FHC: “Maconha provoca menos danos que tabaco”

Fonte: Marie Claire

Quando fui Presidente da República, segui o senso comum sobre o tema drogas: investi em repressão, tentei erradicar cultivos e lutei contra o narcotráfico. Não esqueci da prevenção e criei a SENAD,cujo propósito era ensinar e não reprimir. Como tempo, percebi que, apesar dos esforços políticos, recursos investidos e vidas perdidas, a oferta e o consumo de drogas continuavam estáveis ou aumentando no Brasil e no resto do mundo.

Me dei conta de que a política de guerra às drogas não funcionava e havia transformando esse mercado ilegal em um fator de desequilíbrio social e político, principalmente na América Latina. Passei a estudar o assunto. A repressão às drogas, estruturada em torno da Convenção Única de Drogas da ONU, já dura mais de cinco décadas. Um tabu foi criado, alimentando a guerra, estigmatizando usuários e nos colocando na grave situação em que nos encontramos hoje.

Nos últimos anos, com maior acesso à informação e acúmulo de conhecimento científico, o tabu começou a ser quebrado. Para ajudar a abrir e aprofundar o debate, lancei a Comissão Latino-Americana sobre Drogas e Democracia que deu lugar, em 2011, à Comissão Global de Política sobre Drogas. A primeira recomendação da Comissão Global é por fim à criminalização do usuário. Pessoas que usam drogas não são criminosos a ser trancafiados em prisões. Os dependentes devem ter acesso a tratamento e reintegração. A Comissão propõe também reavaliar a classificação de cada droga de acordo com seu dano.

A atual classificação de risco adotada pela ONU foi elaborada há 50 anos com base em evidências científicas limitadas. Os mais modernos estudos mostram que a maconha é uma droga que provoca menos danos e dependência do que substâncias lícitas e reguladas como tabaco e álcool. As estatísticas indicam que cerca de 80% das pessoas que usam drogas ilícitas consomem maconha e também revelam que o conceito de que a maconha leva ao consumo de outras drogas é mito: quem induz o usuário a provar entorpecentes mais pesados é o traficante.

Por tudo isso, a sugestão é que governos experimentem com modelos de regulação da maconha para reduzir os danos sociais de sua proibição e enfraquecer o crime organizado. Regular não é liberar, mas criar um sistema de controle efetivo sobre toda a cadeia produtiva e de distribuição da maconha, com claras restrições de idade, preço e pontos de venda e acompanhado de forte trabalho de prevenção e educação.

Tem gente que diz que isso nunca funcionaria no Brasil, mas o sucesso da política de redução de danos do cigarro nos últimos anos mostra que é possível regular para reduzir o consumo. Por aqui, persiste a desinformação e certa tendência conservadora que associa a questão das drogas à pobreza e faz vista grossa para o consumo da classe média.

Nunca fui usuário e não defendo o uso da maconha, nem de qualquer outra droga. Porém, sou pragmático e reconheço que a repressão falhou em seu objetivo de diminuir o mercado de drogas. Precisamos tentar novos caminhos. Países vizinhos como Uruguai, Argentina e Colômbia tem avançado na adoção de políticas mais humanas e eficazes de prevenção; até os EUA estão dando sinais claros de que apenas reprimir não resolve.

Fernando Henrique Cardoso é sociólogo e foi Presidente do Brasil de 1994 a 2002.