Ayahuasca no tratamento da depressão

Basta conversar com pessoas que acompanham há muito tempo o universo ayahuasqueiro para que tenhamos os mais diversos relatos de pessoas que aliviaram ou mesmo superaram transtornos mentais por meio da ayahuasca. De fato, há ao menos dois campos de estudo particularmente excitantes, quando se trata dos efeitos terapêuticos da ayahuasca. Um deles é no tratamento das farmacodependências; o segundo, se refere a ayahuasca no tratamento da depressão. Com isso, de forma alguma pretendo limitar este potencial. Diversos outros estudos estão em curso ou ainda poderão ser realizados, a exemplo do uso da ayahuasca no tratamento de estresse pós-traumático, como se pode acompanhar pelo site do Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies (MAPS).

por Fernando Beserra

Ayahuasca é uma bebida psicoativa, com efeitos caracteristicamente psicodélicos, consumida milenarmente por diversos povos das regiões hoje denominadas amazônicas. O termo provém do quechua e significa em uma tradução: “vinho dos espíritos (mortos)”. Diversos termos são utilizados para referir-se a bebida, dependendo do contexto e modo de uso. Alguns exemplos são: yagé, caapi, mariri, Daime, hoasca e vegetal (SHANON, 2002). A bebida, segundo o psicólogo Shanon, se baseando em diversas pesquisas, tem sido consumida há milênios por povos do Brasil, Venezuela, Peru, Equador e Colômbia, relacionados à área da floresta Amazônica, assim como na bacia de Orinoco na Venezuela e nas regiões costeiras do Panamá e do Equador (OTT, 2004). Comumente a ayahuasca é constituída da junção de duas plantas: o Banisteriopsis caapi e a Psychotria viridis, também conhecidas como jagube ou miriri e chacrona, respectivamente.

O principal princípio ativo da Ayahuasca é o derivado triptamínico DMT ou N,N-Dimetiltriptamina; o DMT, quando consumido por via oral, é degradado pelas enzimas de MAO (Monoamina oxidase). Desta forma, nas poções da ayahuasca há sempre uma outra planta que contenha inibidores de MAO. O mais comum é o cipó Banisteriopsis caapi, conhecido como jagube, e contém betacarbolinas inibidoras de MAO (IMAO), exemplo da harmina, da tetrahidroharmina e da harmalina, que permitem que a composição da ayahuasca aja com toda sua potência.

O campo da ciência psicodélica avançou muito nas últimas décadas, após um verdadeiro renascimento. Nas décadas de 1940 ao início da década de 1970, muitas pesquisas de campo com substâncias psicodélicas foram publicadas, com resultados muito bons. De forma geral, os psicodélicos carregavam um potencial de revolucionar a psiquiatria e psicologia da época, tal como carregam este potencial nos dias atuais. Pode-se listar, a princípio, alguns destes motivos:

1. A necessidade do uso terapêutico destes fármacos ser vinculado à psicoterapia: o uso terapêutico dos psicodélicos, em princípio, é acompanhado por dois terapeutas;

2. A necessidade de poucos usos da substância, em distinção a maior parte dos protocolos utilizados na farmacoterapia corrente no tratamento dos transtornos mentais;

3. Se todos os fármacos atuais visam tratar os transtornos mentais pela supressão dos sintomas, isto é, sem que sejam exploradas a finalidade ou causas daquele estado mental, a terapia psicodélica fornece uma oportunidade de supressão dos sintomas em conjunto com um aprofundamento radical sobre o estado mental;

No caso específico da ayahuasca, a maioria das pesquisas tem se concentrado nos efeitos da ayahuasca por seu viés bioquímico ou no contexto de uso religioso. No primeiro caso, embora tais estudos sejam fundamentais, há de se ter em vista que as substâncias psicodélicas não promovem um efeito inerentemente bioquímico, mas dependem profundamente do ambiente de uso, com suas diversas variáveis, assim como do estado psicológico, das expectativas, e de outros determinantes mais complexos do usuário da substância. No segundo caso, há estudos que indicam que a ayahuasca usada no contexto religioso, ao menos em determinados contextos religiosos, pode ser útil à saúde mental. Ainda assim, pode-se refletir que muitas pessoas não se adaptam ao contexto religioso e outras precisam de um olhar individualizado, particularizado, para um aprofundamento em si e a consequente integração de imagens do inconsciente, fomentando seu processo de individuação.

Neste texto, em particular, abordarei o potencial da ayahuasca no tratamento do transtorno depressivo. A depressão, tipicamente, cursa com sensações de reduções na energia psíquica, da libido (redução do interesse sexual), alterações no peso (aumentando ou decrescendo), no humor (hipotimia ou apatia; pode haver anedonia, isto é, redução da capacidade de sentir prazer), no pensamento (como o pensamento lentificado ou derreista…), na autoimagem, a perda da motivação e pensamentos de culpa. Também podem ocorrer alterações no sono, com hipersonia (dormir em excesso) ou insônia. É comum no humor triste a presença de choros frequentes e, em algumas depressões, a incapacidade de chorar. Estima-se que cerca de 15% da população passarão, em algum momento, por um episódio depressivo. Nos EUA estima-se que 7% da população teriam depressão maior (segundo classificação do DSM V, manual diagnóstico organizado pela Associação de Psiquiatria dos EUA).

Na década de 1950 um conjunto de substâncias passa a ser utilizada na farmacoterapia da depressão: os inibidores de MAO e os antidepressivos tricíclicos (PALHANO-FONTES et al., 2017). Desde 1962, van Praag sugeriu que a deficiência de serotonina (5-hidroxitriptamina) estaria relacionada a grande parte das depressões. Em 1982 ele conclui que 40% das depressões teriam como fator causal o desequilíbrio bioquímico no Sistema Nervoso Central (SNC). Um dos argumentos utilizados para reforçar esta tese foi o efeito, considerado naquele momento promissor, dos tratamentos que utilizavam 5HTP (5-hidroxotriptofano) e L-triptofano. Deste modo, muito do tratamento na depressão seguiu esta lógica, especialmente, pela via medicamentosa, a exemplo dos inibidores seletivos de receptação da serotonina (ISRS), como Prozac, Zoloft, Paxil, etc. Dentre os problemas dos antidepressivos pode-se destacar que sua efetividade não é alta na remissão dos sintomas depressivos; e igualmente que seus efeitos, que costumam durar duas semanas para ocorrer, demora excessivamente diante de uma situação mais grave, como nos casos de transtorno depressivo grave com ideação suicida.

Atualmente existem questionamentos a hipótese do desequilíbrio serotoninérgico, mas os medicamentos que aumentam a disponibilidade de 5HT no cérebro humano continuam sendo as principais drogas no mercado para tratamento da depressão.

Contemporaneamente, os psicodélicos serotoninérgicos têm se destacado nas pesquisas no tratamento de diversos transtornos mentais, inclusive transtornos de humor (PALHANO-FONTES et al., 2017; CARHART-HARRIS et al., 2016). No caso da ayahuasca, em particular, existem estudos em animais que expressam este efeito (OSORIO et al., 2015).

No caso de estudos com seres humanos, em um estudo recente, 17 pacientes de transtorno depressivo maior, diagnóstico do DSM, receberam uma única dose de ayahuasca em uma sessão. Os escores de severidade da depressão foram avaliados antes, durante e depois por duas escalas: Hamilton Depression Rating Scale (HAM-D) e Montgomery-Asberg Rating Scale (MADRS). Os resultados indicaram uma redução significativa da severidade da depressão já nas primeiras horas após o uso e um efeito que permaneceu significativo no acompanhamento realizado por 21 dias (OSORIO et al., 2015).

Em outro estudo, realizado na Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, foram avaliados os efeitos da ayahuasca em bebida, recebida de um grupo do Santo Daime e avaliada em cromatografia gasosa e espectrometria de massa (CG/EM). Neste estudo foram avaliados 6 participantes da pesquisa que se encontravam com depressão maior. No dia 1, na escala HAM-D houve 62% de redução da pontuação média (quanto menor a pontuação, menos significativo é o quadro depressivo); no dia 7 chegou aos 72%, para reduzir para 45% do resultado inicial no 14 dia após o uso. No 21 dia após o uso, novamente, se verificou a redução dos sintomas depressivos de forma quase idêntica ao dia 7. As maiores reduções de escore foram encontradas no humor deprimido; sentimento de culpa; ideação suicida e dificuldade no trabalho/atividades (OSÓRIO et al., 2015). Segundo os autores (2015, p.18): as “reduções estatisticamente significativas no BPRS-AD (Brief Psychiatric Rating Scale) do dia 01 ao dia 21 sugerem que a AYA produziu efeitos antidepressivos e ansiolíticos”. No entanto, o estudo de Osório e outros não utilizou duplo cego e grupo placebo.

Um novo estudo, publicado em 2017, foi realizado com metodologia de controle placebo, duplo cego e randomizado. A pesquisa contou com 35 participantes, que participaram do grupo experimental ou do placebo; todos os participantes tinham entre 18 e 60 anos, não tinham uso prévio de ayahuasca e encontravam critério para transtorno depressivo maior na avaliação do DSM V. Os resultados foram mensurados com o uso das escalas HAM-D e MADRS no primeiro, segundo e sétimo dia após a dose (PALHANO-FONTES et. al, 2017). Os resultados indicam, de acordo com os pesquisadores, robusta evidência de efeitos antidepressivos rápidos em uma dose de ayahuasca comparada ao placebo. Apesar disso, não houve diferença nas taxas de remissão nos grupos, o que significa que uma única dose de ayahuasca promove efeitos antidepressivos, mas não é suficiente, isoladamente, para eliminar os sintomas da depressão. Fico imaginando o quão incrível poderia ser uma psicoterapia aliada ao uso de ayahuasca no tratamento da depressão. Quantas pessoas não poderiam ver seus sintomas reduzidos e mesmo superados com esta tecnologia?

Referências:

CARHART-HARIS, R. L. et al. Psilocybin with psychological support for treatment-resistant depression: an open-label feasibility study. Lancet Psychiatry 2016; 3: p. 619–27.

OTT, J. Pharmacotheon: drogas enteogénicas, sus fuentes vegetales y su historia. Madri: La Liebre del Marzo. 2004.

OSÓRIO, F. de L., SANCHES R. F.; MACEDO L. R., et al. Antidepressant effects of a single dose of ayahuasca in patients with recurrent depression: a preliminary report. Rev Bras Psiquiatr. 2015, 37(1): p.13-20.

PALHANO-FONTES, F.; BARRETO, D.; ONIAS, H. et al. Rapid antidepressant effects of the psychedelic ayahuasca in treatment-resistant depression: a randomised placebo-controlled trial. BioRxiv: the preprint server for biology. 2017.

SHANON, B. The antipods of the mind.

Mais sobre ayahuasca no Hempadão:

BESERRA, F. R. Estudos sobre ayahuasca: enteogenia Amazônica. Hempadão. 2011. Disponível em: <http://hempadao.blogspot.com.br/2011/09/estudos-sobre-ayahuasca-enteogenia.html>.

BESERRA, F. R. Análogos da ayahuasca. Hempadão. 2011. Disponível em: <http://hempadao.blogspot.com.br/2011/03/ed108-portas-da-percepcao-analogos-da.html>.

BESERRA, F. R. Introdução à ayahuasca (parte I). Hempadão, 2013. <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/breves-palavras-sobre-a-ayahuasca-parte-i/>.

BESERRA, F. R. Introdução à ayahuasca (parte II). Hempadão, 2013. <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/introducao-a-ayahuasca-parte-ii-portas-da-percepcao-ed-238/>.

BESERRA, F. R. Introdução à ayahuasca (parte III): religiões ayahuasqueiras. Hempadão, 2013. <https://goofy-sanderson.104-207-151-122.plesk.page/introducao-a-ayahuasca-parte-iii-religioes-ayahuasqueiras/>.