Experiência psicodélica: transformação da cultura e da experiência

Quando surge, no campo da cultura, o debate sobre a psicodelia como forma de ampliação de consciência, tal debate, curiosamente, surge das vísceras das formulações científicas e acadêmicas. O uso de psicodélicos é antiquíssimo e remonta às bases da religiosidade humana, segundo uma hipótese plausível. Os psicodélicos são, com efeito, substâncias poderosas para alteração do estado anímico de um sujeito, inclusive de suas funções cognitivas e, especialmente, de suas ideações. A produção e emergência do imaginal torna-se translúcida e ideias e fantasias inobservadas vem a tona. O campo senso-perceptivo, em algumas experiências, mistura-se profundamente com este imaginal intensificado.

por Fernando Beserra

 

É incrível pensar na força destas ferramentas na transformação de uma pessoa, o que revela usos terapêuticos singulares e, ao mesmo tempo, um grande potencial de alteração de uma cultura ou subcultura. O uso de psicodélicos, no entanto, não é inerentemente positivo e propiciador de experiências dadivosas. No que tange seus efeitos, dependem mais do que a maior parte das substâncias psicoativas do tripé substância-set-setting. No campo do set, isto é, no campo do sujeito e sua preparação para o uso do psicodélico Sandro Rodrigues listou alguns fatores muito relevantes:

Fatores de longo prazo: história de vida, medos, conflitos, paixões, culpas;

Fatores imediatos: expectativas da sessão em si;

No que se refere ao setting, pode-se pensar no cenário de uso, no entorno, nas pessoas a volta do psiconauta e que influenciam sua experiência. Dos elementos físicos que situam e relacionam-se profundamente com a viagem. Finalmente, no que concerne a substância, seria mínimo pensar em fatores como: garantia de qualidade (saber que se está usando aquilo que realmente se pensa usar), duração dos efeitos, qualidade dos efeitos, intensidade dos efeitos, interação com outros fármacos ou com alimentos usados pelo psiconauta.

Leary, em seu livro Flashbacks, cita que o governo e a mídia dos EUA quando expressaram uma série de mentiras sobre os danos cromossômicos do LSD estavam, na verdade, criando bad trips de massa. Isto é, esta medida poderia ampliar os danos do consumo da dietilamida de ácido d-lisérgico. Esta frase de Timothy é emblemática. Embora tenhamos poucos elementos para afirmar categoricamente isso, é preciso sinalizar que o regime proibicionista e sua produção sócio-cultural distorcem a viagem psiconáutica e contribuem para bad trips. Basta pensar no jovem que se sente culpado ao tomar LSD. Naquela jovem que a família falou que apenas vagabundas usam drogas. Naquele outro que pensou que ficaria louco e por pouco não tentou causar dano a si. Experiências limites são possíveis com psicodélicos, não pensem que estou querendo dizer de outra forma. No entanto, cabe ressaltar que o contexto é fundamental no processo de constituição da subjetividade e que, neste caso, há a possibilidade de criação de uma série de conflitos que precisarão ser enfrentados por tantas e tantos jovens que se aventuram na psicoscopia e na psiconáutica por meio do uso de substância psicodélicas.

Neste ínterim, estes jovens guerreiros e heroínas, para se falar do ponto de vista imaginal e mítico, poderão enfrentar medos, culpas e conflitos, como o herói e a heroina enfrentam o poderoso dragão arquetípico, na busca de superar uma situação anterior e encontrar o tesouro escondido na caverna escura. Os psicodélicos não são substâncias que nos entregam a nossa singularidade mais profunda e recôndita; nosso deus interior. Não. Para isso é preciso um trajeto no qual nos conhecemos e ampliamos nossa consciência. Os psicodélicos são catalisadores de estados profundos da alma humana: de complexos inconscientes e de imagens arquetípicas oriundas da psique objetiva, também conhecida como inconsciente coletivo. Portanto, os psicodélicos abrem canais (a)típicos do nosso sistema nervoso que possibilitam a emergência de modos de sensibilidade que facilitam um contato mais profundo conosco e com o cosmos.

Esta é a via direta do processo da religio (etimologia de religião): o olhar atencioso ao numinoso. Olhar atenciosamente a intensidade que nos atravessa e que, cotidianamente, ignoramos. E neste olhar, por vezes, podemos perceber que nosso Eu encontra-se dentro deste vasto processo de vida e que há sentidos presentes nos fenômenos que ultrapassam as fronteiras daquela realidade que identificamos como interna. Deste modo, transformar-se é também transformar.

Esta transformação, no entanto, é tantas vezes, na sociedade ocidental, objeto de escândalo. Foi o caso na década de 1960, em Harvard, do psicólogo Leary que realizou seus grupos com psilocibina com estudantes de pós-graduação. O psicólogo orientou o uso de psilocibina na pesquisa de Walter Pahnke conhecida como Good Friday Experiment. Com a ampliação de escopo de Tim Leary de pesquisa, na busca de ampliar a saúde mental dos participantes da pesquisa, por meio da ampliação de consciência catalisada pelo uso de psicodélicos, os agentes governamentais passaram a olhar de forma muito negativa as pesquisas de Timothy Leary. De pesquisador valioso, o professor Timothy torna-se “inimigo número um da América” e é preso, por porte de pequena quantidade de cannabis por longos e penosos anos.

Ao mesmo tempo, o rock psicodélico emergia e as pesquisas psicológicas e psiquiátricas com psicodélicos saiam do Mainstream. Que loucura! O grupo texano, nos lembra Sandro Rodrigues em seu livro Modulações da Experiência Psicodélica, 13th Floor Elevators (1966) em seu album de estréia – foi o primeiro a trazer no título a palavra psychedelic, cunhando assim o termo rock psicodélico. Roger “Roky” Erickson com seu discurso aberto sobre drogas atraiu atenção da policia e foi preso por posse de LSD após o lançamento do segundo álbum do grupo “Easter Everywere”.

Seriamos insanos se não observássemos como a proibição e perseguição relacionada ao uso de psicodélicos não foi, e continua sendo, uma atitude política. Uma perseguição sistemática contra os grupos que ousaram se insurgir contra o estabilishment. Mas é evidente, e é preciso dizê-lo, que a perseguição não se organiza apenas a nível do aprisionamento e do bang-bang policialesco. Talvez mais efetivo e cruel sejam os discursos da psicopatologia que buscaram diagnosticar e identificar outras formas de estar no mundo com o adoecimento mental. Brevemente podemos lembrar Ronald Laing e David Copper que, antes da revolução psiquiátrica de Franco Basaglia e de outros bravos profissionais de saúde mental na Italia, já questionavam o modelo dominante da psicopatologia. Dizia Ronald Laing que a louco está mais próximo da sanidade mental que o são, mesmo que sanidade mental e loucura sejam radicalmente distintos. A normalidade, em sua dimensão coletiva e normativa, permanece mais distante da singularidade e de um sentido profundo de existência que a loucura, que desafia a superficialidade que pode estar presente no bem-estar coletivizado da experiência normatizada. Cabe ainda examinarmos os principais elementos presentes na patologização da experiência psicodélica engendrados pela psicopatologia.

Tanto a pesquisa científica quanto a cultura construída em torno das substâncias psicodélicas foi, e ainda é, alvo de ataques, inclusive no campo da produção de estigma. Parte da psicopatologia compõe esta produção. O início parece ser anterior ao próprio questionamento das substâncias psicodélicas, mas trata-se do questionamento das experiências catalisadas por estas substâncias, por vezes denominadas alucinógenas. As substâncias psicodélicas já foram chamadas, de forma equivocada, de psicotomiméticas, isto é, substâncias que produzem uma cópia da psicose. Muito embora possa-se dizer que

as substâncias psicodélicas possam produzir algumas alucinações, isso não quer dizer que esta alucinações sejam semelhantes às experiências presentes na esquizofrenia. As alucinações são um fenômeno humano complexo e presente em uma grande variedade de situações. Encontram-se presentes, por exemplo, na síndrome de Chareles Bonnet, no qual a pessoa está tornando-se cega ou fica cega totalmente e começa a ter alucinações visuais e ver complexas cenas nas quais personagens podem estar conversando ou movimentando-se, tipicamente sem relacionar-se com a pessoa que tem as alucinações. Fenômeno semelhante pode ocorrer com pessoas que perdem a audição e passam, por exemplo, a ter alucinações musicais nas quais escutam músicas inteiras, sem que detenham os mecanismos organísmicos necessários a uma audição.

O problema não são as alucinações, caros leitores, mas a escandalosa máquina de danos denominada: proibicionismo.

Referências:

RODRIGUES, Sandro. Modulações da experiência psicodélica:

SACKS, Oliver. Hallucinations.

LEARY, Timothy. Flashbacks.