Algumas impressões sobre o IV Congresso da ABRAMD

por  Fernando Beserra

Ocorreu entre os dias 31 de outubro e 02 de novembro, na Universidade Estadual da Bahia, em Salvador, o IV Congresso da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas, a ABRAMD. O Congresso, de caráter internacional, contou além da presença de grandes pesquisadores brasileiros, com autoridades dos governos português e uruguaio que puderam falar um pouco sobre a legislação e propostas da política sobre droga de seus países e perspectivas nacionais e internacionais sobre o tema. Hoje vou dar minha opinião quanto ao Congresso, no qual estive presente, mas antes uma breve contextualização.

Felizmente, não é apenas de proibicionismo e sensacionalismo que vivem as discussões de drogas no Brasil. Há alguns anos temos notado uma cada vez mais potente rede de pesquisadores, ativistas e usuários, que acabou com todo resto de consenso que porventura poderia haver nesta área. Seja na questão legislativa, de cuidado e tratamento ou mesmo quanto a quais discursos têm validade e relevância no debate político, todos, de forma sistêmica, parecem ter sofrido graves rachaduras. Hoje, embora a direita reacionária (redundância? Talvez não…) e os conversadores cada vez mais se alinhem em defesa da tradição da War on Drugs, não é mais possível desconsiderar a importância que os usuários estabeleceram neste debate, bem como movimentos sociais sobre política de drogas como a Marcha da Maconha, as Frentes (Nacional e Estaduais) de Drogas e Direitos Humanos, o Growroom, Hempadão, Psicotropicus, Coletivo Desentorpecendo a Razão, Cultura Verde, Princípio Ativo, Rede Latinoamericana de Usuários de Drogas (LANPUD e INPUD) etc., que muitas vezes se fortalecem ao se aproximarem de outros movimentos sociais, como movimentos ligados à Luta Antimanicomial, redutores de danos, militantes que sempre estiveram engajados nas políticas públicas sobre HIV/AIDS, dentre outras lutas. Estas articulações são muito importantes, notadamente em tempos como os que vivemos hoje no Brasil: com possibilidades reais de ver endurecida e piorada nossa Lei de Drogas (através do PLC 37 de Osmar Trevas), em um país que cada vez mais adota medidas higienistas de olho nos grandes eventos internacionais, a exemplo da chuva de internações forçadas que tem ocorrido para varrer os indesejáveis e finalmente um país que cada vez mais prende, violenta, agride seus cidadãos, apresentando a 4ª maior população carcerária do mundo.

Os movimentos sociais não estão isolados no questionamento a política de drogas brasileira, em todas as suas formas, pesquisadores de diversas áreas têm sido bastante duros em demonstrar o quanto nossa política de drogas fraqueja e um endurecimento na mesma linha provocaria danos ainda maiores, desde a segurança pública, até mesmo na área da saúde. Neste sentido, a ABRAMD tem uma importância significativa e concreta: são múltiplas vozes de pesquisadores que tem o potencial de desconstruir mitos, utilizando estudos rigorosos e a metodologia científica. E foi exatamente neste sentido que o Congresso da ABRAMD foi de grande importância. Embora não tenha sida expressa uma defesa explicita quanto à necessidade de regulamentação da produção, comércio e consumo das drogas tornadas ilícitas, importantes convidados do congresso apresentaram alternativas ao que é posto hoje através de diferentes abordagens.

Do ponto de vista da política de drogas, o Vice Ministro de Educação e Cultura do Uruguai, Oscar Gomez Trindade, expressou enfaticamente a urgência da América Latina reorientar sua atual política de drogas e explicou o projeto uruguaio e o que os motivou a rever sua legislação, caso aprovado o PL que se encontra no Senado uruguaio. Assim também Paula de Andrade, Coordenadora do Serviço de Intervenção nos Comportamentos Aditivos e Dependências (SICAD) de Portugal, explicitou a política portuguesa, de que forma adotaram a política de redução de danos e construíram uma rede de cuidados plural, diversificada, em conjunto a uma política que descriminalizou o usuário de drogas, embora não o tenha feito completamente.

Em um dos pontos altos do Congresso, foi possível ver uma mesa apenas destinada a movimentos sociais e de usuários de psicoativos. Esta mesa, como aconteceu com a Luta Antimanicomial, abre sempre meu olho, pois vejo a possibilidade do preconizado no SUS realmente acontecer, isto é, que os próprios usuários sejam parte ativa na construção das políticas de atenção e tratamento, em suma, do próprio Sistema Único de Saúde. E foi exatamente o que ocorreu com a Reforma Psiquiátrica após o momento em que usuários e familiares começaram a ocupar os espaços de fala, de discussão pública e política, com fins de superar o sistema total e totalitário dos Manicômios.

Quanto a questão do tratamento e da terapêutica das dependências, houve um grande número de críticas a atual postura de financiamento das Comunidades Terapêuticas, seja qual nome seja dado às mesmas, em detrimento de um maior apoio aos dispositivos da Reforma Psiquiátrica já existentes no SUS, como os Centros de Atenção Psicossocial para tratamento do uso indevido de álcool e outras drogas (CAPS AD), consultórios na rua, rede de atenção básica, reforçando a necessidade, como apontado por Edward Macrae, do investimento em políticas públicas e laicas. Macrae, na mesa final do Congresso, ao lado do Secretario da SENAD (Secretaria Nacional de Política sobre Drogas), Vitor Maximiniano, reforçou que a atual política tem apenas reforçado a criminalização dos pobres e o racismo. Dartiu Xavier da Silveira apontou que o sistema de internação, particularmente as forçadas, é um sistema ineficaz com resultados não superiores a 10% de recuperação dos que pretende tratar. É um sistema caro e ineficiente. Apesar dos argumentos, Vitor Maximiniano informou que o Governo não voltará atrás com o investimento nas Comunidades Terapêuticas, embora tenha limitado sua atuação (proibindo as internações compulsórias nestes serviços), isto é, as CTs deverão funcionar com portas fundamentalmente abertas e o dinheiro sairá de outro espaço que não o SUS. Maximiniano ainda colocou uma fala mais progressista, a meu ver, quando defendeu que a diferenciação legal entre usuário e traficante deva ser objetiva, isto é, calcada também na diferença do porta de substâncias, como feito em vários países hoje. É importante lembrar que Pedro Abramovay perdeu seu cargo na SENAD, retirado pela própria incompetente presidenta, justamente por esta defesa e pela defesa de regimes alternativos para pequenos traficantes desde que réus primários.

Foi excelente ver um Congresso como a da ABRAMD, que foi plural, contemplando diversas discussões relevantes na atualidade, como a excelente fala do Sidarta Ribeiro sobre os cannabinoides demonstrando os potenciais medicinais da maconha, a diferença entre os vários possíveis efeitos, as diferenças entre as maconhas e como para se pensar na maconha medicinal é necessário o controle da qualidade da maconha, isto é, se haverá mais THC, mais CBD, CBN ou outros canabinóides. Por fim, o pesquisadores do Congresso desmistificaram a tal “Epidemia do crack”, mostrando que não há absolutamente nenhuma evidência que isso aconteça, como mostram estudos como o do CEBRID de 2010 e o da FIOCRUZ mais recente.

Fico esperançoso com a antiproibicionismo e seu avanço no diálogo com diferentes movimentos políticos e sociais e um pouco aflito com a desesperança de alguns importantes pesquisadores.