco meses e acabaram em oito meses. Eu ia morrer. Com a maconha, consegui levar o tratamento a diante”, diz.

Douglas enfrentou quatro ciclos de seis horas, cinco dias por semana, a cada 21 dias em 2011, quando tinha 16 anos e descobriu que sofria de câncer no testículo. Passou a usar a cannabis medicinal só em agosto de 2012, quando a doença voltou e se alastrou pelo corpo. Foram necessários mais seis ciclos de quimio.

“Fumava um beck por dia e isso me ajudou bastante. Eu estava passando muito mal, não aguentava mais. Comecei a fumar porque queria ter um astral, me sentir melhor por alguns minutos, mas vi que o sofrimento das dores e náuseas iam diminuindo como um passe de mágica”, diz.

Douglas fumou até abril de 2013, dois meses após o término da quimioterapia. Em setembro do ano passado, fez um transplante de medula óssea. Teve que se mudar de Socorro (SP) para passar um mês no Hospital de Barretos e outro numa casa alugada em frente ao hospital. “Eu usava máscara, não podia ter nenhuma contaminação. Por isso não fumei nessa época. Não fiquei viciado e também não podia sair para comprar daquele jeito”.

Médicos e pacientes

A estimativa do Instituto Nacional do Câncer (Inca) para o ano de 2014 aponta para 576 mil novos casos de câncer no Brasil. O debate sobre o uso medicinal da maconha tem avançado muito nos últimos meses, principalmente por conta da decisão do juiz Bruno César Bandeira Apolinário, da 3ª Vara Federal do Distrito Federal, que autorizou uma mãe a importar um remédio com princípio ativo do canabidiol. Desde então, a importação de medicamentos precisam ser autorizados pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), mediante prescrição médica.

Além de pacientes com câncer, estudos mostram que a droga traz benefícios para doentes com epilepsia, esclerose múltipla e anorexia.

O Conselho Federal de Medicina, que se posicionava contra o uso medicinal, amenizou o discurso. Em nota, a pasta diz que o profissional médico tem autonomia para prescrever ou não qualquer medicamento, desde que informe diagnóstico, prognóstico, riscos e objetivos de cada tratamento.

Não é só benefícios
A Associação Brasileira de Psiquiatria é contra a legalização da maconha no País e exige atenção quanto ao uso medicinal. Um estudo realizado em 2012, conduzido pelo psiquiatra Ronaldo Laranjeira, mostrou que a maconha multiplica 3,5 vezes a incidência de desenvolvimento de esquizofrenia e também multiplica por cinco vezes as chances de desencadear no usuário o transtorno de ansiedade.

Desde então, muitos estudos foram feitos, a maioria em animais, com dados de saúde ou em células in vitro. “Não tem exame clínico, até mesmo por uma questão ética. Não pode dar uma droga para uma pessoa para ver o que acontece”, explica o biólogo e mestre em Psicobiologia pela Unifesp, Lucas Maia.

Por conta da falta de estudos clínicos, são relativamente comuns resultados antagônicos sobre o mesmo tema. Um estudo epidemiológico publicado em 2012, no periódico científicoCancer, sugeriu que a maconha estaria associada à forma mais agressiva do câncer de testículo. Houve maior ocorrência desse tipo de doença entre pacientes que fumavam maconha. Outro estudo realizado em ratos pela Universidade East Anglia, no Reino Unido, e publicado neste mês afirma que a maconha pode reduzir o crescimento do tumor. “Existem evidências dos dois lados, mas para cada lado elas ainda são fracas”, disse Maia.

Por causa desta última pesquisa (e de outras com resultado semelhante), Thais pretendia fumar até 2015, quando finalmente será considerada curada do câncer. “Desde que recebemos a carta da justiça, parei de plantar e de fumar. Só espero que isso não me atrapalhe de ficar curada de vez da doença.”