Convite para o lançamento da Carta Psiconáutica de Pedro Luz

por Fernando Beserra

Gostaria de dedicar algumas palavras sobre um novo livro, a “Carta Psiconáutica”, de Pedro Luz, publicado pela Dantes Editora em solo tupiniquim, sobre as substâncias psicodélicas ou enteogênicas. Em 15 de agosto será realizado um debate no Jardim Botânico no Rio de Janeiro, às 13 horas, na parte das Plantas Medicinais. Em seus 10 capítulos, Pedro traz importantes informações sobre este conjunto de plantas, fungos, substâncias que foram e continuam sendo tão importantes para a humanidade e, igualmente, para um conjunto de outros animais. Deste modo, o livro circula em torno dos componentes químicos, ações fisiológicas e o uso que distintos povos estabeleceram com as substâncias ora citadas. Torna-se particularmente interessante o fato de que várias trips contemporâneas são narradas e descritas em uma saudável mistura de rigor e beleza.

Não é meu intuito aqui aprofundar sobre o longo caudal de informações presentes neste livro, que segue, em extensão e rigor, a tradição de importantes livros enciclopédicos sobre psicodélicos. Esta tradição adquire um grande relevo, no campo dos estudos sobre psicodélicos – os phantastica de Lewin – com os grandes mestres como Albert Hoffman e Richard Evans Schultes em Plantas de los Dioses. Outros exemplos são o Psychedelics Encyclopedia de Peter Stafford e o Pharmacotheon de Jonathan Ott. Neste sentido, Luz inicia explicitando um conhecimento de tantos historiadores e etnobotânicos, mas que ainda não foi digerido por parte da comunidade acadêmica e política, isto é, o fato de que substâncias psicoativas sempre foram utilizadas em sociedades humanas. A fitolatria humana, bem exposta, remonta a tempos imemoriais e esteve associada aos mais caros ensinamentos mágico-religiosas de povos em todo o globo terrestre.

Mas como compreender todo este contexto sem o intuito claro de desmerecer o consumo por meio de uma perspectiva proibicionista? Desde o advento da política da proibição de um conjunto de drogas no início do século XX os usuários das substâncias tornadas ilícitas, doravante, só poderiam ser tratados de dois modos: como viciados (dependentes) ou criminosos. Isso significava patologizar ou criminalizar milhões de pessoas, notadamente minorias. No campo da saúde pública surge uma das principais formas de resistência aos saberes criminalizantes e patologizantes: trata-se da Redução de Riscos e Danos. Na década de 1970 nasce a perspectiva da Redução de Danos (RD), embora haja um importante debate sobre o correto momento de seu surgimento. A RD nasce na Holanda, em Amsterdam e Roterdã e, pouco depois, em cidades britânicas como Liverpool (BUNING, 2006) organizada e desenvolvida por especialistas, autoridades locais e, notoriamente, usuários de drogas. A RD surge em cidades que enfrentavam problemas sérios com farmacodependentes, comunidades protestando, ineficiência na organização dos serviços de saúde, impotência e ineficácia da força policial (BESERRA, 2009). Seus resultados foram, em nível de saúde pública, maravilhosos e conseguiram evitar muitas mortes decorrentes da troca de seringas por usuários de drogas injetáveis.

Em um cenário absolutamente diferente e com todo o risco de me afastar da intenção original do autor, observo que A Carta Psiconáutica de Pedro Luz pode e deve ser utilizada como importante ferramenta de Redução de Danos para jovens e antigos psiconautas, por todo caudal de informações que oferece. Estamos falando, neste caso, de substâncias com potencial de dependências próximo ao nulo. Com riscos físicos igualmente baixos comparados a demais classes de fármacos psicoativos. Com efeito, os psicodélicos, substâncias que manifestam a alma, pertencem a uma classe de substâncias que, com o uso manejado adequadamente, podem não apenas possuir um risco baixo, mas igualmente podem promover saúde mental. É exatamente por este motivo que foram tão utilizadas, ao longo da história, tanto de forma médico-psicológica, quanto em seu contexto religioso.

Muito do consumo originários das plantas e fungos psicodélicos descritos no livro foram objeto de perseguições por parte de autoridades religiosas europeias. Em grande medida, as religiões originárias eram fortemente atacadas, na busca de controle físico e cultural dos povos originários. Buscava-se, com ações violentas, afastar as experiências religiosas originárias e substituí-las pelo dogma, pela crença em um conjunto de conhecimentos da religião oficial dos povos invasores.

Atualmente observa-se que bons ventos sopram em relação à pesquisa científica e a cultura psicodélica: uma verdadeira reforma enteogênica. A Reforma Enteogênica é um termo proposto pelo químico Jonathan Ott. Ott (2000) utilizou o termo para se referir à busca de reconexão do ser humano atual com a herança cultural que visa resgatar o nexo com tradições espirituais da experiência direta com a denominada divindade. Ott (2000) compreende que a religião, no seu papel convencional de defensora de uma tradição, é uma defesa contra a experiência religiosa, opinião semelhante à de Jung (1999). Para Ott (2000, p.109) a religião se baseia em uma comunhão formal, não substancial, com um sacramento placebo e, como tal, é: ”uma defesa contra a experiência religiosa e divina; a religião estabelecida é uma espiritualidade materialista ou materialismo espiritual”. Jung faz uma distinção entre religião, como sentido e orientação cuidadosa e consideração de certos fatores invisíveis e incontroláveis e: “constitui um comportamento instintivo característico do homem” (JUNG, 1999, p.12).

Novos caminhos se mostram possíveis. Os usos religiosos de diversos psicodélicos possuem seus defensores e adeptos e ganham visibilidade. Os direitos das pessoas de utilizaram um sacramento para comunhão com o Sagrado, passa a ser localizado como um direito fundamental. Internacionalmente, avança a passos largos um novo modo de enxergar as substâncias psicodélicas e será este novo modo de enxergar, viver, sentir, sonhá-las que produzirá novas políticas públicas

REFERÊNCIAS:

BESERRA, Fernando Rocha. Substâncias psicoativas ilícitas no Rio de Janeiro no século XX-XXI: criminalização, medicalização e resistências. Monografia para a conclusão da especialização em saúde mental e atenção psicossocial. Escola Nacional de Saúde Pública – Fundação Oswaldo Cruz. 2010.

BUNING, Ernst. Vinte e cinco anos de redução de danos: a experiência de Amsterdã. In XAVIER DA SILVEIRA, Dartiu et MOREIRA, Fernanda (ORGS). Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu. 2006.

OTT, Jonathan. Jonathan Ott In: PIÑEIRO, Juanjo. Psiconautas: exploradores de la consciencia. Barcelona: La Liebre de Marzo, 2000. p. 103-124.

JUNG, Carl Gustav. Presente e futuro, Petrópolis: Vozes, 1999.