Estratégias e Argumentos Pró-Legalização – Uma Entrevista com Dan Russel

por Catiusia Gabriel

clip_image002Com tantas iniciativas pró-legalização surgindo mundo afora, este talvez seja um bom momento para começarmos a repensar nossa postura frente à inútil guerra que travamos, sem sucesso e há décadas, contra plantas e os costumes e tradições milenares da humanidade associados a elas. A recente iniciativa uruguaia e o aumento gradual dos estados norte americanos a liberarem o consumo de canabis contribui para tornar o assunto evidente, representando ótimas oportunidades para debates e mudança de postura. O assunto tem estado em pauta inclusive na TV aberta brasileira, que tem veiculado reportagens sobre maconha medicinal em horários nobres, com uma linguagem um tanto quanto “neutra”, o que de certa forma surpreende diante da postura arcaica proibicionista do Brasil.

Se hoje a bandeira branca pró-legalização têm sido hasteada mundo afora, é por que o alerta contra a infeliz estratégia de guerra contra as drogas já foi dado há muito tempo. Pesquisas acadêmicas e extensas publicações tratando de maneiras alternativas de lidar com o problema datam do início da década passada. Nomes como James Bakalar (Harvard University), Lester Grinspoon, que foi assunto recente aqui mesmo no Hempadão, e Dan Russel, sobre quem já falei em dois artigos no Portas da Percepção em 2013, são apenas algumas fontes geradoras de conhecimento sobre o tema anti-proibicionista.

Buscando complementar argumentos para os debates pró-legalização, nesta semana o Portas da Percepção coloca novamente em pauta a obra de Dan Russel, num trecho de uma entrevista com o autor, a qual foi publicada pela organização Center for Cognitive Liberty and Ethics – CCLE (Centro para Liberdade Cognitiva & Ética). A organização CCLE consiste numa rede de pesquisadores empenhados na elaboração de leis mais racionais, engajados na formulação de políticas e ética pública em prol da liberdade de pensamento. Confira um trecho da entrevista:

CCLE: Se os seres humanos já foram capazes de incorporar experiências xamânicas na sociedade em que vivem, o que então poderia ser a causa de uma mudança tão radical, a qual levou à cultura atual do “Diga não às Drogas”?

Dan Russel: Esta resposta está na “interface entre a cultura tribal e industrial”. Na maioria dos casos, essa interface tem significado a repressão e escravização da cultura tribal. O genocídio cultural é um elemento essencial deste processo, assim como a criminalização dos costumes e tradições da cultura escravizada. Assistimos a isso ao longo da história da humanidade, basta olhar para o estado atual da cultura indígena. A própria cultura industrial erradicou o uso secular tribal dos enteógenos.

CCLE: Então, se a cultura industrial instituiu uma tendência do sistema em produção mecanizada e consumo irracional, que esperança há de mudar o status legal de enteógenos? A cultura industrial em que estamos vivendo hoje deveria ser totalmente refeita para acabar com a proibição às drogas?

Dan Russel: A situação é hilária quando percebemos que o sistema industrial, sedento por lucros fáceis e abundantes, ignora uma fonte de cerca de 500 bilhões de dólares por ano, montante que circula no comércio ilegal da venda de drogas e que jamais foi taxado em impostos, sendo que nem sequer um centavo foi parar nos cofres públicos. A maconha, por exemplo, valeria pelo menos 100 vezes mais se fosse legalizada e tivesse sua venda e uso regulados em comparação ao seu comércio ilegal, como ocorre hoje.

Raymond Kendall, que foi o policial chefe da Interpol por 20 anos, é um defensor veemente da descriminalização internacional de drogas. Assim como outros renomes da economia de direita mundial (como Milton Friedman, Paul Volcker, George Soros), ele vê como, no mínimo, cômico a forma como estamos inevitavelmente financiando o crime organizado ao manter a proibição às drogas. Ao proibir o uso das plantas, estamos armando e financiando os porcos nazis que realmente controlam o comércio ilegal de alcalóides refinados.

Como uma questão de política prática voltada à uma postura mais liberal, minha sugestão é considerar os alcalóides ou concentrados e diferenciá-los de ervas integrais, sendo os primeiros reservados apenas à indicação médica e estas últimas como sendo completamente legais. Isso não apenas destruiria todo o comércio ilegal de drogas sintéticas como também o substituiria por um comércio legal controlado e medicinal dessas substâncias, como já acontecia nos Estados Unidos uma centena de anos atrás. Esta distinção é também cultural. Pois fingir que plantas são “drogas” é criminalizar o sacramentalismo tradicional de nossos antepassados e o uso que faziam dessas ervas, hábitos intrínsecos ao ser humano. ​​Da mesma forma, é ridículo fingirmos que medicamentos sintetizados em laboratório, muitos dos quais são obtidos a partir de alcalóides ou concentrados de origem vegetal, possuem uma história cultural respeitável e são seguros para o uso.

CCLE: Assim, de acordo com sua sugestão, todas as plantas psicoativas, incluindo a papoula, canabis e coca seriam completamente legais para serem cultivadas e usadas por qualquer pessoa, sem restrições? E as substâncias “artificiais”, como o LSD e MDMA, estariam disponíveis apenas sob algum tipo de prescrição ou licença médica?

clip_image004Dan Russel: O problema com a distribuição e comércio de psicoativos concentrados é, sem dúvida, o amadorismo. Ou seja, muitos adultos têm a capacidade de fazer uso dessas substâncias com segurança, mas muitos outros não. Temos o direito de arriscar nossa própria segurança, mas não a segurança dos outros. Por isso, vejo o controle médico como a única saída segura em se tratando de liberar o consumo de psicoativos, devido justamente ao uso amador. Eu gostaria de ver um sistema de saúde em que os médicos que decidissem por indicar a seus pacientes adultos o uso de concentrados enteogênicos fossem autorizados a fazê-lo. Mas o que vemos hoje são médicos treinados para utilizar os medicamentos supostamente seguros, produzidos pelas grandes companhias  farmacêuticas, assim como um sistema de saúde altamente politizado.

Em se tratando de ervas integrais, in natura, por razões filosóficas e práticas, eu acredito que plantas e fungos devem estar além do âmbito de uma proibição. Baseado em quê um governo de seres humanos decide decretar que certas partes da natureza são proibidas? É como proibir que as pessoas utilizem o cérebro de formas não aprovadas. As pessoas devem ser livres para controlar a sua própria consciência, desde que não causem danos a outras pessoas.

A entrevista na íntegra pode ser conferida no site da CCLE, que a propósito contém um acervo interessante sobre o assunto drogas e liberdade de pensamento.

O autor Dan Russel também disponibiliza trechos de seus livros aqui. Vale aprofundar a leitura.